16 - Acento
Acento Musical: um acento ocorre quando uma nota ou frase específica é enfatizada com uma intensidade acima das notas não acentuadas.
Rick chegou ao estúdio de ensaio com 15 minutos de atraso por conta do trânsito entre o Centro e a Zona Oeste. Por mais que São Paulo fosse uma cidade cheia de vias de acesso, caminhos tortuosos e alternativas, quando o trânsito decidia travar, não havia GPS que resolvesse.
Poucas coisas irritavam Rick, e atraso era uma delas, então quando ele entrou na sala de ensaio, já estava de mau-humor. Todos notaram o ar taciturno que ele carregava desde que chegara, isso e a forma como ele saíra do palco na noite anterior, sem dizer uma palavra ao grupo, deixava todos apreensivos.
— A gente fez alguma coisa errada ontem? — Nico fez a pergunta enquanto montava as peças da bateria no aquário do estúdio.
— Não... claro que não. Vocês foram ótimos ontem. Sério.
O grupo ficou mais tranquilo, pois Rick não costumava desperdiçar elogios. Ele era exigente e detalhista, não deixava de dizer o que pensava e, algumas vezes, chegava a ser duro, porém nunca grosseiro. Ele incentivava o que a banda tinha de melhor de forma natural, sem impor a própria vontade, porque acreditava que uma intervenção inadequada poderia descaracterizar o som nativo do grupo, algo que lamentavelmente muitos produtores costumavam fazer, transformando bandas em cópias baratas umas das outras.
— Achei foda ontem! — Dani comentou, animado. — Você tocando com a gente deu outra vibe!
— Não vá por esse caminho — Rick alertou —, Alex só precisa estar mais confortável com o que toca. Isso só vem com o tempo e a prática. Ele é muito talentoso e não gosto quando insinuam o contrário. O que me torna diferente dele é apenas minha experiência como músico, nada mais.
E, com isso, a banda inteira entendeu o recado: nada de cogitar trocar o guitarrista. Todos tinham um papel bem definido e, enquanto respeitassem suas posições, só teriam a ganhar.
O ensaio transcorreu bem durante toda a manhã. Por estarem sem guitarrista, Rick passou bastante tempo concentrado nas levadas de bateria, sincronizando e alinhando as batidas do contrabaixo com o bumbo.
Ao meio-dia, findado o ensaio, tentou ligar para Duda. Ele fez isso de forma automática, sem se dar conta de que estava cada vez mais fissurado nela. Assumiu que sua obsessão estava ficando fora de controle quando cogitou voltar à casa dela só porque a ligação caiu novamente na caixa-postal. Chegou a se perguntar se Júlio não o teria sacaneado passando um número falso.
Queria voltar, mas não o fez, ainda que cada célula do seu corpo implorasse por isso.
***
Duda acordou assustada e sem saber que horas eram. Depois do banho, ela voltara para a cama. Devia ter ido trabalhar? Sim, devia. Mas não fora. Voltara para debaixo do edredom numa nova sessão de autocomiseração.
Ela deixara passar a chance de estar com Rick e se odiava por isso. Seu corpo também a odiava, se rebelando e lembrando-a do quanto era sozinha e infeliz. Ainda que ele tivesse passado um mês sem dar um mínimo de atenção a ela, se de fato não se importasse, não a teria esperado em meio aos moradores de rua, nem passado a noite ao seu lado sem sequer tentar qualquer coisa. Ele não teria se preocupado em verificar se ela estava bem antes de partir, nem a teria abraçado com tanto carinho. Em nenhum momento, ele se aproveitou de sua fragilidade emocional, e isso o colocava num novo patamar.
— O que você acha, gato? Acha que eu tô tão quebrada que não mereço uma chance?
O gato apenas dirigiu a ela os olhos verdes e indiferentes de quem só esperava ela parar de falar para voltar a dormir.
Ela procurou pelo celular, esquecida de que estava sem o aparelho. Quando se deu conta, concluiu, desanimada, que precisava resolver esse assunto, afinal, sua vida inteira estava naquele smartphone; os documentos, cartão de crédito, acesso ao banco digital, tudo. Ela não poderia se mover sem um aparelho habilitado com os Apps devidamente configurados.
A situação a fez pensar no poder que uma simples caixinha preta encerrava. Tudo o que pensava em fazer: ligar para polícia, solicitar transporte, comprar algo, viajar, ouvir música, começar e terminar um relacionamento... Qualquer coisa estava ali, ao toque de um dedo.
Tomada pela decisão de agir, começou a procurar algum documento físico, como sua CNH ou RG. Vasculhou freneticamente numa das caixas do chão e, frustrada, acabou por virar a caixa, espalhando papéis em todas as direções. No meio da bagunça, finalmente encontrou o documento ao lado de uma fotografia na qual uma jovem de cabelos vermelhos segurava um bebê.
A mulher, muito parecida com ela, estava acompanhada por um homem mais velho e de cabelos claros. Era a única lembrança que Duda possuía de sua mãe. Todas as outras fotografias de Isadora haviam sido cruelmente destruídas por Henry em um ato de raiva.
A imagem de si e seu braço pequeno e rechonchudo alcançando a fotografia que repousava sobre a mesa, muito mais alta aos seus olhos infantis, invadiu sua mente, resgatada de alguma prateleira de suas memórias. Entre elas, o homem magro, abatido e embriagado, queimava as fotografias na chama de um isqueiro logo após desfigurar os rostos das pessoas com a brasa do cigarro.
Aquela cena a assombrava tal qual um filme de terror, e ela jamais poderia imaginar que, anos depois, ela mesma viveria aquele mesmo enredo aterrador. Num impulso, tocou as pequenas cicatrizes redondas e rosadas que marcavam sua cintura até o começo das costas. Era ali que Henry costumava apagar o cigarro quando ela tinha o azar de estar por perto. Ele gostava de torturá-la. E ela nunca entendera por que ele a odiava tanto.
As lembranças amargas a respeito de Henry e seu cigarro torturador não foram suficientes para que ela não experimentasse o fumo anos mais tarde. Foi como suprir uma necessidade natural do corpo, visto que crescera em meio a uma névoa de fumaça esbranquiçada. Ela se perguntava se Henry não morreria em breve de algum tipo de câncer por conta disso.
A fumaça não a incomodara quando tragara a primeira vez, mas também não a encantara como imaginara que aconteceria. O cigarro não se tornara seu inimigo como se espera de pessoas que pensam na própria saúde, mesmo porque ela nunca se preocupava consigo mesma, afinal, cada dia já era um desafio à sobrevivência.
Talvez por isso o cheiro do cigarro não interferiu em sua atração por Rick, talvez até tenha colaborado para que ocorresse um interesse de forma tão comum, até esperada. Essa constatação apontava um padrão, como se ela estivesse sempre na busca das mesmas coisas, como o carinho e cuidado de alguém que era músico e que fumava, tal qual seu próprio pai.
Rick não se parecia em nada com Henry, absolutamente, contudo não podia negar que, no fundo, ainda existia um buraco, uma necessidade de ressignificar tudo de ruim que ela vivera. Isso a fazia pensar se não estava erroneamente projetando em Rick seus anseios e expectativas.
Deixando as conjecturas de lado, saiu do apartamento e seguiu pela rua movimentada até um telefone público. Não sabia bem o que fazer, nunca passara por nada parecido e sem computador, amigos ou dinheiro, ela não fazia ideia por onde começar. O único número que ela tinha de cabeça era o de Alex, mas ele estava viajando e não podia fazer nada. Pensou em ir até o Metrô convencer algum segurança de que tinha sido roubada e que precisava chegar ao trabalho. Talvez pedir dinheiro para alguém na rua? Tanta gente fazia isso por ali, afinal de contas.
Ela pensou em ir até a galeria, mas acabou entrando numa lanchonete e, explicando a situação, pediu que um cliente conseguisse para ela o número do Johnny-John na internet. Uma mulher atenciosa fez a busca e ofereceu o próprio celular para ela fazer a ligação.
— Alô? Quem é?
***
E são tantas marcas
Que já fazem parte
Do que eu sou agora
Mas ainda sei me virar"
(Lanterna dos Afogados - Herbert Vianna)
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