32 - Mordente
Mordente: variação melódica que indica que uma determinada nota deve ser tocada muito rapidamente, alternando duas notas. Pode ser usado para suavizar a transição entre duas notas, criando uma ligação mais fluente e suave na melodia.
O drama desproporcional fez Rick se sentir ridículo, porém não conseguia mais ficar onde estava. Por mais que estivesse preocupado com a saúde dela, por mais que a amasse, ele precisava sair dali antes que conseguisse, finalmente, destruir qualquer chance de manter o relacionamento.
Estava sendo maduro? Não, nem um pouco!
Ela acabou de sofrer um acidente na sua frente, você quase teve um treco por causa disso, agora está agindo como um completo desequilibrado, seu idiota covarde!
— Espera! O que você tá fazendo? Rick, volta aqui... — ela o enlaçou pelo braço.
— Tudo bem, Duda. Não quero te pressionar — ele tinha a voz controlada, mas sentida. Ela sabia que ele estava triste e não conseguia entender o motivo.
— Me pressionar? Do que você tá falando?
Ela o enlaçou pela cintura e ele sentiu o corpo reagir com um misto de emoções sem sentido: desejo, raiva, medo e frustração.
— Duda... melhor eu ir embora antes que...
— Antes que o quê, Rick?
Ele soltou o ar e a encarou. As írises cinzentas estavam embaçadas por lágrimas não derramadas. Ele teve tanto ódio de si mesmo por fazê-la chorar que quase se ajoelhou e pediu perdão, contudo, estava magoado por coisas que sequer entendia completamente. Confuso pela avalanche de sentimentos opostos, terminou por puxá-la contra si num beijou firme, quase rude, como se pudesse fazer evaporar as emoções sem sentido que o assolavam. Ele só queria se sentir seguro outra vez.
Duda não entendeu nada. Afinal, ele ia sair ou ficar? Ele queria terminar com tudo ou terminar na cama com ela? Confusa, deixou que ele aprofundasse o beijo e se agarrou a isso como um bote salva-vidas. Correspondeu à carícia e parecia que tudo iria se resolver, até que ele a apertou e, acidentalmente, pressionou seu braço ferido. Isso a fez se encolher.
— Ai, merda...
Ele se afastou num pulo e a encarou, aflito, enquanto ela segurava o braço machucado.
— Duda, me desculpa, foi sem querer...
E lá estava. Ele viu o controle ruindo aos poucos, trazendo de volta o adolescente que distribuía porradas para não ter que lidar com o próprio medo. A necessidade de ir embora aumentou exponencialmente.
— Não foi nada, Rick... — no passado ela teria ficado com medo, mas com ele, tudo era diferente. Era óbvio que o aperto havia sido acidental, Rick nunca fizera nada que fosse motivo de preocupação nesse sentido. — O seu afastamento me machuca muito mais do que o seu aperto. Você tá estranho há dias! Nem parece a mesma pessoa...
— E você acha que me conhece... tá tão focada em si mesma que nem percebe o que eu sinto ou penso — deixou escapar, e seus pensamentos o condenaram. Você vai mesmo ferrar com tudo de vez.
— Você tá se escutando, Rick? Eu tô aqui perguntando qual é o problema, e você dizendo que eu não me importo e só fala coisas sem sentido!
Ela tinha razão. Ela estava terrivelmente certa, e ele fazendo de tudo para merecer ser abandonado de novo, como já dizia Tim Maia: "Me dê motivos pra ir embora...". Mais uma vez deixou o ar sair, lento e pesado; largou os braços ao lado do corpo e a encarou novamente por um tempo, ponderando. Resignado, decidiu que se ela queria tanto saber qual era o problema, então que segurasse a bronca.
— Eu não quero isso. Não quero uma relação com uma pessoa que se fecha, que não confia, que não se deixa conhecer. Isso tá acabando comigo, Duda! — Finalmente ele expressava em voz alta o que sentia há meses.
As palavras atingiram Duda em cheio, bem no meio do peito. Seus olhos vertiam as lágrimas acumuladas quando respondeu:
— Como chegamos a isso, Rick? O que mudou? Eu avisei você que eu era problemática! Eu mandei você embora, mas você ficou! E agora? Por que precisa que eu te convença de alguma coisa? A gente não pode simplesmente se curtir? Eu quero ficar com você, isso não é suficiente?
— Suficiente? Vamos falar de suficiência, então. Como você acha que eu me sinto quando sei que Alex sabe tudo da sua vida, até o motivo de você ter essas marcas no braço, mas você nunca me contou? Como acha que eu fico toda vez que você tem um pesadelo e me acorda no meio da noite, mas nunca me conta o que sonhou? E por que nunca fala da sua família, ou me diz qual foi o motivo de você parar de fazer música? Por que você não me fala nada acerca de si mesma? Como acha que eu me sinto sendo excluído da sua história desse jeito? Só posso concluir que não há lugar na sua história pra mim!
Duda percebeu que havia mais ali do que curiosidade. O homem maduro, equilibrado e centrado, no fundo, não era tão perfeito assim. Talvez fosse pela história dele, o abandono na infância, o bullying na adolescência, o medo estava entranhado nele. Ela bem sabia como o passado sempre podia voltar para assombrar, por mais que se tentasse enterrá-lo. O medo é o gatilho mais poderoso de todos, e ela entendia tudo a respeito disso.
— Rick... essa parte da minha vida só diz respeito a mim. É do meu passado que estamos falando, e isso não tem nada a ver com você. Eu não quero o passado interferindo no nosso futuro, já não basta tudo o que eu carrego por causa disso? Eu quero viver coisas novas com você, será que você consegue entender isso?
— Se é assim que você pensa, então não sei mais o que te dizer. Não há futuro sem entender o passado, Duda! Achei que você já tivesse aprendido isso na terapia, na escola, na vida!
— E que porra você sabe sobre terapia? Mas que merda, Rick! Para de ser tão...Porra! O que você quer de mim, afinal? Por que a gente tá brigando do nada? Tudo que eu queria era ficar com você essa noite, bater um papo sobre como você é incrível tocando contrabaixo, reclamar que você me manteve de molho por duas semanas, esquecer que agora vou ter uma nova cicatriz no braço... por que você tá agindo assim? — as palavras saíram falhadas pela força que ela fazia para não desabar na frente dele.
— Você é tudo pra mim, Duda — ele respondeu após outro longo suspiro. — Eu é que pareço não ser tudo para você. Eu sou esse tipo de pessoa, entende? Comigo é tudo ou nada. Sempre fui assim com tudo! Pode me chamar de egoísta, de mimado, de obstinado, foda-se! Esse é quem eu sou, e não tô disposto a andar num topo de muro pra ficar com você!
— Então... você tá indo embora? É isso? E aquele papo de que você só ia partir se eu te mandasse embora?
— Existem muitas maneiras de fazer isso sem precisar dizer as palavras, Duda. Você não precisa exigir que uma pessoa fique num lugar em que ela nunca pertenceu de fato.
Ela deu um passo atrás. As palavras dele entraram nela como uma lâmina gelada e, por um instante, ela quase desistiu. Quase o empurrou porta afora para que ele encontrasse o motivo que estava procurando para abandoná-la, mas os olhos dourados e sôfregos imploravam por algo. Naquele instante, ela entendeu o quanto ele a amava. Nunca tivera tanta certeza disso como agora, e essa foi a razão de continuar insistindo com ele.
— De que merda você tá falando, Rick? O que foi, eu tô quebrada demais pra você? É isso? Você tá desistindo de mim? De nós? — Já não conseguia mais disfarçar as lágrimas.
— Duda... todo esse mistério sobre você, até o fato de você se sentir assim, tem acabado comigo. Eu queria tanto poder te conhecer, te ajudar... Eu queria que você me deixasse entrar de verdade na sua vida, que entendesse, mas acho que você não consegue, enfim... Acho melhor a gente dar um tempo com tudo isso, se afastar e tentar olhar de longe a situação. Mudar a perspectiva pode fazer bem para nós dois.
Ela sentiu um buraco antigo se abrir dentro de si. O que estava acontecendo ali? Ele estava realmente terminando com ela? Era isso? Há pouco, ele quase a devorava com a boca, agora estava em pé, no mesmo lugar de antes, pronto a deixá-la. Os vampiros abriram um espumante e festejaram numa rave em suas entranhas.
Em outros tempos, ela já teria desistido. Já teria "deixado a chave e fechado a porta". Só que, em outros tempos, ela talvez não estivesse tão profundamente conectada a ele. Hoje, ela não se sentia capaz de deixá-lo partir.
Angustiada, aproximou-se e o envolveu mais uma vez. O abraço estava entre uma promessa e uma despedida. Aspirou o aroma da jaqueta de couro curtida com o cheiro dele, o mesmo aroma que, sempre que entrava por suas narinas, tinha o poder de acender cada pedaço dela. Ela imaginava que, se ele fosse embora, ela pararia de respirar no mesmo instante. Não podia permitir isso. Não podia ser uma despedida.
— Rick. Para de falar merda. Olha aqui, não vou deixar você sair daqui. — Era uma promessa. Ele olhou para ela e respondeu, soturno:
— Duda... eu me abri pra você. Eu te deixei conhecer uma boa parte de mim e talvez eu tenha ido rápido demais nesse ponto, talvez não devesse ter me deixado conhecer... Você sabe que eu amo você, mas eu não sei como você se sente sobre isso ou o que sente de verdade. Como eu disse, não sei lidar com menos do que a totalidade do que puder ter.
Ela o encarou, aturdida. Então era isso? Ele queria ouvir as malditas palavrinhas mágicas, como se elas pudessem resumir tudo? Que piada!
— Rick... você quer que eu diga que te amo? É isso? — Ela sentia os olhos ardendo na mesma intensidade que o peito queimava. — Você quer saber o que eu penso sobre o amor, Rick? Tá preparado pra ouvir? Pois bem! Abre bem a porra do ouvido e escuta! Eu vi o que o amor pode fazer! Eu vi o homem que deveria me amar causar mais dor do que se pensa ser possível, porque amou uma mesma mulher a vida inteira!
Seu tom de voz se alterara e as mãos tremiam. Rick percebeu a ira pungente e sentiu medo por algo que nem entendia direito.
— Dud...
— Você tem ideia do que é crescer acompanhando, dia após dia, uma pessoa definhar por causa de um sentimento assim? Vê-la desistir de viver e, aos poucos, se converter num monstro desumano que alegava fazer o que fazia porque amava demais? E, então, essa pessoa culpava os outros, agredia e torturava; porque, segundo ela, o amor era demais pra suportar! Você sabe o que é ver amor virar ódio em um piscar de olhos, até que se pense que é tudo a mesma coisa? Foi assim com a porra do meu pai, Rick! Você entende por que eu não consigo colocar você nessa esfera de sentimento?
— Duda, eu...
— Não! Agora você vai ouvir! Você quer tudo, certo? Então me diz se dormir e acordar pensando em você, ter cada célula desperta quando ouço sua voz, ter o peito esmagado quando escuto sua música, ter uma ânsia incontida de tocá-lo o tempo todo, ter uma sede insaciável de ser tocada por você, ter o ar preenchido quando você chega e roubado quando você vai embora... Se isso não é o que você quer, se isso não é tudo, o que mais eu poderia te dar? Você acha que é possível resumir o sentimento de uma vida inteira... de uma pessoa inteira em uma única frase com três palavras idiotas? Caralho, Rick!
Rick ficou sem palavras. E sem ar. Por um tempo, ele sequer percebeu que ela continuava chorando e que ele próprio tinha os olhos molhados. Foi então que entendeu tudo, afinal, e temeu que pudesse ter perdido a chance da sua vida. Envergonhado de si mesmo, finalmente a envolveu com os braços, implorando aos céus que não fosse tarde demais. Nunca, jamais, alguém poderia compor uma declaração de amor à altura da que acabara de ouvir.
— Duda... porra... — a garganta fechada o impedia de falar.
— Não sei mais o que te dizer agora. Só não vá embora... por favor. Não faça isso com a gente.
Rendido, ele fechou a porta sem soltá-la e a manteve dentro dos braços por tanto tempo que chegou a sentir as pernas fraquejarem com o peso dela, que se abandonou completamente em seus braços sem intenção de se soltar. Ele tentou controlar o fluxo de emoções que permeavam sua mente outrora confusa, agora totalmente rendida. Não podia deixá-la, nem podia permitir que ela o deixasse. Não podia viver sem ela, e a consciência do real motivo de todo o drama o atingiu com a força de um trem.
Segredos. O dele era o maior de todos, e ele vinha com a maior cara de pau cobrar sinceridade dela, fazendo-se de vítima. Ele não queria assumir que, bem lá no fundo e de maneira muito sutil, tudo não passava de um teste inconsciente para saber se ela suportaria ficar ao seu lado quando conhecesse o seu segredinho sujo, quando descobrisse sobre Isa Ferri e a história de ambos.
Era só uma questão de tempo. Talvez não agora, talvez daqui a algum tempo, a merda voltaria para atingi-lo, porque a covardia de agora não poderia ser ignorada para sempre. Quiçá tivesse construído algo mais sólido quando tudo viesse à tona ou que ele aprendesse a desenvolver ousadia para enfrentar as consequências da mentira que sustentou só para não perder Duda para sempre.
Eles não falaram mais nada pelo resto da noite, mas sentiram, sentiram muito um ao outro. Naquele abraço, ele recebeu dela o que ela era capaz de lhe dar, e entregou a ela tudo o que era capaz de entregar, ao menos por ora.
***
Pois acabou, não vou rimar coisa nenhuma!
Agora vai como sair, que eu já não quero nem saber
se vai caber ou vão me censurar
(Olhar 43 - RPM / Luiz Schiavon, Paulo Ricardo)
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