36 - Fermata
Fermata: indica que uma nota deve ser tocada por mais tempo do que sua duração padrão. A duração fica por conta do artista, basicamente suspensa no ar.
Na manhã seguinte, a alegria de brincar de casinha chegou ao fim, e Rick levou Duda direto para a galeria. Estava ansioso, não queria se separar dela. Até então, eles não tinham ficado tanto tempo juntos, e ele se sentia tão apegado agora que não queria mesmo que ela fosse embora.
— Duda, eu tô odiando que você vai voltar pra sua casa. A gente não pode ficar num lugar só? — ele jogou o assunto no ar, só para testar a reação dela.
— Que ideia é essa, Rick? Tá doido? Você não ia me aguentar um só dia!
— Eu aguentei três de boa, já é o triplo do que você pensou.
Duda olhou para ele e se imaginou dormindo e acordando ao lado de um homem assim. Que mulher em sã consciência não trocaria uma quitinete apertada e velha no centro da cidade por um flat numa área nobre que vinha com um Rick Moreno como bônus?
Duda. Ela não trocaria e nem sabia bem o porquê. Talvez ela não tivesse uma "sã consciência", ou apenas estivesse tão acostumada a destruir tudo o que conquistava que tinha medo de estragar a única coisa que a fazia feliz no momento.
— Não, Rick. Não daria certo.
Ele abriu a boca para argumentar, mas desistiu. Era perda de tempo levantar uma discussão no momento.
— Tudo bem, você quem sabe. Estou te mandando por mensagem o código do elevador e vou providenciar uma chave para você ter acesso ao flat, a hora que quiser, dia e noite, ok?
Não teve como não notar a decepção na voz dele. Ela ficou ainda mais constrangida com o fato de, obviamente, ele ser o primeiro a se abrir, a dar um passo e um voto de confiança. Ele se entregava, acreditava e se doava enquanto ela continuava se enterrando na areia igual a um avestruz. Providenciaria, ao menos, uma cópia da própria chave para ele também, assim, talvez ele se sentisse aceito e amado como merecia.
Ele se despediu dela com um beijo apaixonado, depois levou Gato para o apartamento dela. Não pôde evitar ficar chateado com a recusa tão imediata. Ela nem sequer pensara no assunto. Enfim, só o tempo para resolver as coisas, afinal, já estavam nessa, se fosse contar do momento em que tinha começado a rolar um clima, há mais de seis meses.
Eles avançaram muito nos últimos dias. Agora ele entendia melhor o que ela sentia, por tudo o que passara. Compreendia a depressão e os gatilhos de ansiedade que ela acumulava. Por outro lado, ela conheceu a neurose de abandono dele. Ele só não conseguia resolver uma questão: o passado. Esse ainda balançava como um pêndulo agourento sobre sua cabeça, pronto a despencar a qualquer momento.
É só deixar a coisa rolar mais um tempo. Dizer a verdade agora não vai trazer benefício algum, deixa como está e depois resolve. Curte sua ruiva maravilhosa, sedimenta o que você tem com ela, e então, quando forem conversar sobre isso, vai ser de boa...
Rick pensava nessas coisas e torcia para que fosse verdade.
***
Na galeria, Duda também tinha o pensamento em Rick e sobre o quanto avançaram. Musicalmente, ela estava finalmente começando a se soltar, e isso tudo era tão maravilhoso que ela chegava a temer que algo ruim pudesse acontecer para estragar tudo.
Para de rogar praga sobre si mesma! Você está com o cara mais maravilhoso do mundo, se descobrindo, se curando... Não fica inventando desculpa pra ser infeliz!
Perto do meio-dia, para sua surpresa, Alex apareceu na galeria.
— E aí, tudo bem? Como tá esse braço? — ele perguntou enquanto a cumprimentava com um beijo no rosto.
— Está curando, ainda dói um pouco e repuxa quando eu encosto, mas tá de boa.
— Fiquei bolado naquela noite. Desculpe não ter ido atrás de você no hospital, eu realmente fiquei bem... aflito com a cena.
Duda o viu se contrair e suspirar. O semblante estava caído, sombrio, e ela sabia bem o motivo. Nenhum dos dois queria voltar àquela noite de dez anos atrás.
— Tudo bem, Alex. Júlio cuidou de mim, depois Rick. Eu estava em boas mãos, sei que você não me abandonou e nunca me abandonaria. Se eu estou aqui na sua frente, é porque você não me deixou. Também sei que tudo isso ressuscitou alguns demônios que não queremos ver de novo, não é?
Alex suspirou, ainda entristecido. Duda não gostava de ver o amigo assim. Sempre que ele ficava taciturno desse jeito, acabava se enfiando em algum beco à procura de drogas.
— Como estão as coisas na casa do pastor?
— Ah, normal. Agora eu tô preocupado em sair de lá. Acho que já deu, tô abusando do velho.
— Ele quer que você saia?
— Não, não. Na verdade, não quer que eu saia. A dona Maria, mulher dele, me trata como se eu fosse um filho. Sabe que eles não tiveram filhos, né? Acho que estão alimentando alguma fantasia bizarra de que sou filho deles. Nada a ver!
— Complicado, né? Mas você me parece tão bem... talvez esteja sendo bom pra você.
— Talvez sim, mas já tive minha cota de decepções, Duda. Daqui a pouco, eu vou ser o cara que não deu certo dentro de outra casa, não quero passar por isso de novo.
— Você não devia projetar seus pais biológicos no pastor e na esposa dele. Não é justo com eles.
— Tenho pensado nisso também. Eles, o pastor e a esposa, querem que eu visite meus pais. Acham que eu preciso tentar me acertar com eles, resolver o passado.
Duda ficou em silêncio. Nesse assunto, ela não tinha a menor condição de opinar. Se pudesse se reencontrar com os pais, ela jamais o faria. Compraria uma passagem para o inferno, mas não aceitaria um reencontro com eles, nem fodendo.
Talvez ela os encontrasse no inferno... Que merda.
— O que você tá pensando em fazer?
— Ainda não decidi. Muita coisa tá rolando agora.
— Como está o pai da Hannah?
— Ah, ele já tá em casa. Vai ter que parar de comer uma caralhada de coisas e vai precisar fazer alguma atividade física supervisionada, tirando isso, o velho tá zerado.
— E a Hannah? Como vocês estão?
Ele deu um sorriso torto antes de responder. A expressão era um charme e Duda sempre achou que ele usava isso como arma de sedução. Alex era, de fato, muito bonito.
— Ah, sei lá. Tá da hora. Ela é bem engraçada, carinhosa, o oposto de você.
— Obrigada pelo elogio — ela respondeu com um sorriso falso, depois deu um safanão nele.
— E você e Rick? Se acertaram?
— Sim... eu cantei pra ele.
— Sério? Caraca! Isso me surpreende mais do que se você tivesse feito um ménage com aquela loira do bar...
— Para de falar merda, Alex! Como você é besta!
Ele deu uma gargalhada e, então, desabafou:
— Ele te faz muito bem, Duda. Dá pra ver que ele gosta de você de verdade. Porém não mais do que eu, claro.
— Nunca mais do que você, Alex. A recíproca é verdadeira.
Ela deu um abraço demorado nele, que ficou emocionado com o gesto.
— A gente tá conseguindo né, amigo? Estamos saindo da merda juntos, cada um do seu jeito. Fico feliz com isso, fico feliz por tudo o que nos trouxe até aqui.
— Não fode, Duda... agora tô chorando!
Ela riu e enxugou as próprias lágrimas. Eles ficaram um tempo ali, lado a lado, apoiados no guarda-corpo da galeria, contemplando o movimento de pessoas que iam e vinham. Tanta gente, com tanta história. Eles nunca saberão o que cada um viveu, porém estavam ali, respirando o mesmo ar, debaixo do mesmo sol que nasce para todos, sejam eles bons ou maus.
***
Não é sobre ter todas as pessoas do mundo pra si
É sobre saber que em algum lugar alguém zela por ti
(Trem Bala - Ana Vilela)
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