46 - Dodecafônico
Dodecafonismo: técnica composicional que utiliza as doze notas da escala cromática de forma igualitária. Causa a sensação de complexidade, estranheza e abstração.
Rick acordou com o som distante de um alarme. Sentiu dificuldade para abrir os olhos, um torpor insistente o empurrava para o sono, mas o som estridente o puxava de volta. Lutando contra o entorpecimento, estendeu o braço até o celular e desligou o alarme.
Pela claridade, percebeu que já tinha amanhecido há um tempo. O travesseiro vazio ao seu lado mostrava que ele estava sozinho, e uma tala na mão direita o fez recobrar a consciência das últimas horas. Isso foi suficiente para fazê-lo despertar completamente.
Uma leve tontura o acometeu quando se ergueu da cama, provavelmente causada pelo efeito de algum analgésico administrado no hospital. Conferiu as horas na tela do celular: 10h31. Júlio o tinha deixado no flat perto das 6h da manhã, e Rick programara o alarme por causa do horário da medicação.
Olhou o travesseiro ao lado, vazio. Seus olhos correram a cama e repousaram sobre o a mesa de cabeceira onde sua própria aliança descansava ao lado do aparelho celular e um copo vazio. Pegou a joia e a segurou entre os dedos sadios da mão esquerda. Uma profunda tristeza o acometeu quando leu o nome de Eduarda gravado na face interna do anel.
Mesmo que tenha removido a aliança por conta da órtese, o verdadeiro motivo de estar segurando a peça fora do seu devido lugar o atingiu como uma martelada.
Após a radiografia e a constatação da lesão, os dedos estavam muito doloridos, e o médico ordenara que a peça fosse cortada para que sua remoção não piorasse o quadro. Todavia, Rick não permitiria que a aliança, um elo infinito e ininterrupto, fosse danificada, afinal, rompê-la seria destruir seu significado. Enquanto um enfermeiro foi em busca de algo para cortar o anel, Rick foi até o banheiro, ensaboou a mão e removeu, ele mesmo, a aliança.
Um mal-estar o acometeu ao se lembrar da dor que sentira ao fazer isso, e a sensação piorou quando se recordou da radiografia. Uma fratura na cabeça do metacarpo anelar direito junto a uma lesão na base da quarta falange, exatamente no dedo que deveria sustentar a aliança. Uma alegoria cruel de como uma decisão ou um ato impensado podia comprometer, até quebrar um relacionamento.
Ironicamente, não apenas o relacionamento com Duda estava ameaçado. Ele ainda não tinha se permitido pensar em como essa fratura o comprometeria profissionalmente. Como músico, deveria estar preocupado com isso, porém só pensava em Duda, em procurá-la para entender o que de fato acontecera na noite anterior.
Entristecido, resolveu tomar um banho. Não sentia fome, pensar em comer o fazia sentir enjoo e ele sabia que era porque estava ansioso. Volta e meia, a imagem de Enzo com o rosto inchado e ensanguentado surgia em sua mente, como flashes de um terror noir.
Se para ele a lembrança causava aflição, imaginava o quanto isso devia ter assustado Duda. Queria procurá-la, mas estava apreensivo. Talvez os conselhos de Júlio fizessem algum sentido e fosse melhor esperar que ela o procurasse quando se sentisse segura.
No entanto sua angústia foi mais forte. Ele precisava saber, precisava vê-la para ter a certeza de que ia ficar tudo bem. Resolveu, portanto, dirigir até o Centro, apesar do incômodo quando usava a mão ao volante. Ao menos o carro automático não exigia a troca de marchas.
À medida que a distância entre ele e Duda diminuía, a apreensão aumentava. Não tinha ideia de como ela o iria receber. A falta que sentia dela era maior do que a dor física, e a insegurança tornava tudo pior. Insegurança e vergonha por ter perdido o controle, por ter se desviado tanto do personagem que construíra para si, tão duramente cunhado ao longo de tantos anos.
***
Duda sentiu a presença de Rick antes mesmo de erguer os olhos. Ele estava parado na entrada da loja, aberta em pleno domingo devido à época de compras de Natal. Inspecionou os olhos cansados, a expressão angustiada... e a mão imobilizada. A visão fez seu coração acelerar, sua respiração falhar e suas mãos começarem a suar.
Ela não conseguiu coordenar o misto de medo e saudade, a vontade de correr para longe e, ao mesmo tempo, para dentro dos braços dele. Como sempre, diante dele, todas as emoções se confundiam, e ela chegou a pensar que estava tudo bem, até que ele deu o primeiro passo para dentro da loja.
Rick mirou Duda da entrada da loja. Como sempre, o fôlego lhe faltou quando seus olhos encontraram os dela. Dessa vez, as íris acinzentadas não refletiam calor, apenas confusão, e ele se lembrou do lago congelado na Eslovênia. Deu um passo em direção a ela e, no mesmo instante, ela deu um passo para trás. Ele sentiu o sangue subir, e o seu mundo foi abaixo.
— Duda...
À medida que se aproximava, ela ficava ainda mais tensa. Parecia que ela ia sair correndo a qualquer momento, tal qual um gato de rua. O que ele não daria para apagar as últimas horas da vida deles, arrancar toda a impressão ruim que agora estava gravada, indelével como as cicatrizes que ela já carregava.
Ela não falou nada, não o convidou para entrar nem o mandou embora, no entanto existia uma parede invisível entre eles. De repente, ele se sentiu exausto e, como ela não falava nada, ele resolveu abrir o jogo.
— Duda, eu não sei o que vi ontem à noite, mas eu tive a impressão de que Enzo estava forçando você a alguma coisa. Quando pensei nisso, eu perdi o controle. Eu faria qualquer coisa para defender você, eu... — Ele deu um longo suspiro e levou a mão boa aos cabelos, que estavam soltos porque ele não os conseguira prender. — Me perdoa, Duda. Eu nunca quis que você me visse assim.
Ela continuou calada. Viu o gesto dele enquanto ajeitava as madeixas e sua voz foi dar uma volta em outra dimensão, no mesmo lugar onde suas emoções caminhavam à deriva, indefinidas. Queria encontrar um ponto de ancoragem, um porto seguro, todavia o seu alicerce se desprendera, se despedaçara e ela não sabia mais onde se segurar.
Não devia ter ficado tão codependente dele. Não devia ter confiado que ele era um homem tão perfeito. Óbvio que ele não era perfeito, ninguém de fato é.
— Duda, por favor, diz alguma coisa...
— Você machucou muito ele — a voz falhou. O comentário era uma máscara para o que ela realmente sentia.
Não consigo, Rick. Eu olho pra você e perco a capacidade de raciocinar. Você rouba meu ar e meu bom senso, e eu dependo disso agora...
Um leve tremor no lábio inferior dela mostrou o peso de suas emoções, mas ele interpretou isso como medo. Ele fez uma nova tentativa de aproximação; mas ela, muito discretamente, se encolheu novamente. Ela não queria que ele percebesse o quanto estava confusa, assustada com os próprios pensamentos.
Depois de ter passado tanto tempo sofrendo nas mãos do pai e ainda carregar as marcas no corpo pelos anos de maus-tratos, ainda assim, uma parte dela era atraída para Rick, puxada como um imã. Ela tinha todos os motivos para dar as costas, para se proteger e se resguardar e, no passado, por muito menos ela teria feito isso, contudo Rick acendia nela a inconsequência e a imprudência. Ela concluiu que tinha mais medo de si mesma do que dele e, por isso, se afastou. Ela precisava entender essa avalanche de sensações dissonantes que perigava anular o seu amor-próprio.
Rick percebeu o afastamento, ainda que ela não tivesse se movido. Nesse instante, entendeu que não havia o que fazer. Agora Duda tinha medo dele, medo do que ele era capaz de fazer. Com profunda tristeza, concluiu que talvez essa marca permanecesse por muito tempo e não restava nada a não ser esperar que o próprio tempo resolvesse a questão.
Eles ficaram se encarando, um balcão os separava, e antes fosse apenas um balcão o responsável pelo distanciamento que estava prestes a ocorrer.
— Eu tive problemas sérios com isso no passado, Duda. Eu realmente fui um cara violento, fiz muitas merdas das quais me arrependo de verdade, mas eu era um moleque e passei dessa fase, pelo menos eu nunca mais tive um acesso de raiva, até ontem. Eu espero que um dia você possa me perdoar por isso. Eu vou fazer de tudo para remediar isso com o Enzo e com você. Eu te amo mais do que tudo e vou esperar por você o tempo que for necessário, — ele puxou uma das correntes que usava no pescoço, e ao lado da palheta, agora pendia uma aliança — e vou guardar isso aqui, perto do coração, até conseguir recolocar no dedo, e vou esperar que você a coloque de novo, só então vou ter certeza de que você me perdoou completamente.
Duda se sentiu destruída por dentro. Uma pessoa com problemas emocionais como ela não deveria ter que passar por tanta coisa de uma vez. A menção da aliança a fez se concentrar na mão imobilizada.
— A sua mão... — Segurou o choro. Sabia o que a lesão representava para ele, as mãos do músico, sua habilidade, sua conexão com tudo o que o tornava quem ele era.
— Não importa. Não é nada perto do que eu fiz com o Enzo.
Mas importava. Claro que importava, e ela queria gritar isso de peito aberto, mas as palavras não saíram. Essa mão que agora não podia fazer soar as melodias mais belas, os acordes mais emotivos, as levadas de baixo mais perfeitas... a mão que não podia mais sustentar o elo que havia entre eles. Tudo porque ele achou que devia defendê-la de qualquer coisa, e que a violência era o caminho para resolver questões antigas. Ela estava exausta de estar cercada de violência, então quando o viu se afastando e levando tudo com ele, ela permitiu que ele fosse.
No instante seguinte, a loja estava vazia, assim como seu peito. Ela girou a aliança para a direita, depois para a esquerda e contou as pedrinhas com a ponta da unha, então girou de novo, e de novo...
***
Pra ser sincero não espero que você
Me perdoe
Por ter perdido a calma
Por ter vendido a alma
Ao diabo.
(Pra Ser Sincero - Humberto Gessinger, Augusto Licks - Engenheiros do Havaí)
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