23 - Síncopa
Atenção queridos. Alguns níveis de tristeza relacionados a distúrbios emocionais podem levar à necessidade de causar algum mal a si mesmo, como o autoflagelo. A necessidade de se ferir vem do desejo de desviar o desconforto emocional para a esfera física. Se você já se sentiu assim, busque ajuda.
Boa leitura.
***
Síncopa: uma figura rítmica de tempo fraco que se prolonga até o tempo forte, é como se a música estivesse soluçando.
– Duda... espera! – Rick gritou quando a viu girar os calcanhares para voltar ao bar. Enquanto se afastava, ela ainda pôde captar a última frase da loira:
– Você pegou até a bartender, Rick? Fala sério!
Seu peito doeu, sua cabeça doeu, tudo doeu quando sentiu os vampiros despertos e famintos devorando suas entranhas. No caminho até o balcão, esbarrou em Alex, que tentou segurar seus braços.
— Ei, o que foi? Duda?
Ela se desvencilhou dele num safanão e se enfiou na cozinha, depois no banheiro dos fundos e fechou a porta.
Não quero ver ninguém. Não quero ver ninguém, porra!
Sentou-se no tampo do vaso sanitário e ficou olhando para as próprias mãos trêmulas, subitamente interessada no esmalte preto descascado, e passou a arranhar a superfície das unhas na tentativa de remover o cosmético, até que suas cutículas começaram a sangrar. Ela continuou fazendo isso até uma gota de sangue bater no piso. Transtornada, foi até o lavatório, colocou os dedos doloridos sob a torneira e se concentrou na água tingida que descia pelo ralo.
Fazia muito tempo que não machucava a si mesma de propósito. Há anos não infligia dor a si mesma na tentativa de suplantar a angústia. Agora estava ali de novo, fazendo de tudo para não ter que pensar, não ter que sentir, mas ainda sentia. Sentia vergonha, tristeza, decepção e a garganta ardendo. Uma lágrima escorreu, quente como ácido.
Inferno! Que grande imbecil! Como pôde acreditar que a alegria poderia durar um dia ou dois? Não com ela, claro que não. Ela quase podia ouvir seus vampiros discutindo enquanto sugavam sua força vital:
Pare de sentir pena de si mesma! Já passou por coisa muito pior...
Você merece isso. Você deixou o cara entrar, agora segura a bronca.
Não é nada demais, o cara é só mais um filho da puta no mundo.
Por que você chegou a pensar que um cara como ele ia querer algo com você além de te comer?
Se enxerga, garota, teu lugar é tirando o lixo, não tocando em coberturas nem transando com celebridades...
Duda levou as mãos feridas aos ouvidos e fechou os olhos. Queria calar os pensamentos. Estava sendo reativa demais, não fazia sentido essa dor tão desproporcional. Não tinha motivo. Tudo era muito recente com Rick, não havia razão para tanto drama, não deu tempo de gostar tanto assim, de se apegar tanto assim, não...
Nem a dor nos dedos conseguia sobrepujar a farpa afiada fincada em seu coração. Certamente ia inflamar e infeccionar, e ela não estava se referindo às cutículas.
— Duda...?
Uma leve batida na porta, e a voz do bruxo das trevas. O som capturou a farpa e a fincou ainda mais na carne.
Não faz sentido... Por que está se sentindo assim? Você nem gosta tanto dele assim, certo? Certo? Não é possível...
Ela não respondeu. Ela não queria ver ninguém.
***
Rick ficou um tempão sentado no chão, encostado na porta, nervoso de um jeito, ele nem se lembrava da última vez que se sentira assim. O pessoal da cozinha começou a deixar o local, até que ele se viu sozinho e aceitou que Duda não ia sair da porra do banheiro, não para ouvir a sua versão dos fatos, nem para coisa alguma. Finalmente ele se levantou e saiu dali para encarar Alex, que o observava com cara de poucos amigos.
— Qual é a tua? — o guitarrista perguntou, estressado.
Rick teve vontade de esmurrar o rapaz, mas isso não faria o menor sentido em nenhum cenário possível. Olhou para além do balcão e viu Júlio numa conversa sugestiva com Vanessa. Seu sangue correu mais rápido.
Que merda de confusão!
Não que ele fosse o grande vilão da noite. Não mesmo! Duda bem que tinha dado seus pulinhos com o amiguinho do peito parado à sua frente como um leão de chácara. Claramente ela não ia sair da merda do banheiro para explicar isso a ele, nem para ouvir o que ele tinha a dizer sobre Vanessa.
Mas certamente ela ia falar com Alex. Sim, com ele ela ia conversar, muito provavelmente a noite toda. Rick sentiu o fel correr pelas veias.
Sentimento ruim do caralho!
— Não te interessa! — quase cuspiu as palavras.
— Duda é minha amiga!
— Só amiga mesmo? — Rick tinha uma sobrancelha erguida. Alex deu um passo atrás, confuso. Então, subitamente, a ficha começou a cair.
— Peraí... Vocês...?
Rick não respondeu. Ele só queria sair dali, com ou sem Duda, então foi até o palco, pegou o equipamento e praticamente o jogou no carro.
Amiga é? O caralho!
Fechou a porta com força, depois saiu cantando pneus, dirigindo como louco pela Rua Heitor Penteado até a Avenida Pompéia, desceu acelerando e cruzando todos os faróis vermelhos.
E a garra voltou, apertando seu coração até ele ter a impressão de que o sangue estava se esvaindo dali e se acumulando em uma poça no chão. Engoliu em seco para minimizar a dor na garganta e afugentar a água que teimava em subir aos seus olhos. A vista ficou turva, e ele apertou o volante e pisou com mais força no acelerador. Um carro freou bruscamente num cruzamento, por pouco não atingiu seu veículo, mas ele não se importou.
Então ele viu, na névoa confusa dos pensamentos, como uma imagem gravada que se repetia em loop: sua própria mãe, Janice, no batente da porta, despedindo-se enquanto ele pedia para ela ficar mais um pouco... e fazia isso de novo, e de novo, e mais uma vez... até que, por fim, ninguém mais voltou.
Nem Janice. Nem Duda.
***
— O que aconteceu com você? — Jonas questionou, preocupado, ao ver Duda sair da cozinha com o cabelo desgrenhado, os olhos inchados e a camisa manchada de sangue.
— Tive um acidente... — ela vasculhou o bar e viu apenas Alex, que vinha em sua direção. O local já estava fechado. Nem sombra de Rick. Os vampiros se manifestaram.
Deve estar fodendo a loira em algum canto da cidade, sua trouxa!
— Duda, porra, fiquei preocupado... você tava com aquela cara... — Alex a abordou, referindo-se à expressão que ela costumava ter no rosto quando, no passado, Henry a agredia com palavras.
Ele foi até ela e a abraçou. Geralmente a mágoa nos olhos se mostrava todas as vezes que o progenitor reclamava de qualquer coisa que Duda tentasse fazer. O velho gostava de humilhar, ofender e, principalmente nos últimos anos em que Duda morava com ele, quando as surras diminuíram enfim, as palavras foram as principais responsáveis pelos flagelos na alma da filha.
— Vamos embora daqui, vou com você pra casa. — Alex foi amparando-a para fora do bar e chamou um Uber.
Pouco depois, Duda recostava no banco de trás enquanto o motorista os levava até o centro da cidade. Olhou pela janela e se viu contando as luzes acesas dos edifícios que passavam rapidamente por eles. Ela sabia que estava exagerando, sabia que estava se enfiando num poço de autopiedade sem sentido, porém não tinha opção, tudo isso a jogava de volta no passado.
Mal-amada!
Ninguém te suporta.
Ninguém acredita em você.
Nem os seus pais conseguiram te amar, por que Rick conseguiria?
Por que você está pensando nessa merda chamada amor? Não existe amor!
Quando enfim chegaram, ela subiu até o apartamento com Alex atrás de si e se enfiou debaixo do edredom com roupa e tudo. Alex removeu dela os sapatos e ficou um tempo ali, acariciando o cabelo da amiga, até que ela dormiu.
Ele sabia que isso ia durar um tempo, já vira acontecer. Dessa vez, ele ia ter que ser o adulto. Preocupado, pegou uma manta e se deitou no sofá. Gato subiu em sua barriga e se enrolou para dormir.
— Tem alguém logo ali precisando bem mais de você — Alex falou para o felino, acariciando atrás da orelha do bichano. Gato se espreguiçou e fechou os olhos. — Você também não quer se envolver, não é? Melhor ficar longe dos problemas dos outros. Certo é você, mas nem sempre é possível fazer isso.
Duda e Rick... quem diria?!
Alex levou um bom tempo para conseguir dormir.
***
No dia seguinte, A banda tinha ensaio marcado às quatro da tarde, e Hannah era a única que aguardava a chegada dos demais na porta do estúdio. Rick estacionou o carro no meio-fio e ela notou, intrigada, o ar taciturno, as olheiras profundas e os olhos injetados no semblante abatido do produtor. Não se lembrava de tê-lo visto assim antes.
Rick não percebeu a inspeção da contrabaixista. Ainda tinha a mente poluída com a névoa emocional da noite anterior e sentia as evidências físicas do estresse pelas pontadas na cabeça.
Talvez não devesse ter tomado tantas doses seguidas de whisky.
Assim que se aproximou, o telefone de Hannah começou a chamar. Rick enfiou no rosto os óculos de lentes polarizadas a fim de inibir o incômodo causado pela claridade, e só então prestou atenção na garota, que parecia irritada com a ligação.
— Você não pode faltar! É o seu primeiro ensaio em semanas! O que tá pegando, quer sair da banda?
— O que foi? — Rick perguntou.
— Alex disse que não pode vir. Alguma coisa com a Duda.
Rick sentiu a garra gelada acordar de novo.
— Me deixa falar com ele — irritado, ele praticamente arrancou o celular das mãos de Hannah, que estranhou a grosseria incomum —, o que aconteceu, Alex?
— Rick... e aí? Olha só, não posso sair daqui — Alex respondeu do outro lado da linha.
— Onde você tá? — Rick indagou, já sabendo a resposta, e isso fez a garra apertar um pouco mais.
— Tô aqui com a Duda. Ela não tá bem, cara. Não posso deixar ela assim.
— O que ela tem? — Mais um aperto, agora com a unha se entranhando na carne.
— É complicado.
Ele sabia o quanto podia ser complicado. Devolveu o celular pra Hannah e pegou o próprio aparelho.
— Liga pro Nico, estou ligando pro Dani. Vou cancelar o ensaio.
Hannah fez um muxoxo e Rick lamentou, contudo não havia o que fazer. Não faria sentido ter esse ensaio sem o Alex, e a verdade era que Rick não estava com a menor condição de conduzir nada. Tinha passado as últimas horas em crise existencial, e toda essa situação com Duda e Alex só piorava o quadro.
Saindo dali, pegou o trajeto sentido Centro. Estava amargurado porque entendia, em partes, o que Duda estava sentindo. Traição é o pior dos gatilhos para pessoas com problemas de confiança. Ser trocado por outro, não importa quem esteja com a razão, leva a pessoa a questionar o próprio valor e a concluir que a única culpada é ela mesma, e daí vem um caminhão de merda junto.
Ele próprio se sentiu um pouco assim quando viu Alex beijando Duda, como um intruso na história dos dois. E ela provavelmente sentiu o mesmo ao vê-lo no beco com a boca colada na loira. Rick sabia que não tinha culpa por beijar Vanessa, como não tinha o direito de se meter na história de Alex com Duda, então por que diabos estava dirigindo até a casa dela?
Nem percebeu que fizera o trajeto em tempo recorde. Quando notou, já estava parado em frente ao prédio. Ainda incerto do que fazer, tocou a campainha e Alex o deixou subir. Quando entrou no apartamento, o guitarrista o aguardava com um olhar cansado.
— E aí? — Rick perguntou, vasculhando o aposento à procura dela.
— Ela vai melhorar, só precisa dar um tempo a ela.
Rick então a viu, deitada na cama e coberta até a cabeça. Ele imaginou que ela não tivesse se levantado dali desde a noite anterior, e já eram quase cinco da tarde. Com um peso no peito, ele puxou um pouco a coberta. Ela tinha os olhos inchados e fechados, e não estava dormindo.
— Ei, Duda, minha fada...
— Vá embora... — ela sussurrou com uma voz arranhada.
Ele pescou a mão que repousava sobre o travesseiro, e notou as pontas dos dedos inchados e feridos. A garra em seu peito apertou mais, e respirar se tornou mais difícil.
— Não vou embora. Nunca. Você entende isso?
— Me deixa em paz, Rick! Eu quero ficar sozinha.
— Não. Abre o olho, olha pra mim!
Ela puxou a mão e colocou o travesseiro sobre a cabeça.
— VÁ EMBORA!!
Rick ficou dividido e olhou para Alex. O rapaz parecia indiferente. Ele já devia ter presenciado isso muitas e muitas vezes. Rick se sentiu um penetra, um intruso num mundo que não lhe pertencia. Mesmo assim, não conseguiu fazer o que ela pedia.
— Você fica com ela um pouco? — Alex facilitou seu conflito. — Eu preciso voltar pra casa do pastor, tenho que "bater o cartão", se é que me entende, senão ele acha que eu tô cheirando por aí.
— Eu fico aqui. Pode ir.
— Sei que você fez alguma merda com ela, mas acho que o buraco é mais embaixo. Faz tempo que ela não fica mal, tava só imaginando quando ia acontecer. Vê se segura essa língua e cuida dela, não vai levantar discussão agora, beleza?
Rick aquiesceu e Alex saiu do apartamento com o coração pesado, porque agora era ele quem se sentia sobrando. Contudo, a melancolia foi aos poucos dando espaço a outro sentimento.
Por anos, Duda foi a mais forte e, mesmo com esses períodos de prostração, se não fosse por ela, Alex certamente já estaria morto. Ela precisava de alguém melhor para cuidar dela. Rick parecia um cara legal e era evidente que gostava dela, caso contrário não estaria ali. Alguma merda parecia ter rolado entre eles, mas não fosse isso, Alex até poderia se sentir bem com a presença do produtor ao lado dela.
Quem sabe? Ao mesmo tempo que sentia a expectativa da mudança, o coração rejeitava a ideia, como duas cordas que puxavam seus sentimentos em sentidos contrários. Rick podia ser a melhor ou a pior coisa que aconteceu a Duda, e não tinha como prever onde essa história poderia chegar.
***
Podemos ficar juntos se soubermos estar só
O amor é um laço e não um nó
(Laço - Igor de Carvalho - O Teatro Mágico)
***
Lembre-se, você não está sozinho. Se você se identifica com os sentimentos confusos e opressores descritos nesta obra, se em algum momento sentiu vontade de causar mal a si mesmo em algum grau, busque ajuda.
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