35 - Uníssono
Uníssono: : concordância perfeita de sons ou vozes. Na música, significa que as notas estão sendo executadas ao mesmo tempo e com a mesma frequência.
Depois da conversa, Duda ficou exausta e Rick sugeriu que ela descansasse, então ela foi até o mezanino e dormiu quase que instantaneamente. Ele passou a tarde gravando as trilhas, depois levou um bom tempo exportando as faixas gravadas para enviar ao estúdio. Foi ótimo trabalhar, espairecer, mas mesmo enquanto trabalhava, não conseguia tirar o relato dela da cabeça.
Finalmente compreendeu por que ela nunca quis falar do passado. Era pesado, explícito, a expunha de forma vulgar e cruel e, por um momento, ele se arrependeu de ter insistido em conhecer a história dela. Ela sabia que ele não poderia mais olhá-la da mesma forma, e só agora ele aceitava essa verdade.
À noite, eles resolveram dar uma volta no bairro e foram até um bistrô próximo ao flat. Pediram uma entrada e um vinho e ficaram um bom tempo conversando sobre frivolidades. Num determinado momento da noite, um casal começou a montar o som entre as mesas e iniciaram um show de música ao vivo. O repertório que transitava entre jazz e MPB agradou a ambos, mesmo com arranjos simples e equipamentos limitados.
— Gostaria de te ouvir fazendo música de verdade, Duda — ele comentou sem desviar os olhos do casal de músicos.
— Eu gostaria de poder, Rick.
Depois de tudo o que ela lhe contara, ele finalmente compreendeu por que a música era um problema para ela. Ao longo dos anos, os traumas lhe haviam suplantado completamente o prazer pela música. Ele bem que gostaria de ressignificar isso na vida dela.
— Você pode. É só tentar... Você já chegou tão longe hoje!
— Talvez... Vamos ver.
Eles voltaram ao flat. Ela foi até a janela e ficou contemplando as luzes da cidade. Sentia-se leve, tranquila, feliz... Como se ao menos um dos vampiros tivesse sido destruído quando ela dividiu a própria história com Rick. Uma parte dela estava livre de sombras e medo, queria poder isolar esse momento para nunca mais se esquecer.
Ele se aproximou dela por trás. O calor do corpo pôde ser sentido antes mesmo de ele tocá-la. Ele era sempre tão quente, tão presente, era impossível não senti-lo, não perceber quando ele se aproximava. Ele a envolveu pela cintura e apoiou o queixo no topo de sua cabeça.
— Rick... tô sentindo tanto a sua falta — sussurrou e fechou os olhos quando o sentiu completamente apoiado em si. O contato a embalou e despertou cada célula do seu corpo.
— Faz tempo, não é? Tem o quê, três semanas?
— Quase três semanas... — sussurrou, sentindo uma perturbação gostosa no baixo ventre, estimulada pelos polegares que massageavam seus ombros. Os movimentos lentos eram carregados de sensualidade ainda que parecessem inocentes. Algo no ritmo e na pressão dos dedos fez sua pele toda vibrar em resposta.
Rick percebeu quando a intenção da carícia atingiu o objetivo e levou a boca ao pescoço esguio, sem interromper a massagem. Ela arfou e se apoiou nele, que sentiu o corpo teso a ponto de doer. Seu coração começou a bater mais rápido e o desejo cresceu de igual modo.
— Rick? — ela ofegou, quando a língua dele tocou o lóbulo de sua orelha.
— Duda... — ele sussurrou enquanto suas mãos abandonavam os ombros e se insinuavam sob a camiseta larga a partir das coxas, subiam roçando os dedos pela virilha até a cintura fina e continuavam a massagem na região do umbigo. Quando as pontas dos dedos tocaram a borda da calcinha, ela sentiu as pernas amolecerem.
O ar escapou por seus lábios, espelhado pelo ruído da respiração dele quando os dedos entraram em sua lingerie e alcançaram seu centro pulsante e úmido. Sem poder mais se conter, ela se virou e o beijou. Chegou a gemer de satisfação quando ele aprofundou o beijo.
As línguas se tocaram no mesmo afã das mãos que se buscavam. Ela queria que ele avançasse mais, porém os estímulos não passavam da superfície. Ela chegou a especular se ele não a estaria torturando, estava completamente cobiçosa de um contato mais íntimo quando o reclamou.
— Rick... eu quero você...
— Não tá mais sentido dor? — ele perguntou, ofegante.
— Que dor?
Ele riu e a suspendeu nos braços. Ela o circundou com as pernas e voltou a beijá-lo enquanto ele caminhava até o sofá, se inclinava e se desenroscava dela com delicadeza. Os beijos continuavam, cada vez mais longos e profundos na medida em que ele removia as roupas que os separavam numa lentidão torturante. Sua pele tremia de expectativa cada vez que ele a tocava e encontrava a pele nua, contudo notou que ele o fazia de modo contido, quase vacilante. Comovida, ela constatou que ele estava inseguro de onde e como tocá-la.
Que inferno! Por essa razão não queria contar nada sobre si. Agora, quando ele visse suas cicatrizes, seria lembrado da história toda.
— Rick... não deixe meu passado te deter. Por favor.
— Duda, não consigo esquecer, o modo como você foi tratada... Não quero que você seja ferida nunca mais. Eu te desejo tanto, tanto que tenho medo de que isso seja demais, tenho medo de perder o controle com você...
Ela se ergueu e o puxou pelas correntes do pescoço.
— Rick, me mostra. Me mostra o que você sente.
Ele a beijou e se posicionou de joelhos, de frente para ela, e continuou as carícias com os dedos, com a boca e com a língua até que ela ficou pronta para recebê-lo. Só então ele escalou o corpo sequioso e a penetrou de modo lento, porém hesitante.
Ele fez um esforço sobre-humano para se conter. Estava com medo. Que merda! Ele viu a frustração no rosto dela, porém não conseguia se soltar. Ele a desejava demais, há dias tudo o que ele quis foi tocá-la, senti-la novamente, mas não estava seguro.
— Rick, olha pra mim! — Ela puxou o rosto dele até a altura do seu — eu preciso disso. Eu preciso saber como deve ser. Eu quero que você perca o controle, entendeu? Eu quero saber que a sua força pode ser algo bom, então preciso que você se solte e me mostre toda a força do seu desejo, assim como me mostrou que o amor pode ter um significado muito além de apenas dor... Então, Rick, o que vai ser?
Uma sombra turvou os olhos amendoados, e ele não conseguiu mais se conter. Com um movimento ágil, virou-a de costas para si, segurou um punhado dos cabelos alaranjados e a penetrou com força, e mais força, até que ela gemeu alto quando sentiu os cabelos puxados e a potência com a qual ele se movia. Ele percebeu quando o controle se liquefez completamente e escorreu pelo seu corpo, assim como o suor descia por suas costas e, à medida que avançava dentro dela, o corpo dela o recebia e se expandia. Quando ela gritou seu nome em meio a palavrões, uma onda incontrolável de prazer se concentrou em seu quadril, e ele deixou ir, cada vez mais rápido e mais forte até atingir o ápice.
Exaurido, ele deixou o corpo desabar sobre ela. A mente anuviada não se preocupou se estava sendo pesado ou se a tinha ferido, porque tudo jorrara dele quando gozara dentro dela.
— É disso que eu tô falando, Rick... — ela sussurrou, lânguida e entorpecida. Sentiu o peso dele sobre si, a respiração acelerada e quente em sua nuca, a umidade do corpo firme em sua pele, e jurava que podia sentir o pulsar frenético do coração contra suas costas.
— Você... sempre... me... surpreende... — ele murmurou contra seus cabelos, ofegando entre as palavras, sem fôlego, mas plenamente satisfeito.
***
Na manhã seguinte, Rick acordou com a sensação de ter dormido dias seguidos. O corpo completamente recuperado o fez saltar da cama. Estava feliz, de um jeito inédito. Duda ainda dormia, Gato se espreguiçava aos pés dela e se preparava para receber a dose de ração à qual tinha direito.
— Você não vale nada, não é mesmo? Uma bola de pelos que unhou toda a capa da minha guitarra.
Isso tinha deixado Rick puto, porém ele não reclamou com Duda a respeito. Não era culpa dela, afinal. Mesmo assim, ele ainda achava o bicho muito engraçado e fofo, enfim, não há explicação para o efeito que os gatos causam nos humanos.
Rick trabalhou com afinco na gravação das últimas músicas e, enfim satisfeito com o resultado, exportou as trilhas e as enviou ao estúdio. Como estava usando fones de ouvido, não ouviu quando Duda se aproximou e levou um susto quando ela o agarrou pelos ombros.
— Cacete, Duda... que susto!
— Bom dia, meu bruxo lindo...
Ele riu e se voltou para ela.
— De onde veio essa história de me chamar de bruxo?
— Você me chama de fada!
— Tá, mas você se parece com uma fada.
— Fadas não existem, bobo. Já bruxos... — ela ronronou e trilhou do pescoço ao abdômen dele com a ponta dos dedos.
— Ok... O bruxo aqui tá começando a ficar com fome...
— Oh, céus! — Ela levou a mão à testa numa pose dramática. — Será que teremos um sacrifício humano hoje? Você está pensando em devorar alguém?
— Vem cá... — Ele a puxou para si, e ela caiu sentada em seu colo, rindo enquanto tentava fugir do abraço.
— Não, é sério... eu tô com fome mesmo, de comida — ele respondeu, ainda rindo. — Você quer comer o quê?
— Tanto faz...
— Tanto faz, "tanto faz"? Ou qualquer coisa menos o que eu decidir?
— Tanto faz, Rick.
— Lasanha, então?
— Hm, lasanha não.
— Aaaah, Duda... — Ele fez cócegas nela, que riu até os olhos ficarem cheios de lágrimas. Ela percebeu que nunca, em toda a vida, tivera a experiência de chorar de rir. O pensamento a fez se sentir ridícula, tanto por estar realmente chorando de rir quanto por perceber o quanto era infeliz e não sabia.
— Tô brincando, pode ser lasanha, sim!
Rick pediu o prato por meio de um App, fazendo Duda rir dos pacotes de macarrão instantâneo enfileirados no próprio armário. Como era fácil quando não se precisava ficar contando cada centavo...
Depois do almoço, Rick pegou o violão e ficou dedilhando arranjos aleatórios. Duda se lembrou da conversa do bar e, como se pudesse ler seus pensamentos, ele ofereceu o instrumento a ela.
Viu só? Bruxo até o talo!
— Tenta, Duda. Você consegue.
Ela sentiu a garganta travada. Merda! Por que tinha que ser tão cagona? Também pudera, o cara era ninguém menos que Rick Moreno, produtor musical internacionalmente conhecido, como conseguiria cantar na frente dele? Olhou para ele e a expressão cheia de expectativa só fazia piorar sua insegurança.
— Não sei, Rick... não sei nem o que cantar...
— O que for mais fácil para você. Vá... não pensa muito!
— Tem muito tempo que não uso a voz, deve estar totalmente sem controle...
— Não importa, só tenta, por favor, por mim...
— Apelão...
Ela posicionou o instrumento e buscou nas memórias qualquer coisa que já tivesse tentado, até que se lembrou de uma canção da qual gostava muito, uma versão em português de uma música de Charles Chaplin, intitulada Smile. Improvisou uma breve introdução, os pontos no braço direito repuxaram um pouco, porém ela não se importou, porque já tinha começado e não queria mais parar.
Primeiro, a voz saiu tímida, mas foi se soltando aos poucos à medida que ela percebia a resposta adequada das cordas vocais. O som saía doce, aveludado, rouco como uma carícia. Rick se arrepiou inteiro e recostou no sofá, extasiado.
Sorri
Quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos, vazios
Sorri
Quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador
Sorri
Quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados, doridos
Sorri
Vai mentindo a tua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz
(Smile — Charles Chaplin / G. Parsons. / J. Turner Versão: João de Barro)
Ela finalizou a canção com um acorde dissonante e olhou para Rick, cheia de expectativa.
— Ei... Rick. A música manda sorrir, não chorar... — Ela se espantou por ver lágrimas no rosto dele. — Não foi tão ruim, não é?
— Não. Não foi nada ruim — ele respondeu, constrangido com a própria reação. Enxugou os olhos e pegou o violão que ela lhe estendia. — Foi perfeito. Mais que perfeito.
Ela sentiu o peito inflar de contentamento com o elogio dele. Rick percebeu que ela realmente não fazia ideia do quanto era boa. Ainda impactado, ele pensou numa forma de convencê-la disso. Não se tratava de cantar com técnica e fazer malabarismos com a voz, não era esse o caso dela, e sim o timbre que impressionava, firme, sedoso, o controle perfeito da sustentação do ar nas notas médias; a precisão com que o timbre transitava nas diferentes regiões, do grave ao agudo, sem nenhuma falha ou imperfeição; o rouco proposital ou fry que ela imprimia nos inícios de frase e o vibrato cristalino nas finalizações. Era algo muito raro de se ouvir, profundamente envolvente e tocante. Ele queria ouvi-la cantar mais; queria ouvi-la cantar para sempre.
— Acredita em mim quando digo, Duda. Você é FODA!
***
À noite, enquanto eles jantavam os restos da lasanha do almoço, Rick mostrou à Duda alguns projetos nos quais estava trabalhando. Chegou a oferecer a ela uma chance de participar de uma audição para a gravação de trilhas sonoras para programas de TV. Mesmo insegura, ela não descartou a possibilidade de fazer um teste em estúdio.
— Você acredita mesmo que eu conseguiria?
— Duda, o seu timbre é perfeito pro job! A personagem é uma fada!
— Tá de zoeira! Sério?
— Sério, tô falando sério! — ele respondeu, rindo.
— Nem ferrando que eu vou fazer!
— Para de ser chata! Aceita que dói menos. Vou tomar um banho. Você vem?
Rindo e em meio a brincadeiras, ela foi com ele, ainda caminhando nas nuvens.
***
Eu pensei te dizer tanta coisa
Mas pra quê, se eu tenho a música?
(Bem Simples - Mariozinho Rocha, Ricardo Feghali)
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