41 - Coro
Coro: grupo de cantores ou instrumentos da mesma família tocando juntos.
Duda desceu do Uber em frente à casa de Hannah, na Vila Mariana. O distrito, localizado na zona centro-sul da cidade, ficava numa região nobre e bem arborizada. A casa da musicista era situada a algumas quadras de um importante ponto turístico, o Parque Ibirapuera.
Num primeiro momento, Duda se constrangeu com o aspecto da residência de alto padrão. Sempre muito insegura com essas coisas, nunca soubera se comportar em ambientes assim, ou porque a roupa não era adequada, ou porque a boca era muito suja.
Quando teve acesso ao interior da casa, ela se sentiu numa novela de Manoel Carlos. Ali, ela poderia até adotar o pseudônimo de "Helena".
Não. Definitivamente não "Helena". Isso empregaria muita importância à personagem, e eu estou longe de ter um papel importante. Quem escreveria uma história comigo como protagonista?
— Ei, garota! Você veio! — Hannah a abraçou com carinho.
Nos últimos meses, a relação entre Duda e Hannah se estreitara significativamente. Ela quase podia considerar que tinha uma amiga de verdade.
— Cadê o Rick? — Alex perguntou.
— Ele disse que tinha que resolver umas coisas e não poderia vir.
— Arregão.
— Deixa o cara, Alex. Duda deve ter acabado com ele ontem, hoje ele não deve estar conseguindo andar.
— Cala a boca, Dani! — Duda respondeu ao vocalista da banda, vermelha igual a um pimentão.
— Isso é um elogio, garota! — Dani gritou, já de dentro da casa.
Ela relaxou e pegou uma lata de cerveja.
— Vamos lá pros fundos. — Hannah pegou na mão de Duda e a conduziu a uma ampla área nos fundos do lote, onde uma enorme piscina ocupava boa parte de um espaço arborizado, coberto por um gramado muito bem cuidado.
Na churrasqueira, o pai de Hannah colocava algumas peças de carne na grelha e, ao lado dele, a esposa elegantemente trajada e maquiada temperava algum tipo de salada numa enorme bancada parecida com aquelas de programas de culinária. Se a mulher estivesse usando saltos, Duda passaria a procurar as câmeras.
— Venha cá, Duda. Esse é o meu pai, Antônio, e a minha mãe, Helena.
Definitivamente, Manoel Carlos.
— Oi, tudo bem? Muito prazer! Sr. Antônio, fico feliz em ver que parece bem de saúde.
— Enquanto ele ficar longe da gordura da picanha, estará tudo sob controle — Helena comentou, com o cenho franzido.
— A melhor parte... — Antônio fez um muxoxo, e Duda riu do jeito dele.
Depois das apresentações, Duda se aproximou do grupo que relaxava nas espreguiçadeiras distribuídas assimetricamente sobre um deque de madeira, e ocupou uma delas.
— Tô te falando, cara. Neste ano, o "verdão" leva a Libertadores!
— Talvez, mas vai continuar sem o Mundial.
Duda riu da velha piada entre times de futebol que nunca perdia a graça, para quem não era palmeirense, era claro.
— E aí, Duda, está conseguindo levantar o braço direito?
Ela olhou para a própria mão e girou o anel com o polegar. Já tinha virado um toque. Ela girava a aliança para a direita, girava para a esquerda, ficava contando as pedrinhas com a ponta da unha, girava de novo...
— Vocês esconderam isso por quanto tempo?
— Uma semana — respondeu Alex.
— Foi difícil aguentar o Rick esses dias. O cara tava pilhado! — Dani afirmou.
— Estava mesmo, mas dá para entender — Nico comentou, um pouco desanimado.
— E como estão as coisas, Nico? — Hannah, sempre a mais empática, perguntou ao baterista.
— Ah... sei lá. A gente voltou a conversar esses dias — o baterista respondeu, referindo-se à ex-esposa —, mas só fica na conversa. Não sei, acho que acabou mesmo.
— Como você sabe que acabou? — Duda indagou, seu lado pessimista sempre interessado no que podia dar errado.
— Você não quer saber isso um dia depois de ficar noiva! — Dani brincou.
— Quero, eu quero saber. — Duda olhava Nico nos olhos. Ele pareceu apreensivo com o novo nível da conversa.
— Ah, Duda... Cada caso é um caso — ele, enfim, respondeu. — No meu caso, tudo degringolou quando a gente começou a esconder coisas um do outro. Não foi, tipo, fazer coisas escondido, não... foi parar de falar o que sentíamos, o que pensávamos. A gente não gostava de uma coisa, um comportamento ou qualquer bobagem, a gente ficava quieto, não falava. Chegou uma hora em que parecíamos estranhos morando na mesma casa.
— Mas daí, não era só voltar a conversar? Colocar as coisas em pratos limpos? — Duda questionou.
— Seria, se os pratos não estivessem cheios de outras merdas que um imaginou sobre o outro. Depois que você alimenta a ilusão, fica quase impossível matar o monstro que você criou. Por isso tem que dialogar muito no começo, pra não deixar o bicho crescer.
Duda ficou pensando a respeito disso. Ela sabia bem o quão difícil era eliminar os monstros interiores.
— Galera, se liga! Compus uma música nova! — Dani apareceu com um violão sacado sabe-se lá de onde, e começou a mostrar a canção.
Duda achou divertida a levada da música. Conseguia imaginar os demais instrumentos, cada qual fazendo o seu papel no arranjo final. A imagem de Rick voltou à sua mente, contextualizado dentro do estúdio repetindo exaustivamente os arranjos com a banda até ficarem perfeitos. Enquadrou a face concentrada, a linha entre os olhos e a mania de apoiar alguma coisa nos lábios, ora a haste dos óculos escuros, ora o pingente de palheta ou até mesmo a palheta enquanto demonstrava algum arranjo tangendo o violão.
Soltou um longo suspiro... seria possível que já estivesse com saudades?
— Duda, você tá triste? — Hannah perguntou, preocupada.
— Não... por quê?
— Tá quase chorando!
Duda notou os olhos marejados. Tinha virado uma bunda mole mesmo!
— Quer tocar alguma coisa? — Dani ofereceu o violão à Duda, que protelou.
Ela ainda travava quando alguém pedia para que cantasse ou tocasse. Não tinha uma vez que ela simplesmente aceitasse a sugestão ou fazia música sem ser solicitada. Talvez um dia ela conseguisse se livrar desse medo.
Alex pegou o violão das mãos de Dani e praticamente o jogou no colo de Duda. Ele sabia que ela não ia tocar se não fosse devidamente incentivada, e Rick não estava ali para cumprir esse papel. Ela ajeitou o instrumento e começou a cantar.
... Ninguém merece ser só mais um bonitinho
Nem transparecer, consciente, inconsequente
Sem se preocupar em ser adulto ou criança
O importante é ser você
Mesmo que seja estranho, seja você
Mesmo que seja bizarro, bizarro, bizarro...
(Máscara, Pitty)
E o grupo de amigos seguiu cantando, tocando, tomando cerveja e comendo churrasco até altas horas. Duda se pegou como espectadora em vários momentos da noite, ora admirando a verdadeira amizade de pessoas tão dissonantes, ora alimentando um fascínio, quase uma inveja branca da família de Hannah, composta por pai, mãe, irmãos, um Golden Retriever e todo o resto que figurava os cenários das sitcoms americanas. Ela se sentiu leve, entorpecida pelo álcool e, no peito, persistia uma nostalgia, uma vontade de ter Rick ali ao seu lado.
E como se os céus pudessem ouvir seus anseios, finalmente o viu, caminhando pelo gramado em direção ao grupo. Ela sentiu novamente aquela pontada no coração que mandava calor para o resto do corpo, seguido de um arrepio generalizado.
Ele estava deslumbrante, como sempre. Alto e forte, a roupa toda preta, a camiseta larga e propositalmente puída; o coturno curto; as correntes pendendo no pescoço; os braços musculosos e tatuados cheios de pulseiras de couro à mostra; aqueles cabelos longos presos de um jeito displicente no alto da cabeça; e a barba aparada o suficiente para fazê-la suspirar com a carícia leve e, ao mesmo tempo, picante que ocorria enquanto se beijavam.
— Por que o Rick tá caminhando em câmera lenta? — ela perguntou à Hannah, que a olhou com ar divertido.
— Ele tá andando normal... o quanto você bebeu? — A garota retrucou.
É claro. Era só na cabeça dela que o mundo parava enquanto ele caminhava em sua direção.
— E aí? Tudo beleza? — Rick cumprimentou o grupo quando se aproximou. Antônio lhe ofereceu uma cerveja, que ele recusou educadamente.
— Não quer comer nada? — Helena perguntou.
— Não, não. Muito obrigado. Só vim buscar a Duda. Como você está, Antônio? Está melhor? Cuidando desse coração?
Rick conversou por um tempo com o anfitrião, como sempre muito educado e gentil, e finalmente se aproximou dela, que já estava em pé esperando para abraçá-lo.
Ele levou as duas mãos ao seu rosto enquanto capturava os olhos cinzentos, e demorou um tempo maior do que o normal inspecionando a face sorridente. Com a ponta dos dedos, contornou a curva do maxilar e ajeitou seus fios soltos atrás da orelha. Com os polegares, ele acariciou os lábios rosados de modo leve, fazendo-a suspirar. O rosto estava tão próximo enquanto ele fazia esses carinhos que ela pôde sentir o hálito quente, e a antecipação do contato dos pelos da barba em seu rosto a encheu de ansiedade.
No entanto ele não a beijou, apenas manteve os olhos grudados nos seus de um jeito tão apaixonado e por tanto tempo que o grupo em volta começou a ficar constrangido e resolveu falar de qualquer assunto a fim de desviar a atenção do casal.
Ela admitiu que nunca ninguém a olhara assim.
Ele admitiu que poderia olhá-la para sempre.
— Vamos sair daqui. Preciso conversar com você — ele declarou, enfim.
***
E eu vou tratá-la bem
Pra que ela não tenha medo
Quando começar a conhecer
Os meus segredos
(Segredos — Frejat)
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