49 - Dueto
Dueto: ou duo, é uma composição musical, ou trecho de uma composição, executada por dois músicos ou cantores.
Rick observava Duda enquanto ela colocava no balcão dois pratos, uma porção de salada e uma garrafa de espumante. A cena doméstica fez tão bem a ele que imaginou como seria bom realmente deixar o passado enterrado para sempre.
— Eu comprei um presente pra você. — Ele foi até a árvore e pegou a caixa.
— Ah, Rick... eu não comprei um presente — ela disse, encabulada. — Mas eu tenho um.
— É mesmo?
— Sim, dois na verdade, mas um deles não tá aqui comigo. Eu preciso pegar no meu apartamento.
Rick sentiu um aperto no peito. Ele sabia que ela teria que voltar para casa uma hora ou outra, que logo a vida voltaria ao normal, e ficou resistente com isso porque, com aquela maldita órtese na mão, não tinha nada de "normal" esperando por ele nos próximos dias.
— Rick! É um Taylor? — Duda deu um grito quando terminou de desembrulhar a caixa do instrumento. A escrita cursiva entalhada no couro do estojo não deixava dúvidas sobre a famosa marca de violões. Ela abriu a tampa do case e removeu o modelo da série 400 do berço de pelúcia. Sabia que um instrumento dessa categoria custava uma fortuna no Brasil. — Isso é muito, Rick! Por que gastou todo esse dinheiro?
— Porque era pra você.
Ela sentiu os olhos molhados. Não pelo valor do presente e, sim, pelo gesto.
— Se eu não tivesse voltado, você ia ficar com ele?
— O que você acha?
Ela sorriu. Sabia que ele teria mandado entregar em sua casa, que não importa o valor, ele não teria ficado com o instrumento para si nem teria devolvido. Recolocou o violão no case e foi até ele para abraçá-lo.
— Obrigada, meu bruxo. Eu amo você — deu um beijo empolgado nos lábios dele. — Vamos comer? Preciso testar o violão, mas estou com muita fome agora. — Na verdade, ela estava apreensiva de tocar na frente dele por causa da mão ferida.
Eles se serviram, ele se atrapalhou para cortar o frango e ficou irritado. A falta da mão o lembrava o tempo todo do quanto fora imprudente e o forçava a refletir sobre quando poderia voltar a tocar. Ele não tinha visto a hora de entregar o presente a Duda e experimentar com ela o novo violão, agora nem sequer conseguia segurar um garfo.
— Quão grave é essa lesão, Rick? Quanto tempo você vai ficar com essa tala? — ela perguntou, notando o descontentamento dele. Ela nem tentou ajudá-lo pois sabia que só pioraria tudo.
— A fratura ocorreu no metacarpo, e o problema é que a lesão afetou também a cartilagem da articulação e a base da falange. — Ele mostrou o local na mão sadia para que Duda entendesse. — Cirurgia não era uma opção, então vou ficar imobilizado por três semanas, depois vão avaliar se preciso de mais tempo ou se começo a fisioterapia.
— E dói...? — Ela sabia que era uma pergunta idiota, mas não conseguia imaginar seu homem, a própria representação da força e firmeza, sentindo dor.
— Não mais do que outras coisas. — Ele se referia à impossibilidade de tocar.
— Caraca, Rick... E como você vai fazer com os jobs?
— Não vou fazer, não é?
De repente, ele perdeu completamente o apetite. A mão doía e a alma também. Ele alcançou o analgésico e tomou um comprimido, ao menos uma das dores dava para aliviar.
Duda notou o mau-humor e sabia que não podia fazer nada. Atos trazem consequências, e as fotos de Natal com um Enzo de rosto temporariamente deformado estariam lá para confirmar essa verdade.
Do nada, ela imaginou o porquê de Henry nunca chegar a quebrar uma das mãos ao agredi-la. O homem as tinha como sua ferramenta de trabalho, provavelmente era por isso que tomava cuidado ao usá-las, ou talvez apenas soubesse como bater, o que por si só já era bem bizarro. Também tinha o fato de que ele costumava usar o que estivesse à mão na hora de descarregar a raiva. O pensamento a colocou para baixo também.
Se houvesse uma forma de escolher alguns pensamentos e colocá-los num depósito no fundo da consciência, trancar a porta e colocar uma plaquinha de "não entre", muitos problemas se resolveriam, tanto os dela quanto os de Rick. Mas não dava para ignorar o passado, e quem dera ele não fosse tão influente no presente.
Tudo é determinado pelo tempo. Presente, passado e futuro, olhando de fora, é uma coisa só: a existência. Entretanto o fato de ser dividida em pedaços, como um compasso dentro da música, é o que gera essa saudade do trecho anterior e a ansiedade pelo trecho seguinte, e quando a música é difícil demais, há sempre a dificuldade de executar o trecho atual.
É, a vida não é fácil. Como existem músicas quase impossíveis de se executar, tem vidas quase impossíveis de se viver. Duda não considerava mais a própria vida um desperdício de tempo, talvez ela tenha passado do trecho mais difícil da canção, mas não dava para prever o que o Grande Compositor pensara para o próximo movimento. Duda pensava nessas coisas enquanto se isolava na cozinha, limpando os restos de alimento dos pratos.
Rick foi até o sofá, finalmente se rendeu e acendeu um cigarro. A essa hora, ele estaria dedilhando alguma coisa, e como não podia, ele pescou a aliança na corrente do pescoço e ficou brincando com ela, algo que acabou se tornando um hábito muito frequente. Ele concentrava as energias ali, como se a peça fosse um símbolo de esperança, uma promessa de que as coisas se ajeitariam em breve. Percebeu que Duda estava acabrunhada, isolada no próprio mundo, porém não teve vontade de trazê-la de volta, não agora que se sentia tão desanimado.
— Você voltou a fumar — ela comentou, depois de um longo tempo de silêncio. Ele não respondeu. Não tinha resposta para isso. — Você vai precisar de ajuda nos próximos dias — ela tentou novamente um diálogo.
— Eu tenho me virado, não se preocupa.
— Eu vi bem como você tem se virado.
— Duda... não esquenta com isso.
— Não seja orgulhoso!
— Não é orgulho.
— Você vive me querendo por perto e, quando precisa, não quer mais.
— Eu só não quero... precisar. Quero você aqui porque você quer, não porque se sente na obrigação.
Ela suspirou. Que homem complicado! Ela já tinha pensado bastante, principalmente durante a noite em que passara praticamente insone. Algumas decisões precisavam ser tomadas, e essa questão com Rick antecipava algumas delas. Ela não queria ferir o orgulho dele nem o entristecer, esse humor oscilante dele era algo novo que ela ainda precisava aprender a lidar, então repensou o argumento e resolveu mudar a abordagem.
— Rick, eu estou pensando em deixar o trabalho na galeria.
— Sério?
— Sim, tem muita coisa acontecendo agora. Eu vou ter aí pela frente quase três meses de apresentações do musical, de quinta a domingo. Depois não sei, mas, durante esse tempo, você sabe que eu fiz um acordo com o Júlio de trabalhar menos horas. Não quero sair do Johnny-John, é um lugar com muito significado pra mim.
— Entendo. Pra mim também é, foi o bar que me levou até você.
— Ué... não foi um álbum de jazz?
Ele se espantou com o próprio comentário. Na verdade, fora uma foto publicada no Instagram do Johnny-John que o levara até ela, mas ela não sabia disso. Para ela, eles se encontraram casualmente na loja de discos.
— Sim, claro, é que no bar foi onde a gente começou a se envolver de fato. Enfim... você quer continuar trabalhando no bar, eu entendo — ele disfarçou o lapso, e Duda nem se ligou muito no deslize.
— É, isso, eu tenho feito muita coisa ultimamente.
— E você pretende começar o curso de Musicoterapia.
— Então... Eu ando bem cansada, sabe? Acho que preciso focar numa coisa de cada vez, não sei bem se é o momento de começar o curso, não tenho certeza de nada ainda, mas o caso é que... eu saindo do trabalho na loja, vai ficar pesado para eu pagar sozinha o aluguel. Pensei em dividir com alguém.
Ele se ajeitou no sofá, agora muito mais interessado na conversa. Ele queria jogar a real de uma vez, falar para ela vir morar com ele, contudo ele já tinha feito esse convite várias vezes no passado e, em todas elas, ela fora terminantemente contra. Ele não queria ter outra rejeição na prateleira dos troféus, ainda estava se recuperando da última.
— Dividir? Com quem? Você sabe que não precisa disso.
Ele ficou imaginando outra pessoa morando com ela, eles sem ter privacidade para ficarem juntos, e sabe-se lá que tipo de pessoa moraria naquele "apertamento". Se fosse o Alex, isso o deixaria bem cabreiro. O pensamento fez seu sangue ferver.
— Não quero que você pague minhas contas, Rick.
— Quem é orgulhoso agora? — Ele se irritou ainda mais por ela sempre rechaçar as tentativas dele de ajudá-la. — E outra, você nunca aceitou morar com ninguém, por que isso agora?
— Deixa eu terminar de falar...
— Também tem o lance da herança do seu pai, você podia ir atrás disso, não tem por que ficar protelando...
— Rick!
Ela respirou fundo e tentou retomar a narrativa. Estava apreensiva e não era à toa, já que estava prestes a dar um passo além do pequeno mundo que desenhara para si mesma e no qual vivera por tanto tempo.
Ela nunca se permitia querer coisas demais, nem imaginava que sua vida tomaria um rumo positivo. Ficara tanto tempo só reagindo, sobrevivendo e seguindo o fluxo que se esquecera de como remar, desviar-se dos perigos e, principalmente, apreciar o percurso.
O fato era que esse mundo ficara pequeno demais agora; não cabia mais os sonhos, desejos e tudo o que ela se tornara nos últimos tempos.
— Ok, pode falar, mas você já sabe o que eu penso — ele resmungou, frustrado.
— Você estraga tudo, Rick! Eu tô aqui tentando terminar a ideia, e você fica aí resmungando.
— Desculpa. — Ele fechou a cara e tentou conter a irritação.
— Então, eu só sei que, saindo da galeria, não vou conseguir manter o aluguel. Também não vai mais ser vantajoso morar onde eu moro, minha vida vai mudar completamente de lugar, e eu quero realmente dividir algo com alguém. Você acha que conseguiria cuidar do Gato?
— Quê? — Ele ficou confuso com o rumo da conversa. Ela queria se mudar para onde? Para uma república?
— É que... eu só vou onde o Gato puder estar e, se você aceitar que ele fique aqui, talvez eu possa ficar também.
Só então ele começou a entender onde ela queria chegar. Uma agitação cresceu em seu peito, subiu até seu rosto e provocou o sorriso mais lindo que ela já vira em toda a sua vida. Ela sorriu também e ele a puxou para si num abraço apertado, profundamente emocionado.
— Quando a gente pode ir buscar suas coisas? — foi tudo o que ele conseguiu responder.
— Calma, Rick! — ela respondeu, sorrindo — Antes preciso ver se o Alex quer ficar com meu apartamento.
— Não importa se ele fica ou outra pessoa fica, você pode deixar as coisas pra ele ou deixar pra lá! — Ele foi beijando o rosto dela a cada frase. — Você não vai precisar de nada aqui... Eu vou cuidar de tudo, vou cuidar de você. Não tô acreditando nisso! Esse é o meu presente de Natal?
— Se você quiser, posso colocar um laço no cabelo! — Ela sorriu e o beijou de volta.
***
Resolvi juntar panelas, manias e alguns trejeitos
Ter outro travesseiro na minha cama
Ter outro pijama no chão do banheiro...
(Instalação — Danilo Souza e Fernando Anitelli, O Teatro Mágico)
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