39 - Legato
Legato (ital.): indica que as notas devem ser tocadas de forma conectada, ligadas entre si, criando uma sensação de fluidez e continuidade.
Rick abraçava Duda sob os lençóis, entorpecido e ofegante. Ela se esticava sobre seu corpo molhado de suor, ainda trêmula pelo momento de prazer.
— Essa é sem dúvida a melhor parte...
— O quê? — Ele perguntou entre um fôlego e outro.
— Comemorar o noivado...
Nessa noite, depois do primeiro show de Duda, houve uma breve comemoração no Johnny-John. Várias pessoas foram parabenizá-la pela performance e pelo noivado, enquanto Rick apenas orbitava ao redor dela, absorvendo cada reação, cada sorriso e cada gesto da linda mulher ao seu lado, ansioso para tirar ela daquele local onde ela era de todo mundo, e levá-la para onde ela seria apenas dele.
E agora eles estavam no Tivoli Mofarrej, um luxuoso hotel de São Paulo. Quando tomara a decisão de fazer o pedido de casamento, ele fizera a reserva no hotel cinco estrelas sem se preocupar com o alto custo da hospedagem.
Rick nunca desejara se casar. Para ele, esses tipos de convenções já estavam ultrapassadas e ele questionava o porquê de as pessoas ainda fazerem isso, mas quando a ideia surgiu, fora tão repentina que ele nem chegara a conjecturar. Tudo o que ele sabia era que queria ter Duda ao seu lado para o resto da vida, simples assim.
Talvez tenha sido um pouco precoce, talvez acelerado, mas ele não era mais um moleque. Ele já era um homem maduro e entendera muito rápido que precisava seguir por esse caminho e, decisão tomada, agira como sempre agia em todos os aspectos da sua vida: objetivo, implacável e fugaz.
Talvez dissessem que o elo físico, um vínculo real e público, era uma forma aprisionar Duda a si, como uma algema com o intuito de controlá-la; talvez, de modo inconsciente e por medo de ser abandonado novamente, ele estivesse buscando garantir que ela permaneceria com ele; no entanto ele sabia que era totalmente possível se sentir preso a alguém sem a necessidade de algemas, alianças ou contratos. Ele entendeu que não podia ficar sem ela, e ela dizia que não podia ficar sem ele, então não importava se era prematuro, se estavam prontos ou não. Ele queria dormir e acordar com ela, e todo o resto no meio disso.
Quando tivera certeza da decisão e de como queria fazer o pedido, a primeira pessoa que procurara fora Alex. "Cara, ela vai te matar, se você fizer a proposta em público." Alex era o melhor amigo de Duda e o fora por anos, porém essa Duda de agora, apenas Rick conhecia. A relação deles fora se estreitando de tal forma que chegavam a saber o que o outro pensava sem necessidade de falar. Havia nuances da personalidade dela que apenas ele conseguira revelar, como o desejo íntimo de sustentar os parâmetros de uma garota normal, que era admirada pelo que fazia, que acreditava em si, que se achava linda e que podia planejar uma vida, e não apenas reagir a ela.
Ele soubera o que ela pensaria antes de ela mesma saber, tivera certeza de que ela aceitaria o pedido, pois o medo de relacionamentos sérios que antes servia de arrimo na vida dela fora extinto junto ao dele quando entenderam que o que eles tinham era muito mais do que uma relação. Eles se sentiam metades de um todo, como se só se completassem quando estavam juntos.
Alguns chamariam isso de codependência. Alguns nunca teriam uma vida tão conectada a outra desse jeito porque tinham medo disso. Rick já teve medo, mas agora não tinha mais e se, um dia, por alguma ironia do destino, acontecesse de eles não estarem mais juntos, ainda assim teria valido a pena cada segundo, porque quando se está com a pessoa que se ama, o tempo é irrelevante.
— Quanto é uma diária neste hotel? — Duda perguntou a caminho do banheiro.
— Você não quer saber — ele respondeu, entendendo que, se ela soubesse, brigaria com ele pelo que consideraria um "desperdício de recursos". Ele jamais consideraria qualquer gasto com ela como desperdício.
— Caraca, Rick... quantos metros tem essa banheira?
Ele riu e foi ao encontro dela na imensa banheira de hidromassagem e lá, eles continuaram o que haviam começado na cama.
Duda acordou no meio da noite e resolveu tomar um ar na sacada do hotel. A letargia das últimas horas ainda fazia seu corpo tremular. Caminhou pelo quarto olhando em volta, e concluiu que uma noite num espaço como aquele certamente custaria, no mínimo, o dobro do que ela ganhava em um mês. Rick não era muito de ostentar, então ela entendia que tudo isso era por causa dela e apenas para ela.
Ela já tinha passado da fase de lamentar o passado ruim ou procurar explicações para tudo o que dera errado. Agora ela vivia o presente e, cacete, como isso era bom! Como era incrível começar a acreditar que talvez as fadas fossem reais e que elas reservavam algo de bom.
No caso dela, não eram fadas e, sim, um único feiticeiro.
Por causa dessa perspectiva nova, ela aceitara quando Rick decidira financiar seu curso de Musicoterapia, como aceitara o lindo anel de noivado e, agora, aceitava a noite nesse hotel fantástico. Ela definitivamente aceitaria tudo o que viesse dele.
Teria perdido seu poder? Seu valor era menor agora por conta disso? Teria sido comprada e, por isso, se tornara menos mulher? Difícil saber. Ela nunca tivera nada que viesse de graça e, para alguém sem afeto ou o mínimo de suporte emocional, era fácil aceitar quando algo bom finalmente surgia logo ali, a alguns passos, sorrindo, tatuado, lindo e cantando em seu ouvido. Afinal, para ela, esse era o único jeito de finalmente experimentar algo assim.
Talvez fossem julgá-la por isso, mas ela não se importava, porque todo esse papo não passava de uma lorota de quem ainda não alcançara uma certa completude na vida, fosse emocional, financeira ou em qualquer esfera.
Ela voltou para o quarto e contemplou Rick esparramado no colchão. Sempre, absolutamente sempre que ela olhava para ele, seu peito inflava e o sangue corria mais rápido. Ele estava deitado de lado, parcialmente coberto pelo lençol. O abdômen bem definido subia e descia de modo compassado, e o lindo rosto cinzelado como que por Michelangelo estava sereno e em paz. Os cabelos, mais compridos do que quando o conhecera, agora passavam dos ombros e estavam soltos. Ele estava mais encorpado, também, depois que pegara firme na academia.
No único espaço do ombro que ainda não tinha sido coberto por alguma figura, uma nova tatuagem, feita há apenas um mês, retratava uma fada de cabelos cor de laranja surgindo de um torvelinho negro em meio a diversos botões de rosas. Escuridão, espinhos, superação e liberdade. Sem poder se conter, tocou a imagem, e como ele tinha o sono mais leve que uma pluma, acordou.
— Quer vir aqui? — ele sussurrou, ainda com os olhos fechados. Ela apoiou o queixo em seu braço e acariciou a espinha dorsal com a ponta da unha, observando como a pele dele se arrepiava ao toque.
— Estou bem, aqui. Pode voltar a dormir.
— Como se fosse possível, agora.
— Rick...
De súbito, ele se curvou e a puxou num abraço, prendendo-a contra o colchão. Ela se deixou abraçar rindo e, então, quando os lábios dele capturaram os seus, um telefone tocou.
— É o seu... — Duda escapou debaixo dele e olhou em volta, à procura do aparelho. Rick ficou intrigado com o telefonema no meio da madrugada e estendeu o braço para a mesa de cabeceira, alcançando o celular. Quando viu o nome e a imagem na pré-visualização de tela, sentiu como se um cavalo lhe tivesse dado um coice bem no meio do peito.
— Quem é a essa hora? — Duda perguntou, intrigada quando viu a expressão de assombro no rosto dele.
Ele não respondeu, apenas recusou a ligação e deitou o rosto contra o travesseiro, aturdido.
— Número desconhecido.
— Mas... Você pareceu meio assustado. O que foi?
— Nada, Duda. Eu estava meio sonolento e me assustei com o som do celular.
— Você me pareceu bem desperto agora há pouco — ela brincou, voltando a acariciar a costas dele com a unha.
Ele olhou para ela de lado, porém não se moveu. Aproveitou que uma das mãos segurava o aparelho sob o travesseiro e pressionou o botão para o desligar. Em seguida, colou o melhor sorriso que conseguiu nos lábios e a puxou de volta para si. Não podia se permitir pensar nisso agora. Era a comemoração do noivado deles, e o que tivesse que vir, que viesse amanhã.
***
Um pouco antes do amanhecer, enquanto Duda dormia, Rick se levantou com cuidado da cama e ligou novamente o aparelho. Suas mãos estavam tão suadas que ele quase o deixou cair. Na caixa de entrada, quatro ligações perdidas. Ele tocou na última chamada e esperou a ligação completar.
— Alô? Rick?
— Por que está me ligando?
***
Duda acordou e sentiu um frio repentino. Esticou o braço e notou a ausência de Rick, então se sentou na cama e, ao olhar em volta, entendeu que a razão do arrepio era a porta de acesso à sacada, que estava aberta. Ela se levantou para fechá-la, caminhando lentamente sobre o carpete macio. Passou pelo banheiro cuja luz estava apagada, cruzou o batente e então viu Rick do lado de fora, com o celular na orelha. Ele tinha uma ruga entre os olhos denotando irritação, e sua postura estava curvada e preocupada. Ela deu um passo ao encontro dele e, nesse momento, ele finalizou a ligação.
— Rick? Com quem você estava falando?
Ele olhou para ela, assustado. De onde ela surgira?
— Você tá acordada?
— Não, Rick... eu sou sonâmbula. Óbvio que eu tô acordada! — Pois é, Duda ainda mantinha algumas ferraduras guardadas. As pessoas não mudam, não é mesmo? Só aprendem a administrar quem realmente são.
Quando vivera na Europa, Rick visitara muitos lugares deslumbrantes. Certa vez, tivera a oportunidade de conhecer o Lago Bled, na Eslovênia, em pleno inverno. A experiência de caminhar sobre uma camada de puro gelo fora algo extraordinário e, ao mesmo tempo, assustador. Imaginava o quanto seria apavorante se aquele piso congelado simplesmente se abrisse sob seus pés.
Era exatamente assim que ele se sentia agora, como se estivesse parado bem no meio de um lago congelado. O medo se movia abaixo, como uma garra gelada que ameaçava sugá-lo desse momento perfeito em que sua noiva o observava da porta, seminua e aparentemente muito, muito intrigada.
— Rick?
— É um trabalho.
Ótimo. Ele estava noivo há aproximadamente o quê... seis horas? E já estava mentindo para ela. Sentiu o fel da própria mentira descer pela garganta, chegar ao estômago e queimar como fogo. Ele sabia que precisava falar a verdade, porém o medo era muito mais forte. Olhou para o piso de gelo imaginário e enxergou os monstros navegando sob a superfície frágil, prontos para devorar tudo assim que a primeira fenda surgisse.
E ela acabara de aparecer, com a mentira. Um trinco anguloso e irregular que prenunciava uma inevitável tragédia.
— Às cinco da manhã? Quem liga às cinco horas da manhã para falar de trabalho?
Duda sentiu uma agitação dentro do peito. Na verdade, um pouco mais embaixo, entre o estômago e os pulmões. A agitação começou pequena, como um breve ardor, e cresceu gradualmente conforme ela desconfiava que ele estava mentindo.
— É uma ligação de fora do Brasil. — Ao menos isso não era mentira. Ele buscou se convencer disso na tentativa de amenizar a culpa.
— De onde? — Sua agitação abdominal evoluiu para uma queimação no estômago.
Ela não queria criar caso, nem ressuscitar demônios antigos, então atribuiu o repentino mal-estar ao espumante que dividira mais cedo com ele enquanto se divertiam na hidromassagem. Não queria pensar que devia ser porque ele aparentemente estava escondendo algo dela. Não. Não daria crédito à desconfiança. Ele nunca mentira para ela. Em todo o tempo em que estiveram juntos, ela nunca tivera motivos para desconfiar dele. Até o beijo roubado que a loira dera nele, até nesse caso Duda acreditara na versão dele. Ele não mentiria para ela...
Ou mentiria?
— Da Irlanda. O pessoal da banda que eu gerencio, a Gevecht. Mas já resolvi, vamos entrar, tá ventando muito aqui fora.
Rick a segurou pelos ombros e a empurrou para dentro, com leveza. Ela ainda o olhava com desconfiança, mas ele calou todas as dúvidas com um beijo.
E que beijo! Ele envolveu os finos braços com as mãos enormes enquanto pressionava os lábios com energia, introduzindo a língua para dentro da boca como se tentasse arrancar algo dela, ou entregar algo, ela não conseguia discernir. Imediatamente seu corpo respondeu, ela sentiu o ventre expandir e pulsar em expectativa. Ele puxou a lingerie que ela usava com força, rasgando a peça no afã de libertá-la de qualquer barreira entre os corpos. A posse foi firme, urgente e sôfrega.
— Rick?... — Ela buscava entender o rompante. Com o coração batendo na garganta, puxou os cabelos dele a fim de olhá-lo nos olhos, e o que encontrou ali a desorientou, mas não apagou seu fogo.
— Você é minha, Duda. Minha! Nunca vou deixar você me deixar, entendeu?
— Por que eu te deixaria? — Ele calou os lábios dela com a língua e se deitou sobre ela na cama. Então não havia mais Duda ou Rick, nem ligações no meio da noite ou monstros submersos sob lagos gelados, ao menos até o amanhecer.
***
A riqueza que nós temos
Ninguém consegue perceber
E de pensar nisso tudo
Eu, homem feito
Tive medo e não consegui dormir
(Teatro dos Vampiros - Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá)
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