31 - Apogitura
Apogiatura: ornamento musical que acrescenta uma pequena nota ao lado de uma maior. A nota pequena precisa ser tocada de maneira muito rápida, quase junto à nota grande.
Júlio chegou ao hospital em minutos. Por ser domingo à noite, a cidade tinha o trânsito livre, e o Porsche... bem, era um Porsche.
Duda passou pela triagem e foi prontamente encaminhada ao ambulatório. Quando Júlio viu o cirurgião, tentou se inteirar do caso.
— Boa noite. Como ela tá? Foi muito feio?
— Foi um corte não tão profundo, mas pegou uma boa área do antebraço. Como a pele dela é muito delicada e a região é sensível, acaba sendo fácil de machucar se o objeto for bem cortante. Como isso aconteceu?
— Ela tava no bar, um maluco quebrou o copo perto dela; quando viram, tinha sangue pra todo lado.
Júlio não fazia ideia de que o médico fizera a pergunta por ter notado a cicatriz antiga no braço de Duda. Mantendo a discrição, ele se afastou e foi ter com a paciente.
— Eduarda, tudo bem? Está sentindo muita dor?
— Boa noite, doutor. Tudo bem, na medida do possível. Agora tá doendo bem mais do que antes.
— É assim mesmo. Bem, pela minha análise, você teve sorte. Seu braço é muito fino, essa é uma área de tecido frágil e pouco músculo, o vidro facilmente poderia ter atingido algum tendão, comprometendo assim o movimento de algum dedo ou da mão, mas isso não ocorreu.
Duda ficou pálida. De repente, a possibilidade de não conseguir mais usar os dedos foi um choque de realidade. Nunca pensara até esse momento o quanto tocar violão era importante para ela.
— Mas... eu corro algum risco?
— Se fizer o repouso direitinho, não. Vou te dar pontos agora, mas você vai ter que ficar de molho uns dias. Costuma pegar peso, fazer algum trabalho que use muito esse braço?
— Eu toco violão...
Duda se deu conta de que foi a primeira vez, em toda a sua vida, que declarou essas palavras em voz alta.
— Bom, nesse caso, é imprescindível que leve a recuperação à sério, combinado? Não queremos que essa lesão infeccione, nem que alguma inflamação irradie para os tendões.
Algum tempo depois, Duda saiu da sala de procedimentos com uma receita e um braço enfaixado. Júlio falava ao telefone com alguém, e ela aguardou o fim da conversa, um pouco constrangida agora que a adrenalina tinha baixado.
— Tem gente que acha que você tá fazendo um transplante de rim...
— O quê?
— Rick, todo nervoso! Falei pra ele ficar de boa, que você estava bem. Ele tá puto porque teve que terminar o show.
— Isso é bem Rick...
— Ele anda um pé no saco ultimamente. Vocês estão bem?
— Sim, estamos... Por quê? – Duda respondeu, ignorando as duas semanas de seca em relação a Rick e estranhando o modo como Júlio entrou no assunto. Era a segunda vez no mesmo dia que ela ouvia o mesmo tipo de comentário.
— Ele parece estressado. Bom, não é da minha conta.
— Acho que é porque ele tá trabalhando muito.
Tomara que seja por isso...
— Isso não é nada. Ele já se ocupou muito mais que isso. Enfim... Vê se cuida direito do meu amigo, valeu?
Duda fechou a cara e só não respondeu com um palavrão para não perder o emprego. Agora era responsabilidade dela se Rick estava bem ou não? E era ela quem estava com um talho no braço, enquanto Rick fazia meninas suspirarem com a porra do contrabaixo! E isso tudo era por culpa dele, se ele não ficasse lá no palco todo gostoso daquele jeito, ela não estaria com oito pontos no braço!
Ela estava tão de saco cheio de ser a ignorada, a invisível, que nem percebeu o quanto estava sendo injusta. Júlio agira de boa-fé, a levara num hospital particular e pagara o procedimento. Talvez ele não tivesse escolha, já que o acidente ocorrera no bar, mas o caso era que ele estava apenas defendendo o melhor amigo, do mesmo jeito que ela defendia Alex quando era necessário. Ela se repreendeu por sempre esperar o pior das pessoas. O terapeuta já tinha conversado com ela sobre isso, como ela erguia um muro de defesa toda vez que se sentia em descrédito.
Um bom tempo se passou até que uma enfermeira apareceu para medicá-la. Uma injeção bem dada na bunda, para aprender a parar de babar por morenos cabeludos e tatuados e voltar a prestar atenção na vida. Quando saiu do ambulatório, Júlio foi ao seu encontro.
— O que você quer fazer? Quer voltar pro bar ou quer que eu te leve para casa?
— Eu preciso voltar para o bar, minhas coisas estão lá e eu nem me lembrei de pegar antes de sair.
No instante em que ela respondeu, Rick se materializou ao seu lado segurando sua bolsa. Ela olhou para ele e imediatamente sua boca ficou seca e seu coração se escondeu entre os pulmões. Ela se perguntava se esse alvoroço emocional que ocorria toda vez que o via um dia passaria. Seria possível se acostumar com o fascínio de uma pessoa? Difícil saber.
— Eu levo ela pra casa, Júlio. Pode ficar tranquilo. Obrigado por tudo, velho.
— Que é isso, parça. Tamo junto! — Eles trocaram um toque de mãos e um breve abraço antes de Júlio se afastar para o estacionamento.
Rick se voltou para ela e a presenteou com um longo e firme abraço. Ela sentiu todo o corpo suspenso e aquecido, e se deu conta de que fazia tempo que não o sentia em torno de si dessa maneira. A constatação fez seus olhos se encherem de lágrimas.
Na sequência, ele a segurou pelos ombros e a inspecionou, preocupado. Seu olhar percorreu a roupa manchada de sangue da camisa até os tênis e terminou na atadura do braço. Consternado e num ímpeto de protegê-la, ele tirou a jaqueta de couro e a envolveu, depois a conduziu até o carro estacionado.
— Você quase me matou do coração... — ele murmurou enquanto a ajudava a colocar o cinto.
— Eu fiz você errar uma nota... — ela comentou com um risinho travesso.
— Você notou? — Ele também sorriu, aliviado por tê-la ali no banco do passageiro.
— Claro que notei. Você eleva muito as expectativas, aí fica difícil. Achei foda você tocando contrabaixo.
Ele prolongou o sorriso por alguns instantes, mas os lábios se curvaram e uma ruga tomou o lugar do semblante outrora tranquilo.
— E aí? Como você tá? Sente alguma dor? Eu vi de longe, o corte pegou quase o antebraço inteiro. Onde você tava com a cabeça que não viu o caco de vidro bem na sua frente?
— Onde eu tava com a cabeça? Que cabeça? Você explodiu tudo quando mandou aquele gutural no microfone!
A sombra de outro sorriso ameaçou suavizar o rosto endurecido, mas não foi suficiente para aliviar a tensão.
— Quantos pontos você levou?
— Oito. Não é nada, já passei por coisa pior.
— Parece bem ruim na minha cabeça. Você precisa tomar alguma medicação? Podemos passar numa farmácia...
— Não quero. Já fui medicada no hospital, antibiótico injetável. Para casa, o médico só receitou analgésicos e um anti-inflamatório, e não preciso disso se fizer o repouso direitinho. Ele mandou eu ficar afastada do trabalho por alguns dias.
— Você poderia tomar os remédios. Por acaso gosta de sentir dor?
A pergunta a surpreendeu. Ela percebeu que não sabia o que responder, e ele se repreendeu por pensar em voz alta. Eles seguiram o restante do trajeto em silêncio, remoendo os próprios anseios.
Quando chegaram, Rick a abraçou assim que passaram pela porta do apartamento, mas rapidamente se afastou. Ela sentiu um estranho vazio quando ele fez isso.
— Eu tô mandando uma mensagem para o Alex — ele afirmou enquanto digitava alguma coisa no celular –, vou pedir para ele vir pra cá.
— Como assim? Você tá pensando em ir embora? — ela perguntou, inconformada por ele cogitar deixá-la assim, depois de tantos dias afastado e numa situação tão atípica.
Rick parou de digitar e suspirou profundamente. Esfregou os cabelos soltos com a mão, um toque que revelava quando estava nervoso. Duda não conseguia entender por que ele estava agindo assim.
— Eu não vou poder ficar. — Ele se odiou por dizer isso, passando por cima do fato de ela estar com o braço ferido e tudo, mas não ia conseguir fazer isso essa noite.
— Tem algo acontecendo, Rick? Você tá muito estranho. Faz dias que a gente não fica junto e agora você quer me largar aqui, assim?
— Não tem nada estranho, Duda. Eu fiquei bem preocupado, você não tem noção, por isso eu tô aqui. Agora você já tá em casa, então eu vou pedir pro Alex vir pra cá. Ele não pôde vir direto comigo porque tinha algo combinado com a Hannah, fiquei de confirmar com ele quando você estivesse em casa pra chamar ele pra cá. Quando ele chegar, vou embora.
— Não, claro que não vai! — Ela o abraçou e repousou o rosto no peito firme. A tensão era notória, todo ele vibrava e estava claro que algo não ia bem. Se fosse há algumas semanas, ela teria ficado de boa, mas jamais conseguiria abrir mão de Rick agora. — Qual é o problema, Rick?
Ele pensou nas milhares de formas de responder ao questionamento, contudo nenhuma lhe pareceu justa ou adequada.
O fato era que Rick vivera um inferno nos últimos dias. A insegurança em relação ao relacionamento com Duda reavivou problemas emocionais antigos, que ele pensava estarem sob controle há anos. O medo do abandono, problemas relacionados à confiança, descontrole emocional, tudo começou a sufocá-lo, impelindo-o a boicotar o próprio relacionamento.
O momento era péssimo, a neura não poderia se manifestar numa hora pior, já que ele tivera muito trabalho no passado para colocar a vida nos eixos. Quando deixara o Brasil, deixara tudo para trás e acreditara que estava tudo resolvido. Mas, não. Duda e o seu comportamento evasivo alimentara sua neurose em doses homeopáticas, e ele se pegou questionando, muitas vezes, se uma relação tão dissonante poderia dar certo. Chegara a desejar que Duda acabasse com tudo, assim, ele poderia fugir, como o covarde que era.
Sua carência o envergonhava. A reação o fazia parecer uma criança, um desequilibrado e ameaçava a indumentária de "fodão" que ele construíra por tantos anos, causando mais danos ainda à sua autoestima tão duramente trabalhada. Sem poder protelar essa conversa por mais tempo, ele resolveu responder com outra pergunta:
— Duda... na real. O que você acha que a gente tem?
— Como assim, o que a gente tem?
— Você entendeu a pergunta. Eu e você, o que a gente significa um pro outro?
— A gente tá junto, certo? Se conhecendo melhor, se divertindo... Onde você quer chegar?
— Aonde você quer levar a gente, Duda?
— Rick, para de dar voltas! Não tô te entendendo, o que você quer ouvir?
— O que você sente por mim? O que realmente sente?
— Rick...
— Vai dizer que não sabe, não é?
— Eu gosto muito de você... Quero estar com você o tempo todo, mas não me pergunta o que é isso, porque eu não sei responder. A gente tá junto há quase quatro meses, caramba! Se não gostasse de você, eu já teria terminado com tudo, qual é? Olha só pra você! Eu não seria louca de brincar com o que temos. Honestamente, é você que tá todo estranho e eu tenho pensado se você já se cansou da gente, se cansou de mim, na verdade, eu ainda penso. Peraí... você tá tentando arrumar desculpas para terminar comigo?
Ele percebeu que as semanas de afastamento não ajudaram em nada. Não melhoraram a percepção dela em relação ao que sentia, não o ajudaram a saber o que fazer agora. De repente, tudo o que ele queria era sair de perto dela ou estar dentro dela, e isso não fazia o menor sentido.
— Certo. Acho que você vai ter que descobrir. Vou ligar pro Alex no caminho. Boa noite, Duda.
Então caminhou em direção à porta.
***
Aprendi a dizer: Eu tô bem e você?
Resiliência chega a cansar
Difícil de tragar
O meu passado vem me engasgar
(A Cura — Mayra)
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