48 - Overtone
Overtone: sequência de notas que ressoa com os princípios naturais da física sonora. Diz-se que é o som produzido pela natureza.
Quando as portas do elevador se abriram e Duda o viu caminhando em sua direção, a postura devastada de um leão ferido não foi capaz de assustá-la. Ele se aproximou rapidamente, ela foi ao seu encontro, e nenhuma réstia de temor ou insegurança foi capaz de detê-la.
Foi nesse exato momento que ela compreendeu que Rick jamais poderia fazer algo para feri-la. Quando os lábios se tocaram, ela sentiu toda a vergonha e dúvida se estilhaçarem em milhares de partículas e desaparecerem no ar. Ele a apertou contra si, e quando a língua dele invadiu sua boca, ela sentiu uma onda de energia se espalhar por todo o corpo acendendo cada terminação, sensibilizando cada célula, potencializando cada sensação e ressuscitando a confiança destruída quando ele ergueu os pulsos contra outro alguém.
Ela o beijou com vontade, com verdade, como todas as forças que possuía. Com desespero, sem medo, porém com fúria suficiente para deixar uma marca permanente do lado de dentro dele, naquele espaço vazio que ele tinha tanto medo de manter desocupado e abandonado. As línguas brincaram no ritmo dos corações, e ela teve toda a certeza de que ele entendeu o recado quando gemeu e o sabor salgado de alguma lágrima invadiu as bocas conectadas, dispersando toda a desolação que ainda resistia dentro dele.
Quando Duda enfiou as mãos sob sua camiseta, arranhou os músculos das costas tatuadas e desceu a mão até a braguilha, ele murmurou um palavrão e tentou inutilmente desabotoar o fecho do seu sutiã. Ficou terrivelmente frustrado, porque não tinha coordenação suficiente com a mão esquerda, a mão direita não funcionava e, para piorar, ele estava tremendo. Duda notou a dificuldade dele e, com o coração contrito, segurou-lhe os braços enquanto seus olhares se encontravam. Ambos estavam ofegantes, ele mais do que ela, e ela sustentou o olhar até que ele se acalmasse.
Rick segurou como pôde a angústia acumulada por tê-la tão perto, por não poder usar a mão devidamente, por ter tanta coisa mal resolvida entre eles que era quase impossível respirar. Ele precisava ir com calma, então sustentou o olhar, travou a garganta para que nenhuma outra lágrima caísse, e esperou.
Duda sabia que ele esperava uma palavra, um gesto seu, qualquer coisa que mostrasse que tudo ficaria bem, que ele não estava sozinho no mundo, que ela entendia o problema dele e não o abandonaria.
— Fada...
— Shhh... — ela o calou com a ponta do dedo. Não estava pronta para falar, embora tivesse chegado até ali.
Enquanto o levava pela mão até o mezanino, ela não se sentiu uma fada. Estava mais para bruxa, como Malévola, que agora não era mais uma vilã porque salvara a Bela Adormecida, portanto a vilã se transformou em heroína. E se não havia mais heróis ou vilões definidos, de quem seria a culpa?
Ela o ajudou a remover as roupas de modo lento e carinhoso. A cada peça que tirava dele, removia uma de si mesma, até que ambos estavam nus, nada entre eles, nada que os pudesse proteger um do outro, totalmente vulneráveis e entregues.
– Eu sinto muito... – ele articulou, mas Duda o calou com um beijo. Que ela fosse a culpada então, já que estava prestes a receber um agressor como herói, consciente e deliberadamente.
Rick a apertou contra o próprio peito com tanta força que parecia desejar que ocupassem o mesmo espaço. Sua mão saudável não se afastava dela em nenhum momento, como se ele tivesse acabado de recuperar uma joia perdida. Ela segurou a mão imobilizada entre as suas e o olhou nos olhos.
— Que coisa idiota você fez.
— Eu sei.
Duda beijou a órtese, subiu com os lábios até onde começava a pele do braço, alcançou o pescoço, o ombro e, finalmente, os lábios. Ele deitou nos travesseiros macios e a puxou sobre o corpo, e finalmente eles fizeram amor, antes de qualquer conversa pois, naquele momento, seus corpos falavam muito melhor do que as mais perfeitas palavras.
***
Já era madrugada quando Duda tentou se levantar da cama, porém Rick a segurou e a puxou de volta.
— Ei... eu preciso ir ao banheiro! — ela respondeu, rindo.
— Precisa mesmo?
— Preciso mesmo! Eu já volto.
— Volta mesmo?
Ela sorriu, comovida. Ela sabia que essa pergunta carregava muito mais significado quando se tratava dele.
— Eu prometo que vou voltar, ok?
Ela o beijou no rosto, vestiu a camiseta dele, que estava embolada em meio aos lençóis, e saltou da cama. Quando desceu as escadas, teve uma visão mais aberta do flat e notou o que não tinha visto ao chegar.
No sofá, uma manta enrolada em meio às almofadas indicava que Rick estava dormindo ali, talvez nos últimos dias. Vários copos vazios depositados no rack e na mesa de centro, latas de cerveja, pacotes vazios de salgadinho pelo chão e garrafas de bebidas compartilhavam um cenário de descaso inédito, um lado do bruxo que Duda ainda não tinha conhecido.
No piso, havia cacos de vidro espalhados e algumas manchas de sangue, só então ela percebeu que havia pegadas vermelhas ao longo do piso e nas escadas.
Na mesa de centro, um cinzeiro cheio de bitucas de cigarro revelava que Rick voltara a fumar. Ela já tinha notado logo que entrou no flat, e quando se beijaram, pelo hálito de tabaco e álcool que ela, agora meio fada meio bruxa, não se importou em compartilhar. No canto da sala, viu o pinheiro e a caixa de presente.
Seu coração deu um salto ao constatar que este seria o primeiro Natal que ela de fato comemoraria, e que bom que ela estava ali agora, que bom que dera a ambos a chance de estarem juntos nessa noite.
— Você não acendeu a árvore de Natal! — exclamou para que Rick ouvisse, mas ele não respondeu, e ela concluiu que ele provavelmente havia adormecido.
Estava agitada, então enquanto ele dormia, resolveu ajeitar o espaço. Recolheu os cacos de vidro, removeu o lixo espalhado, colocou os copos e o cinzeiro na lavadora e passou álcool no piso para limpar as manchas de sangue.
Pensando nisso, pegou uma toalha limpa e umedecida com água e foi até ele para conferir o local dos ferimentos. Com cuidado, limpou dois cortes que ele tinha na sola do pé, o que o fez acordar.
— O que você tá fazendo? — ele resmungou.
— Você tava tão bêbado que nem viu que se cortou?
— Eu não tava bêbado... — De fato ele não estava. Ele metabolizava o álcool muito rapidamente, então precisava muito para ele se embebedar.
— Nunca te vi assim... — ela lamentou enquanto pressionava a ferida dele. Esse quadro do feiticeiro ferido, entregue e vulnerável era algo novo e intrigante, algo que a fez se sentir poderosa, numa nova faceta da vilã. — Sempre te achei tão perfeito, tão forte e seguro...
— Eu não sou perfeito, Duda. Nunca fui... Mas sou real.
Ela sorriu e o beijou na sola do pé, que ele puxou e escondeu sob o lençol.
— Quer dizer que você não se importa com um corte, mas não aguenta um beijinho? — ela riu do fato de ele sentir cócegas.
— Definitivamente, minha armadura de machão foi pro saco — ele murmurou com uma voz frouxa e os olhos fechados.
Ela percebeu que ele tinha dificuldades em se manter acordado, talvez por causa dos analgésicos que há pouco ela vira sobre a mesa, então resolveu deixá-lo descansar. Foi até o piso inferior e acendeu a árvore de Natal, colocou a estrela no topo, apagou as luzes e permaneceu um bom tempo deitada na cama contemplando os desenhos coloridos que as luzes projetavam nas paredes do flat.
Viu-se perdida em confabulações a respeito dos últimos dias e, principalmente, sobre esse momento único em que o homem que mais amava no mundo ressonava profundamente ao seu lado. Seu último pensamento antes de adormecer foi que talvez tivesse chegado a hora de tomar uma importante decisão sobre ambos.
***
Rick acordou atraído por um aroma delicioso. Os olhos e a cabeça estavam pesados, entretanto o aroma fez seu estômago roncar, e ele saltou da cama.
— Ai, cacete! – resmungou. Não se lembrava dos cortes no pé. Desceu a escada mancando, sentindo-se ridículo por estar todo ferrado. Também estava aborrecido porque ficou tão dopado com a mistura de whisky e analgésicos que não pôde aproveitar melhor a noite com Duda.
— Feliz Natal! — ela o cumprimentou, sorridente.
Ele ficou babando na visão dela trajando apenas uma camiseta dele, e a fome trocou de lugar por um instante, mas acabou voltando para o estômago; porque, de fato, o cheiro estava muito gostoso e ele não comia nada decente há dias.
— O que você está cozinhando?
— Eu comprei um chester, desses que já vêm prontos. Está no forno há um tempo, logo eu começo a servir.
— Você saiu assim pra comprar? — Ele observou as pernas expostas a partir da coxa e os bicos dos seios saltados, tornando bem evidente a falta do sutiã.
— Não, claro que não! — Ela riu. — Eu pedi por App. Só fui até a portaria.
— Eu não ouvi a campainha... — Ele ficou intrigado pois, desde que se conheceram e se tornaram íntimos, ela nunca acordou antes dele.
— Você não ouve nada há um bom tempo.
— Devem ter sido os medicamentos... — com umas duzentas doses de whisky.
Eles ficaram em silêncio. Ambos sabiam que precisavam falar do problema que gritava através de uma tala na mão dele, porém não sabiam como. Duda acabou criando coragem e iniciou o assunto:
— Rick... o que aconteceu com você? Por que agiu daquele jeito?
— Eu não sei direito — Rick suspirou e pensou por um tempo antes de continuar — não entendo muito bem o motivo, mas às vezes eu fico muito nervoso. Isso acontecia muito na minha adolescência, lembra quando te contei que fui expulso da escola? Não foi apenas uma vez.
— Eu fiquei assustada demais, Rick. Quero entender qual foi o gatilho, o que fez você perder o controle.
Rick não queria falar do assunto. Ele odiava assumir que tinha um problema, e falar era como um carimbo sobre a coisa toda, dando um nome e uma sentença, e ele definitivamente não queria nem pensar em algo assim. Mas, também, não podia deixá-la sem saber a verdade, que era tão humilhante para ele quanto devia ser ofensiva para ela.
— Quando cheguei no hotel e percebi que você tinha ido embora, eu... acho que foi isso. Eu tenho uma neurose com esse lance de abandono, Duda, e isso acaba ativando outra coisa... Cheguei a ser diagnosticado... TEI* , sabe do que se trata?
Duda assentiu, preocupada.
— Tenho vergonha disso, é humilhante, mas é o que é. Eu volto no tempo, como um loop, sempre nos mesmos instantes, como a última vez que vi minha mãe ou quando ela foi agredida no quintal de casa, ou quando me chamavam de filho da puta quando eu só queria ter amigos na escola e, por último, quando me dei conta, sozinho no quarto, de que ela não voltaria mais. Não gosto de falar disso porque não quero imaginar que você possa ter algum tipo de... pena de mim por isso... ou passe a me tratar diferente, não quero nem imaginar algo assim, e nada do que eu disser justifica o que eu fiz, só estou tentando entender, tanto quanto você, porque isso me deixa tão irado a ponto de...
Ele interrompeu a narrativa e passou um tempo em silêncio, se controlando para não pegar mais um cigarro.
— Toda vez que eu sair de perto de você ou quando a gente brigar, porque com certeza a gente vai brigar, você vai ficar violento?
Ele se aproximou dela e a abraçou por trás. Estava tão envergonhado que não conseguia olhá-la nos olhos.
— Não, Duda. Não é assim que funciona. Foi o Enzo, eu pensei que ele tava forçando você, sendo agressivo ou tentando algo sem consentimento. Desde o primeiro momento que eu soube da existência dele, ele me tirou do sério, te ligando, te assediando com mensagens, te encurralando no beco, te perseguindo no hotel... Isso, junto da bagunça que minha cabeça estava me fez sair do prumo. Não vai mais acontecer, acredita em mim, eu me tratei na época e consegui controlar isso por mais de quinze anos, então posso controlar outra vez.
— Certo, Rick. Eu vou acreditar em você. Não digo que entendo, porque não entendo, mas acredito que você está sendo sincero, e meu amor por você é muito maior do que tudo isso. Mesmo porque, você ficou do meu lado mesmo quando constatou que eu era toda quebrada, toda problemática.
Ele a virou de frente para si; com olhos marejados, encarou-a com devoção.
— Você é a minha escolha, e se você está comigo, eu não preciso de mais nada. Por dois dias eu me senti a criança abandonada outra vez, e não quero sentir isso nunca mais.
— E agiu como criança, que bagunça tava isso aqui! — Ela fez um sinal com a cabeça, apontando a sala.
Ele riu, sem graça.
— Eu não sou assim, você sabe.
— Eu sei, e o que ainda não sei, eu topo descobrir do teu lado. Feliz Natal, Rick.
— Feliz Natal, Fada! — Ele a abraçou apertado. — Que bom que a gente tá junto hoje. Fiquei com medo de passar a data sozinho outra vez. Fiquei com mais medo ainda de ficar sozinho definitivamente.
— Eu também. Mas eu tô aqui agora, chega de remoer o problema, ok?
— Ok.
***
Pelo fogo, transmutação
Sem afago, lapidando o aprendiz
O que sobra é cicatriz
A sustentação é que a manhã já vem"
(Serpente - Pitty)
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*O transtorno explosivo intermitente (TEI) é uma condição psicológica que consiste em constantes explosões de raiva e comportamentos agressivos. Indivíduos com essa condição não conseguem controlar os seus impulsos violentos e descontam a sua frustração em objetos ou em outras pessoas.
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