38 - Allegro
Allegro(ital.): "alegre" em italiano. Significa que a música deve ser tocada em um ritmo otimista e brilhante.
— Passa esse festim pra mim! — Jonas pediu do alto da escada. Duda pegou o ornamento de Natal e o entregou ao companheiro de trabalho.
— Posso acender as lampadinhas? — Ela perguntou, ansiosa.
— Calma, nem coloquei os enfeites ainda...
— Mas tenho acender antes porque, se tiver alguma parte sem funcionar, vai ser muito mais difícil tirar com um monte de enfeites por cima.
— Tá bom, acende lá, então — respondeu, entediado.
Duda correu até atrás do balcão e plugou o cordão na tomada. Centenas de pequenos pontos de luz se espalharam pelo bar. Ela parecia uma criança, sem conseguir disfarçar o sorriso que ia de orelha a orelha.
Não eram apenas as lâmpadas que curvavam involuntariamente os lábios dela, mas também os acontecimentos dos últimos três meses. As coisas finalmente estavam indo bem na vida dela, a terapia vinha dando resultado e ela se sentia bem mais segura.
Como resultado, ela finalmente começara a vencer a procrastinação. Dera um jeito no próprio apartamento, pintara as paredes, trocara as caixas por armários, limpara as gavetas e comprara toalhas e roupas de cama novas. Gato fora finalmente castrado e, bem, ele era um gato, continuava fazendo coisas de gato.
Ela e Rick estavam vivendo um momento incrível. Se encontravam quase todos os dias, fosse no bar ou por qualquer desculpa que ele usava para encontrá-la quando estava a caminho de algum projeto ou gravação. Algumas vezes, ela aproveitava o intervalo entre a galeria e o bar e o acompanhava em gravações. Por ser muito bem relacionado, ele a ajudava a fazer contato com pessoas relevantes do meio musical, e sua autoestima andava nas alturas.
Depois que voltou a tocar e a cantar, ela não parou mais. Rick conseguira um teste para ela participar do musical da Disney, O Rei Leão e, para aturdimento dela e zero surpresa dele, ela passara no teste. Não era para um papel de destaque, mas para uma vaga no coro, mas ela nem se importava com isso, afinal, era a Disney! Os ensaios começaram semanas atrás, e a primeira apresentação ocorreria dali a três dias, bem perto do Natal.
E os vampiros? Bom, eles foram pulverizados pela luz que agora permeava os dias dela.
A banda Dropp ia de vento em popa. Tinham feito show no festival João Rock e, depois disso, começaram a despontar convites para outros eventos fora de São Paulo. Por conta disso, Duda quase não via mais Alex.
Os resultados do primeiro single da banda nas plataformas digitais também deixaram Júlio bem satisfeito, por ser o principal investidor do projeto. Rick também levava a parcela dele como produtor e, no fim, todo mundo saíra ganhando.
E ela continuava trabalhando na galeria e no bar como bartender, só que agora, ela não carregava mais o lixo.
— Tá ficando bonito, hein? — Júlio chegou ao bar e cumprimentou Duda com um beijo no rosto.
Agora ela não era apenas a bartender dele, era a namorada do melhor amigo. Mais respeito, por favor!
— Se a Duda ajudar, eu consigo terminar hoje — Jonas resmungou de cima da escada.
É, algumas coisas continuavam iguais.
— Rick vem, certo? — Júlio perguntou de modo enigmático.
Além de não ser mais apenas bartender e ser oficialmente a namorada de Rick, algo a mais mudaria naquela noite, agora ela, finalmente, seria...
— Vem. Claro que vem. Ele não é doido de faltar na minha estreia.
Era quarta-feira, faltavam poucos dias para o Natal e, nessa noite, Duda faria seu primeiro show acústico, o primeiro de toda sua vida. Seria sua estreia num palco para se apresentar diante de um público de verdade como musicista.
Ela só aceitara topar a experiência depois de ter passado no teste para o musical. O fato dera a ela a autoconfiança necessária. Isso e a insistência de Rick, claro.
Mais tarde, faltando quarenta minutos para o início do show, Dani e Nico chegaram, esbaforidos.
— Desculpe, Duda, meu carro quebrou no caminho — Nico justificou.
— Tudo bem, Nico. Sem estresse. Está super em tempo de passar o som.
Nico e Dani se comprometeram a ajudar Duda em seu primeiro show. Nico ia tocar cajon*, e Dani faria um segundo violão. Eles chegaram a realizar três ensaios, tudo ficou bem bacana, um som que transitava entre o folk e o blues, com músicas de artistas internacionais e algumas composições que Dani gentilmente cedera a ela, já que ela ainda não se achava capaz de compor.
Rick se recusara terminantemente a participar do primeiro show dela. Inicialmente ela ficara chateada pensando que ele não queria fazer parte de algo tão primário, entretanto ele prontamente justificara a decisão. Segundo ele, ela tendia a se apoiar na experiência alheia para se esconder e se diminuir. Em outras palavras, ele não queria que ela o usasse como "muleta", porque sempre acreditara na capacidade dela de se garantir como artista. Ela imaginava que ele não queria falar era que, se estivesse no palco, roubaria totalmente o seu brilho.
Isso é o que você pensa, e não o que ele pensa. Para de dar corda pra insegurança!
Cinco minutos para o show, e nada de Rick aparecer. Duda subiu ao palco, a casa tinha um público moderado, comum para as quartas-feiras. Respirou fundo, sentindo que estava prestes a hiperventilar.
Inspira... expira... não pira, sua louca! Vai dar chilique agora? E cadê o Rick, porra?
Um minuto para o show e Rick finalmente apareceu na entrada do bar. Duda quase derreteu de alívio. Ele dirigiu um olhar dúbio a ela, o otimismo a incentivava, e o pesar demonstrava arrependimento pelo atraso. Ela nem teve tempo de apreciar como ele estava lindo, pois as luzes do palco aumentaram gradativamente enquanto as da casa diminuíam. Nico marcou o tempo, Dani sinalizou, e ela começou o show.
No início, o público pareceu indiferente a quem estava cantando. As noites de quarta-feira costumavam receber casais, um público reduzido e mais tranquilo, além disso ter música ao vivo no meio da semana era uma novidade.
Com o coração inquieto, Rick observava o nervosismo inicial de Duda. Ele sabia o quão fora difícil para ela dar esse passo, e uma parte dele temia que ela travasse, por mais que acreditasse que ela era totalmente capaz de fazer um excelente show. Contudo, à medida que ela avançava pelo repertório, os espectadores começaram a se envolver com a voz doce de raro controle que parecia insinuar-se por seus ouvidos outrora indiferentes.
Rick sentia o estômago tremular sempre que ela atingia um agudo com perfeição. As pessoas não sabiam o quanto isso era desafiador, emitir sons agudos cristalinos dessa maneira, sustentando uma afinação perfeita. Nem sempre tem a ver com a tessitura vocal, o que determina fisiologicamente se as vozes são agudas ou graves, mas tem a ver com controle, técnica, capacidade de abrir a boca e fazer ressoar as frequências certas impulsionadas pelo ar.
Definitivamente, Duda devia ter herdado o talento dos pais, e ainda bem que fora apenas isso. Olhando-a agora, tão linda e fascinante, ele se sentia mais uma vez suspenso no ar, completamente embevecido com a forma como a boca dela se curvava num leve sorriso entre uma canção e outra, no modo como os cabelos soltos se insinuavam por cima do ombro e acariciavam o braço do violão, e cada pequeno detalhe que o mantinha totalmente enfeitiçado. Ela o chamava de feiticeiro, porém fora ela quem o enfeitiçara e mantinha seu coração cativo.
Ele nem pensava mais no fato de ter convivido com Isadora Ferri, nem tencionava revelar seu passado para Duda, mas não podia negar que só estava ali, vendo-a cantar num palco, por causa da mulher que a abandonara há vinte anos. Especulava o que podia ter ocorrido no universo exatamente há vinte anos que, de alguma forma, alinhara o seu destino ao dela, quando ambos foram abandonados ao mesmo tempo para encontrarem seu porto seguro um no outro tantos anos depois. Talvez o tal segundo sol de Nando Reis tivesse feito isso, alguma força divina ou o Senhor Destino, como Duda costumava se referir a alguma força maior que fazia tudo acontecer. No fim das contas, não importava o motivo. O que ele sabia era que não conseguia mais viver sem ela.
Ao final da primeira etapa do show, o vozerio do bar tinha dado lugar a um silêncio contemplativo. Duda agradeceu e avisou que voltaria em breve, sem sacar direito se o público havia gostado ou não da sua performance, até que a plateia a surpreendeu com aplausos entusiasmados. Rick caminhou até o palco e a aguardou, ansioso. Ela desceu, o abraçou e lhe tascou um beijo na boca.
— Vamos tomar um ar no beco? — Ela sugeriu, sentindo o suor escorrer pelas costas e pelo vão entre os seios. Eles saíram pela porta lateral, e ele não conseguia tirar as mãos dela. Ela ria e tentava se afastar.
— Deixa eu respirar, Rick. Eu tô derretendo! Não sabia que aquelas luzes podiam ser tão quentes.
Rick a enxergava melhor agora que não havia um violão cobrindo-lhe o corpo. Estava trajando um vestido preto longo até os pés, que começava com alcinhas e ia abrindo no cumprimento, e uma grande fenda deixava ver uma das pernas até o meio da coxa, o que tornava o visual extremamente sexy. Era uma novidade pois ela nunca mostrava as pernas em público, envergonhada por se achar muito branca, e essa exposição era um bom sinal. Os cabelos estavam parcialmente presos num coque alto e mais da metade dos fios descia pelos ombros, fazendo contraste com a roupa escura. Dois longos cordões presos ao pescoço repousavam entre os seios; um sustentava uma opala, outro uma palheta, presente que Rick mandara fazer para ela. Estava maquiada também, com delineador, pedrinhas nas pálpebras, um batom escuro, quase preto, e inúmeras pulseiras de couro.
De todos os ornamentos e detalhes, o que mais impressionava era o sorriso quase infantil, meio Anna de Arendel, tão lindo que parecia que ela economizara a vida toda só para sorrir assim, num dia tão especial como esse.
— Vá se acostumando, fada. Essa será sua nova vida muito em breve.
Ela suspirou e se deixou abraçar de novo, aspirando o cheiro de couro e almíscar.
Apenas couro e almíscar. Sem tabaco.
Rick havia parado de fumar há uns dois meses. Ele jogara o último maço de cigarros fora ainda cheio. Nunca reclamava por ter parado, porém ela sabia que ele sentia falta. E ela, por incrível que pareça, sentia falta do cheiro do tabaco misturado ao aroma dele, talvez porque fosse tão característico dele desde o começo. Às vezes, ela percebia um aroma adocicado, muito diferente, até gostoso, e desconfiava que ele estivesse tentando fumar charuto, contudo ele ainda não havia contado isso a ela.
Nem tudo eles contavam um para o outro. Eles cederam a chave de suas moradias, compartilharam a senha dos smartphones, entretanto ainda escondiam detalhes da própria vida. Na verdade, qualquer relação acaba sendo assim. Nunca dá para falar tudo, absolutamente tudo para outra pessoa, porque algumas verdades ainda não são definitivas.
— Você demorou muito pra chegar. Eu fiquei preocupada, na verdade, fiquei um pouco em pânico.
— Me perdoa, fadinha. Eu precisei resolver um lance antes de vir pra cá. Mas eu cheguei, certo? Eu tô aqui com você.
— Você vive resolvendo algum "lance" em algum lugar, mas já tô me acostumando a isso. O que você achou do show?
— Foi muito bom, Duda. Você estava linda, cativou o público, fez uma boa escolha de repertório... Tem pouca coisa para ajeitar, quase nada. Foi um show quase perfeito.
Obviamente para ele nunca estava perfeito. Bom que fosse assim, sempre dava para melhorar o que já era bom. Se os músicos no geral pensassem assim, não haveria tantas músicas medíocres tocando por aí.
— Não sei se vou atingir a perfeição que você almeja, Rick. Você é muito exigente.
— Perseverança e tempo, Duda. Lembra sempre dessas duas palavras. Perseverança pra aperfeiçoar e não desistir, tempo pra aprender e deixar acontecer. Às vezes, demora muito para as coisas acontecerem num piscar de olhos.
E ele estava certo. A segunda entrada foi melhor do que a primeira, e Duda presumiu que, na semana seguinte, seria ainda melhor.
Rick observava ansioso a evolução da segunda parte do show, e seu coração se aqueceu em uma expectativa secreta. Sentia que chegara num ponto de importante estabilidade na vida, aos trinta e um anos de idade, uma carreira promissora, reconhecimento, uma certa fama, economias em dia, o controle emocional recuperado e a mulher dos seus sonhos em seus braços.
Nunca imaginaria que um vídeo aleatório pudesse fazer parte disso, despertá-lo para o amor da maneira mais inesperada, um amor por uma mulher que parecia tão fragmentada no início, mas com fissuras que se encaixavam perfeitamente nas suas arestas, e eles acabaram por curar um ao outro.
Quando Duda estava terminando de cantar a última música, para sua surpresa, Rick subiu ao palco. Ela notou que Jonas, Júlio, Matteo, Amanda e Caio se enfileiraram em frente ao praticável, o pessoal da cozinha a observava do balcão do bar, e Alex e Hannah se materializaram no meio do salão, vindo ela não sabe de onde, visto que o amigo tinha show em outro local nessa noite. A situação a aturdiu por não entender o que estava prestes a ocorrer. Ela finalizou o show e agradeceu sob aplausos de uma plateia bem interessada, então Rick pegou o microfone e, do nada, começou a falar.
— Duda, há nove meses, eu vi você nesse beco ao lado. Me lembro que eu fumava um cigarro, e que você estava bem irritada com alguma coisa. Quando vi essa sua cara de emburrada, eu saquei na mesma hora que não ia conseguir me livrar de você. Demorei para entender esse sentimento, pois cada vez que eu olhava para você, algo entrava em ebulição dentro de mim. Confesso que fui lento para sacar o que era. O fato é que eu me apaixonei por você naquela noite, me apaixonei por esse seu cabelo cor de fogo, por esses olhos claros, cinzentos, esverdeados ou azulados, que até hoje não entendi direito de que cor são. — A plateia riu, divertida. — Por sua pele tão branquinha que fica vermelha quando está acanhada, como agora.
— Rick, o que está fazendo? — ela sussurrou entredentes, sem desfazer o sorriso da última canção porque simplesmente se esquecera de como mover os músculos da face.
— Eu me apaixonei pelo seu sorriso — ele continuou, divertindo-se com a reação dela —, pela sua beleza incomparável e, principalmente, pelo que tem aí dentro de você. Sua essência, tão pura e delicada, mas que você tenta maquiar distribuindo palavrões — mais risos —; sua bondade, que te faz abrir mão de si mesma pelos amigos — olhou brevemente para Alex — e ser capaz de dar a vida por eles; sua generosidade, que te faz aceitar que gatos de rua invadam sua casa no meio da noite e que te impulsiona a ajudar os sem-teto que vivem na frente do seu prédio, os quais você conhece pelo nome; e tantos outros atributos que não quero dividir aqui, mas que tive o privilégio de conhecer nesses últimos meses. Hoje, eu afirmo, na frente de todo mundo, que não sou capaz de sobreviver nem um dia sequer sem essa sua luz, minha fada.
Sob suspiros e exclamações, ele se dobrou sobre um dos joelhos e estendeu uma caixinha preta em direção a uma Duda completamente apavorada e, ao mesmo tempo, fascinada.
— Eduarda Ferri, quer se casar comigo?
O bar mergulhou num completo silêncio. O coração de Duda acelerava, a garganta travava, as lágrimas apareciam, as mãos suavam, suas pernas tremiam. Parecia que ia entrar em pânico, mas por um motivo bom; estava prestes a ter uma crise, mas uma crise de felicidade. Era óbvio que ela ia aparecer toda ranhenta na fotografia de alguém, mas fazer o quê? Isso era ser amada, isso era o amor.
— Ricardo Moreno... O que eu posso dizer? Esse seu feitiço foi muito pesado, eu não tenho escolha. Eu amo você, é óbvio que SIM!
E a plateia celebrou com palmas e assovios. Duda se jogou nos braços dele, aos prantos, e ele a abraçou emocionado.
— Eu não acredito que você fez isso... — ela murmurou contra o pescoço dele, que riu depois a afastou, pescou um buquê de rosas vermelhas que até hoje ela não sabe de onde ele tirou, e lhe entregou. Ela segurou o buquê com a mão esquerda enquanto Rick colocava a aliança com pequenos diamantes incrustados em seu anelar direito.
— Eu vou te amar pra sempre, minha fada — depois a beijou com paixão.
Certamente, aquele seria o show do qual Duda nunca mais iria se esquecer.
***
E depois que tudo acabar,
você sobreviverá
Talvez no fundo do mar,
ou quem sabe até no ar
Transmutada em música...
(Pra Alegrar Coração de Moça — Ivan Lins, Salgado Maranhão)
_______
* Cajon: instrumento de percussão de origem peruana
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro