19 - Ostinato
Ostinato (ital.): significa "obstinado", é um conjunto de notas que se repetem com insistência num trecho musical.
Duda e Rick chegaram ao bar bem atrasados. Júlio os recebeu com cara feia, mas acabou abrindo um sorriso escondido, afinal, era evidente que os dois tinham transado. O rosto corado da garota, o andar altivo do amigo, a química em torno deles, o modo como se tocavam sem querer...
Agora Júlio tinha uma batata quente na mão. Rick não era um cliente, certo? Não havia regras sobre funcionários não poderem se relacionar, e Rick tampouco era um funcionário, estava muito mais para parceiro comercial e amigo... Enfim, precisava pensar no que fazer agora que os pombinhos provavelmente não conseguiriam mais tirar as mãos um do outro.
— Rick, pode vir aqui um momento? — Júlio chamou o amigo para segui-lo até a mesa de som. — E aí... Eu tava certo?
— Talvez.
— O que vai fazer a respeito? O lance aqui do bar... ela ainda trabalha pra mim.
— Eu sei, cara. O que você acha? Me diz você, o bar é seu.
— Não quero ser um filho da puta...
— Tarde demais pra isso...
— Não fode!
Rick deu uma breve gargalhada e Júlio achou bom que o humor dele tivesse melhorado. Ele ainda sorria quando respondeu.
— É o seguinte: eu assumo que gosto dela, beleza? Só quero uma chance de ver no que vai dar, mas sem pendurar uma faca sobre a cabeça dela. Você pode me dar um tempo e me ajudar com isso?
— Certo. Eu vou levar de boa, mas nada de zoar no meu bar, beleza? Ela ainda trabalha aqui e eu ainda preciso da bartender. Se você conseguir botar ela no palco, melhor ainda.
— É um processo. Vamos devagar.
Duda acompanhava curiosa a conversa dos homens na mesa de som. A risada de Rick, ainda que o som não tivesse chegado até ela, a excitou de modo surpreendente e a fez suspirar de satisfação. Se deu conta de que não o vira sorrindo dessa maneira nas semanas em que passaram afastados, e como esse sorriso fizera falta.
Estava um pouco preocupada com o trabalho. Júlio já tinha feito muitas concessões em relação a ela. Ainda não sabia como seria agora que ela e Rick aparentemente começaram algo e não estava disposta a ter que fazer algum tipo de escolha, então seguiu o roteiro como se tudo estivesse igual.
No entanto, nada estava igual. Ela se sentia totalmente diferente. Os vampirinhos estavam dormindo calmamente em seu interior, e ela estava quase... feliz. Acreditou pela primeira vez que esse sentimento novo pudesse ser real, porque era mais intenso, mais vivo e, mesmo com medo, ela vislumbrava uma chance de viver o amor.
Amor... uma palavrinha idiota que sempre a constrangia ao ser pronunciada. Ela sempre achou o amor brega e desproporcional por não entender muito bem o seu real significado. Entendia, por exemplo, que amava Alex, porém o que sentia por Rick era algo diferente, intenso, sensível... Algo parecido com aquele lance meloso cantado em baladas românticas e, mesmo constrangida por ser tão piegas, ela estava bem curiosa para descobrir mais a respeito.
Ela viu a banda se preparando no palco e suspirou. Ao menos dessa vez, não ficaria no bar toda desejosa, fantasiando com Rick reproduzindo nela o que fazia na guitarra e no microfone, usando as mãos e a boca daquele jeito tão devasso...
Ledo engano. Duda assistia à performance de Rick, que era pura sensualidade pulsante no palco, e na terceira música já estava toda molhada... de suor. Ofegante, sentiu o calor no corpo como uma febre, porque agora sabia o que as mãos que acariciavam a guitarra eram capazes de fazer, e como a boca que tocava o microfone era capaz de tocá-la das formas mais indescritíveis.
Ao fim da primeira entrada, ela interpelou Rick a caminho do beco e o empurrou porta adentro da cabine de um dos banheiros — sequer sabia se era masculino ou feminino — para uma transa frenética, como se sua vida dependesse disso.
— Tá querendo me fazer perder o emprego? — ele perguntou a ela enquanto fechava a calça e recuperava o ar.
— Ninguém te mandaria embora, quanto a mim, ninguém sentiria minha falta se eu sumisse. — ela falava enquanto tentava ajeitar a camisa que perdera um botão. Decidiu desabotoar o restante da parte de baixo para dar um nó acima da cintura.
— Talvez seja diferente se você estiver no palco... — ele jogou no ar, distraído com a visão sensual da barriga dela.
— Você nem sabe se eu consigo fazer algum tipo de som... — ela rebateu, puxando os cabelos num coque improvisado no alto da cabeça.
— Eu sei que... Tenho certeza de que consegue... — Ele estava embevecido com os fios claros da nuca delicada e por pouco não deixou escapar que já a ouvira cantar.
Sabendo que não teria tempo nem energia suficientes para um segundo round, ele a beijou de modo lento e molhado, depois saiu do banheiro e caminhou tranquilo em direção ao palco. Para não levantar suspeitas, ela esperou alguns instantes enquanto se recuperava do beijo, depois se deslocou rumo ao bar.
— Você anda muito saidinha... — Jonas reclamou assim que ela deu a volta no balcão.
— Não posso mais usar o banheiro? — Ela retrucou, abstraída. Seu enlevo era tamanho que nem o mau humor do colega a atingiu.
Mais tarde, depois do show, Júlio a chamou para conversar.
— Você está bem? Por causa do assalto e tal... nem deu tempo de eu perguntar.
— Tudo bem, sim. Obrigada pelo apoio.
— Te mandei um belo apoio, hein? — ele debochou, maroto. Ela corou profusamente, como se estivesse gritando para todo mundo as safadezas que fizera a tarde toda. — Relaxa. Só vim ver se você precisa de alguma coisa, um adiantamento, sei lá.
Ela se lembrou do dinheiro que Rick lhe dera e pensou se queria mesmo devolver. Ela era uma sobrevivente e, caramba, sabia receber presentes! Já passara por isso umas... uma vez, talvez.
— Eu tô de boa, não se preocupe. Já consegui ativar o App do banco.
— Certo. Só mais uma coisa — ele protelou se devia ou não falar, então desembuchou: — eu não sei qual o seu lance com o Alex. Só sei que vocês são bem próximos e eu até desconfiei de que tinha coisa aí. Agora você parece ter começado algo com o Rick e, sério, você nunca abriu nada da tua vida para ninguém aqui e nem precisa fazer isso, mas Rick é meu amigo. Ele já passou por umas barras na vida, então vê se ajuda e não atrapalha o cara, beleza? Desculpa falar, mas acho que você me entendeu.
Duda o encarou, inconformada, e de repente, ali estava o vampirinho se espreguiçando em sua barriga. Não dava mesmo para esperar que agora fadinhas iam surgir cantando ao seu redor como numa animação da Disney. A vida era uma merda, e era óbvio que, se havia um monstro pronto a ferrar com a vida de alguém, que fosse ela. Ninguém ligava se o contrário acontecesse, se alguém decidisse usá-la, magoá-la ou lascar ainda mais com sua existência. Mas Rick era importante, e ele tinha um amigo importante, então que fosse ela a vilã, ela que não era ninguém e tinha um único amigo adicto que não estava ali para a defender.
Pois é. O buraco da inexistência estava oficialmente reaberto.
Mais tarde, quando Rick se acercou de Duda no bar, notou de cara que ela estava diferente. O semblante radiante e satisfeito de antes dera lugar a uma carranca desanimada e mau humorada. Naquele momento, os alertas começaram a soar.
Onde foi parar a ruiva do banheiro?
— Tá tudo bem? — ele perguntou, cauteloso.
— Normal.
— Você tá bem? Agora há pouco parecia bem animada...
— Eu tô bem. Preciso trabalhar, Rick.
O corte seco o fez esfregar os olhos, subitamente cansado. Gerir emoções, principalmente emoções alheias, era complicado. Vasculhou a mente tentando entender o que poderia ter ocorrido entre o "pega" no banheiro e agora, e não encontrou nada, então concluiu que devia ser alguma coisa dela com ela mesma.
— Claro, claro. Não vou mais te importunar.
Duda observou o longo suspiro e o semblante entediado dele e percebeu isso da maneira errada.
— Já tô cansando você, não é? O bar tá cheio de opções, você pode levar alguém menos ocupado para algum canto e se resolver por lá.
Ela o atacou, e sem o menor motivo já que, desde que o conhecera, ela nunca o vira agir assim, nunca o vira de conversa com qualquer garota, mesmo que elas orbitassem como moscas ao redor dele. Não sabia por que sugerira algo tão idiota.
Para ela, se boicotar era a melhor defesa.
— Vou fumar. Você vem?
E para ele, ignorar era o melhor argumento.
Ela olhou para Jonas e negou com a cabeça. Tinha acabado de ter uma conversa constrangedora com o patrão, precisava recuar um pouco e parar de chamar a atenção sobre si mesma. Com pesar, viu Rick se afastando.
Ele saiu do bar, acendeu o cigarro e deu um longo e nervoso trago na tentativa de desopilar. A tarde incrível de sexo, o show que ainda reverberava dentro de si, a rapidinha no banheiro... tudo isso, de repente, se esfacelou pelo ar com um simples gesto sem sentido.
Ele não queria que esse tipo de coisa desestruturasse o que nem havia começado direito, porém compreendeu que nem tudo dependia dele. E ele não era um idiota iludido, sabia que Duda era complicada, já tinha sacado os sinais dos distúrbios emocionais, o lado depressivo, os traumas, toda a bagagem de merda que ela carregava.
Ele já se desiludira antes. Não diria que era um cara rodado, mas tivera sua parcela tanto de diversão quanto de decepções. Uma vez, ele conheceu uma garota, Carla, por quem chegara a desenvolver algo mais sério. Eles ficaram juntos por quase um ano, isso fora antes de ele sair do país.
Carla era uma garota tranquila, de espírito leve e de boa família, linda com cabelos cacheados e olhos puxados, um espetáculo de mulher, mas ele não era bom o suficiente para ela. O padrão imposto pela família dela era muito elevado. Ele não se encaixava nas expectativas, simples assim, e isso o deixara muito mal na época, principalmente porque rejeição era como um nervo exposto para ele.
Hoje, comparando seus sentimentos por Duda e o que vivera com a Carla, constatou que na época sofrera mais pela rejeição em si do que pela falta da mulher. Ele lamentou o término, abraçou a fossa por um tempo e depois curou a mágoa saindo com outras mulheres, várias por sinal.
Ser músico tem suas vantagens. O palco é como estar numa vitrine, onde se fica exposto e onde também é possível ver quem está interessado, e quando essa pessoa acha que fez a escolha para um momento de diversão, nem imagina que ela também foi a escolha. É como uma espécie de troca de energias, tal qual um match. Daí então vem a etapa de conhecer e descobrir se é ou não é bem o que se imaginou.
Essa é a lógica da vida, alguns experimentam pizza de brócolis, descobrem que não curtem e não querem mais. Outros gostam de azul e detestam verde. Alguns, ainda, sentem prazer ao ouvir blues, mas não suportam samba. Tudo é muito bem definido, sabe-se lá como, dentro da cabeça de cada um.
No entanto, quando alguém se sente atraído por outro que não faz parte do seu mapa mental, aí a coisa complica. Rick nunca sentira atração por ruivas, sempre preferira as morenas, as garotas divertidas, de riso fácil, mulheres que se importavam com o visual e com a vida social. Esse sempre fora o escopo de sua busca. Daí surgiu uma ruiva de língua afiada e muito mal-humorada, usando roupas de adolescente e cheia de problemas emocionais no caminho.
O exato oposto de tudo o que sempre o atraíra.
Então, de repente, as ruivas viraram as mulheres mais lindas do mundo, a grosseria era o novo normal, e tudo bem ter uma crise depressiva ou outra, fazia parte da existência. O que explicava esse tipo de transformação? E quando o caos de um alimentava a obscuridade do outro? Duda fez isso com ele, acendeu a luz no quarto do entulho e revelou os seus piores segredos e medos. Isso era assustador até para o mais convicto dos homens.
Agora, ele só precisava decidir se ia por esse caminho e revivia as próprias neuras ou se parava com tudo agora, antes de se machucar. Poderia fazer isso? Já tinha aliviado aquela tensão, alimentado aquela tara, mas ter feito sexo com Duda não diminuíra em nada o seu interesse, muito pelo contrário, agora a obsessão se transformara em algo novo, e por mais que parecesse improvável, ele concluiu que não tinha muita escolha.
Ali no beco, enquanto contemplava o movimento da fumaça do cigarro no sereno da noite, decidiu que iria continuar tentando até quando pudesse suportar.
***
Duda fechou o bar enquanto Rick esperava. Não conversaram depois da farpa sem motivo que ela lhe lançara mais cedo. Ela entrou no carro e ele dirigiu em direção ao Centro para deixá-la em casa, pensativo e distante. Mais uma vez, ela interpretou isso como indiferença e se encolheu no banco.
Ele provavelmente já está satisfeito, já transou com você e agora pode partir para comer outras por aí, só não sabe como te dizer isso.
Irritada com as próprias confabulações, ela se retraiu mais. Por que ela não conseguia falar o que sentia? Não daquele jeito que envolvia cuspir veneno para esconder o interior e afastar todo mundo; e, sim, falar o que realmente sentia?
Porque ela não sabia o que sentia.
Quando Rick parou o carro em frente ao prédio, passou o braço por cima dela para abrir a porta e não se moveu para saltar do veículo, ela percebeu que ele ia a deixar ali e partir sem uma palavra.
Angustiada, desceu do carro, porém, antes de alcançar as escadas, o olhou nos olhos e lhe estendeu a mão. Então ele desceu, trancou o carro e subiu com ela, ainda calado. Quando passaram pela soleira, ele a empurrou contra a porta, fechando-a com força, e a aprisionou com um beijo faminto. Sem se darem conta, as camadas de tecido que os separavam jaziam no chão. Trôpegos e desajeitados, eles pisaram na roupa espalhada, nos tênis, no rabo do gato que guinchou e correu para algum canto, e tombaram no chão, se beijando como loucos.
Então fizeram amor sobre o tapete puído, sem trocar palavras, sem fazer promessas. Ainda tinham muito a aprender a respeito um do outro, mas isso podia ficar para depois. Agora, existiam monstros famintos demais dentro deles que precisavam ser calados.
***
Rick acordou antes de Duda. Percebeu que era bem cedo ao olhar pela janela por onde a luz tímida e prejudicada pela sombra dos prédios quase não chegava ao ambiente.
Uma cócega o fez se voltar para ela na cama onde passaram a noite. Era a carícia de uma mecha de cabelo que cobria parte do seu antebraço tatuado e se movia conforme ela respirava. Ele gastou um tempo ali, contemplando o contraste dos fios alaranjados como fogo sobre as próprias tatuagens negras como a noite. Fogo e trevas, luz e sombras...
Quem seria quem?
Correu os olhos pelos fios que se esparramavam pela fronha do travesseiro e contornavam os ombros delicados até o busto parcialmente oculto sob o lençol, e se deleitou na pele branca salpicada de sardas esparsas, tão diferente da sua. O olhar seguiu em direção aos seios redondos de bicos rosados, acompanhando o sobe e desce da respiração. Ela parecia uma fada, linda, etérea, quase como se fosse intocada, mas os pequenos detalhes mostravam que não era bem assim.
A parte descoberta do corpo revelava marcas antigas, pequenas cicatrizes na região das costas, cintura e barriga, e era angustiante imaginar o que causara os sinais de diferentes tamanhos na pele delicada. Na parte interna do braço que repousava acima da cabeça, era visível uma série de linhas finas e esbranquiçadas, do cotovelo ao pulso, muito provavelmente autoinfligidas. No pulso, a pior de todas: o estigma de um talho no sentido contrário às outras linhas, acompanhando a direção da artéria. Ele sentiu a garganta fechar enquanto concluía ser esse motivo de ela sempre usar blusas, camisetas de manga longa e tantas pulseiras de couro no braço.
A tristeza o abraçou de modo repentino. Ele mesmo foi um cara todo ferrado, com uma infância de merda, no entanto não conseguia conceber o nível de desespero de alguém para tentar algo contra si mesmo. Tocou a marca do pulso com a ponta do dedo, correu lenta e levemente pelo antebraço até perto da axila e notou quando a pele dela reagiu ao toque com um arrepio.
— Minha fada ferida... fizeram de tudo para cortar suas asas, não é? Mas eu vou cuidar de você, e você vai voltar a voar.
***
Duas da manhã, não fiz nada até agora, vou sair fora (...)
Essa vida é tão igual, tanta gente a vagar pro mesmo lugar
Já não vejo mais sentido onde essa estrada vai me levar
(Baixo Rio — Ed Motta, Fabio Fonseca, Luiz Fernando, Marcelo Mansur)
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