24 - Ressonância
Ressonância: a ressonância sonora faz com que a vibração de um instrumento interfira em outro, fazendo-o vibrar junto.
Duda sentiu braços fortes puxando-a da cama, mas de modo gentil. Ouviu a água do chuveiro batendo no chão e, em seguida, cobrindo seu corpo. A água morna escorreu por suas costas, aquecendo-a de modo agradável. Não sabia em que momento teve as roupas removidas, porém não queria pensar em nada agora.
Em sua mente, no espaço reservado onde habitavam seus sonhos, mãos femininas banhavam seu corpo numa pequena banheira de plástico. Quase pôde ver os dedinhos redondos dos pés submersos, e um polvo cor de laranja feito de borracha boiando próximo ao pequeno joelho fora d'água.
Duda queria ficar ali, na sua fantasia fabricada, onde as mãos a tratavam com carinho, não com desprezo. Não queria abrir os olhos ainda, sabia que poderia ser muito diferente por fora do que acontecia ali dentro, na sala privada dos seus anseios mais profundos.
Algum tempo depois, sentiu o corpo içado e colocado de volta na cama, enrolado em uma toalha. A cabeça doía, as mãos doíam, o peito doía toda vez que um aroma peculiar entrava por suas narinas, puxando-a de volta do seu momento de fantasia, da sua fuga da realidade.
Almíscar, couro e tabaco. Sentiu a camisola descer por sua pele nua e então um quarto aroma, que era a soma dos outros três, terminou por dissolver seu breve delírio.
Rick.
Finalmente, abriu os olhos.
— O que pensa que está fazendo?
Ele estava mesmo ali. O coração saltou sem controle, vivo outra vez pela visão do peito sem camisa, da calça arregaçada e respingada, dos cabelos, presos e úmidos.
— Alguém tem que cuidar de você.
— Vá se foder, Rick! Ou vá foder aquela loira. Pra mim, tanto faz!
Rick não respondeu. Merecia isso e sabia que o fato de ela reagir já era um ponto positivo. Foi até a cozinha e voltou com um copo de vitamina de frutas que ela não fazia ideia de onde ele havia tirado.
— Toma. Precisa se alimentar.
— Não quero nada de você, Rick, nem um favor!
— Duda... — ele deu um longo suspiro antes de continuar — o que você viu não foi o que aconteceu. Não quero ser clichê mandando um "não é o que você tá pensando", mas preciso que você me dê um voto de confiança aqui, tá legal? Eu não fiz nada com aquela mulher, foi ela quem veio pra cima de mim. Já aconteceu outras vezes em que subi num palco, é uma merda às vezes estar nesse meio, nem sempre dá pra sacar o que essas meninas vão fazer quando chegam perto e, assim como outros músicos, eu me esquivo. Seu melhor amigo é guitarrista, certo? Então você já conviveu com isso e entende que eu não tô inventando isso. Eu jamais teria feito isso com você, precisa acreditar em mim!
Ele estava nervoso. Foi difícil segurar a língua e não reclamar de Alex, mas ele sabia que não era o momento. Queria poder abrir a cabeça dela para fazê-la entender, mas sabia que não seria possível. Precisava esperar que ela desse um brecha.
Mesmo contrariada, ela segurou o copo quando o estômago reagiu. Estava com fome, porém só percebeu naquele instante, então se sentou na cama e tomou o conteúdo de uma vez. O líquido lhe proporcionou um leve bem-estar. Ela devolveu o copo e finalmente o encarou.
Rick sustentou o olhar. As íris douradas mostravam determinação, enquanto as acinzentadas refletiam um poço de incertezas e medos tão profundos que ele pensou que poderia se afogar ali.
— O que você quer de mim, Rick? — a voz que não passava de um murmúrio frágil não deixava de ser desafiadora.
— O que eu quero de você? Eu quero você inteira, Duda! Não entendeu isso ainda?
— Não, eu não entendi. Não sei se quero entender.
— Tenho certeza de que você entendeu o que eu sinto por você, certo? Tentei deixar claro, esse tempo que a gente tem buscado se conhecer melhor, mesmo antes disso, nunca cheguei perto de nenhuma garota, só de você! Acha mesmo que eu ia ficar com outra mulher bem debaixo do teu nariz?
— Eu não sei o que acho — ela percebeu o coração menos atribulado, mas não o suficiente para recolher as garras — e meu problema não é só esse. Não se ache tão importante, porque você não é.
Rick engoliu em seco e cogitou a possibilidade de deixá-la em paz. Não encontrou a determinação necessária para isso, então se aproximou e se sentou na cama, de frente para ela. Ficou um tempo observando a postura altiva dentro de um invólucro de mágoa e daria qualquer coisa para tirar esse sentimento ruim dela e apagar os últimos acontecimentos, mas não podia fazer isso.
— Eu quero ficar com você, Duda. Só com você, entendeu? Não há ninguém capaz de mudar isso no momento. Eu realmente gosto muito de você e não vou deixar que uma merda desse tipo estrague tudo. Ela não significa nada pra mim, enquanto você significa tudo! – ele suavizou o tom de voz e murmurou, quase como uma súplica – acredita em mim, por favor.
Duda sentiu o peito doer. Os vampiros tentaram se manifestar, mas ela conseguiu calá-los por alguns minutos. Olhou para ele, aquele espetáculo de homem e pensou em todas as vezes em que ele fora gentil com ela, cordial com todos e íntegro em suas atitudes, e ainda que o conhecesse há pouco tempo, achava que talvez ele merecesse o tal voto de confiança. Ainda assim, era importante que ele entendesse que ela tinha os próprios dilemas para gerir e que o caminho não seria nada fácil.
— Eu sou complicada demais, Rick. Se quiser que a gente continue se conhecendo, vai ter que aprender a lidar com isso, mas se não, vá embora enquanto dá.
— Eu não vou embora. Eu nunca vou embora, só quando você, conscientemente e em plenas condições de decidir, me mandar embora.
— Eu estou em plenas condições...
— Não. Não está. Você está ferida e brava, e eu sei que a culpa é minha, ainda que não seja totalmente. Eu não posso te deixar aqui assim, no meio de uma crise. Você é importante demais pra mim para que eu faça isso.
Ela permaneceu calada por um longo tempo. Entre eles havia uma energia estranha, ela sentia o desejo de tê-lo por perto mas também tinha medo de estar completamente enganada com tudo. Confiança nunca foi uma opção, mas se quisesse levar a história deles adiante, precisaria aprender a acreditar, nem que fosse aos poucos.
— Ok — curvou os ombros, rendida.
— Ok?
— Ok.
— Vem cá — ele a puxou contra o próprio peito.
Ela aspirou o aroma másculo, sentiu o calor do peito e as correntes arranhando seu rosto, e seu corpo conseguiu encontrar uma forma de reagir a ele. Sem pensar no que estava fazendo, ergueu a cabeça e o beijou nos lábios.
Rick se deixou beijar por um instante, porque precisava disso, contudo interrompeu o gesto quando notou o clima esquentando. Não queria fazer isso agora, na verdade, não podia. Ela estava confusa, e eles precisavam conversar e entender o que sentiam um pelo outro, caso contrário, iam acabar se machucando ainda mais.
— Você tem que parar de ficar roubando beijos de mim — ele brincou depois de um tempo, tentando imprimir um pouco de leveza ao momento. — Você acaba com a minha masculinidade tolhendo minhas iniciativas desse jeito.
— Machista — ela debochou, distraída com a palheta pendurada à sua corrente. — Essa palheta tem algum significado pra você ou é só um enfeite?
Ele sorriu e se acomodou nos travesseiros, trazendo-a para dentro dos braços. Curioso como há pouco ela o mandava embora aos palavrões, logo depois o surpreendeu com um beijo, e agora estava fazendo perguntas pessoais. "Complicada" passou longe.
— Essa foi a primeira palheta que eu ganhei. Eu a guardo para me lembrar, porque aconteceu numa época problemática da minha vida.
— Problemática? — Duda se esqueceu um pouco do próprio drama quando percebeu que havia uma história ali. Talvez o produtor não tivesse uma vida tão perfeita como aparentava.
— Uma hora eu te conto, mas, em resumo, a música me salvou de mim mesmo.
Algum tempo depois, Rick notou a respiração compassada de Duda e percebeu que ela adormecera novamente. O cansaço do dia de trabalho seguido por uma noite insone recaiu sobre ele, que acabou cochilando com ela na cama.
***
Quando Alex voltou ao apartamento de Duda, já passava das nove da noite. Ele viu Rick e Duda dormindo abraçados sobre a cama e um sentimento estranho o acometeu, um misto de acanhamento, medo e desilusão.
Era certo que amava Duda como a ninguém mais, mesmo que não fosse daquele jeito romântico. Rick talvez fosse uma boa pessoa para ela, mas e se não fosse? E se ele fosse um babaca que a largaria dali a algum tempo, deixando os cacos para ele juntar?
Ela até havia ficado um tempo com aquele babaca do Enzo, e Alex nunca soube o que causou o término do namoro com o cara porque Duda nunca revelou. Se ao menos ela deixasse ver o que se passava dentro dela, mas não, ela não se abria, não aceitava ajuda nem queria precisar de ninguém. Como sempre, ela não abriu o que houve na noite anterior, algo entre ela e Rick que colaborou para jogá-la numa nova onda depressiva. Mas estava nos braços dele agora, e isso era no mínimo confuso.
Duda ficava estranha quando entrava nessas crises. Até para ele, que a conhecia a tantos anos, era difícil sacar por onde a mente dela vagava. Ele temia que ela estivesse sendo condescendente com Rick por estar desequilibrada emocionalmente, mas havia um limite para ele se meter no assunto, visto que não tinha moral nenhuma para opinar.
Assim como ele, ela também não levava os tratamentos a sério. Ele sempre era assombrado pela lembrança de uma noite em que ela precisou ser socorrida à beira da morte. Dado o teor das lesões, ela fora encaminhada para fazer terapia e teve que passar por um psiquiatra, mas abandonara tudo quando o médico receitara psicotrópicos.
Alex provavelmente era o verdadeiro culpado por ela nunca seguir um tratamento clínico. Duda evitava qualquer tipo de medicação, pois sabia que ele entrara nessa onda de usar narcóticos quando começara a roubar os opioides da própria mãe. Ela não gostava de tomar remédios de nenhum tipo por causa dele. Ela preferia sentir dor do que ter um analgésico em casa por causa dele. Ela escolheu ser dilacerada sem nenhum tipo de alívio emocional por causa dele. Essa realidade começava a pesar muito mais do que ele gostaria de admitir e, pela primeira vez, acreditou que seria muito melhor estar longe dela, deixar que vivesse a própria vida sem ter que carregá-lo nas costas.
No entanto, ele não conseguia se afastar. Mesmo entendendo o quanto tal relação podia ser tóxica para ambos, eles eram como irmãos siameses, obrigados a viver os dramas um do outro dia após dia, sem conseguir se desgrudar. O pastor Pedro conversava muito sobre esses assuntos com ele, sobre dependência emocional e coisas do gênero. Ainda que o velho praticamente o tivesse adotado, não tinha o direito de se meter na história dele com Duda.
Ninguém tinha esse direito.
No fim das contas, ele tinha que reconhecer que o pastor estava certo. Ele precisava se afastar, mesmo sabendo que Rick provavelmente fora o gatilho da recente crise de Duda. Tomado de preocupação, aproximou-se da cama e cutucou o ombro do produtor a fim de acordá-lo.
— Rick... e aí, ela tá melhor?
— Oi, Alex... — Rick não tinha percebido que havia dormido — não tenho certeza, acho que sim, mas ela continua querendo dormir.
— Ela fica assim, é um tipo de fuga. Quando o corpo exigir, ela vai se mover. O que você quer fazer agora?
— Eu posso ficar aqui com ela... Na verdade, eu gostaria de ficar — sugeriu sabendo que o terreno era delicado. Alex era o melhor amigo de Duda, entendia exatamente o que estava acontecendo, sabia como agir e provavelmente era a melhor opção, mas Rick não conseguia se afastar do corpo dela.
— Eu vou embora, então. Respeita o tempo dela, ok? Ela vai reagir quando se sentir segura. Você precisa me garantir que não vai largar ela aqui sozinha. É sério.
— Não vou, fica em paz. Se precisar, eu te ligo.
— Combinado. Até mais.
Alex saiu do apartamento mesmo contrariado, e aproveitou para retornar as ligações de Hannah. A garota havia telefonado, estava preocupada com Duda e seguia mandando mensagens.
— Oi, Hannah, tudo bem? Então, ela tá melhor, sim. Rick tá aqui com ela.
— Que bom. Fico mais tranquila assim. Quer dar uma volta? Comer alguma coisa? Eu estou por perto — Hannah respondeu do outro lado da linha.
Alex pensou por um momento, então decidiu sair com a garota. Já tinha passado da hora de abrir as portas para outras mulheres em sua vida.
***
Às vezes te odeio por quase um segundo
Depois te amo mais
Teus pelos, teu gosto, teu rosto, tudo
Que não me deixa em paz...
(Quase um Segundo - Herbert Vianna)
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