14 - Calando
Olá. Um comentário sobre este capítulo. A depressão é um distúrbio real, devastador e precisa ser compreendido. Não julgue sem conhecer, e se você passa por isso, busque ajuda. Boa leitura.
***
Calando (ital.): diminuição simultânea da intensidade e do andamento que faz com que a música fique mais suave.
Rick estacionou o carro em frente ao prédio onde Duda morava. Ali, às portas do edifício, alguns moradores de rua dormiam sob a marquise para se protegerem da garoa que caía. Conferiu as horas, passava da meia-noite. Só quando chegou ali se deu conta de que não sabia qual era o apartamento dela, tampouco o número do celular. Ficou puto consigo mesmo, porque perseguira a garota por meses, contudo não sabia o básico sobre ela. Inconformado, ligou para Júlio.
— Fala, irmão! O que manda? — A voz do amigo pôde ser ouvida do outro lado da linha em meio a um burburinho de vozes e música. Ele provavelmente já estava fervendo em alguma balada.
— Me passa o número da Duda.
— O quê? Onde você está?
— Só me passa o número dela! — Percebendo que estava sendo grosseiro, amenizou o tom — Por favor.
— Vai fazer merda...
— Não vou fazer merda. Fica na tua!
Em instantes, o contato da Duda chegou por mensagem no seu celular. Fez a chamada e esperou. Caixa-postal. Tentou mais uma vez, e nada. Então desceu do carro e foi falar com um morador de rua que descansava próximo à entrada do prédio.
— Boa noite... você viu se uma moça ruiva entrou por aqui? — Não precisou ser muito específico, o homem abriu um sorriso depois da pergunta.
— Ah, a Duda? Não chegou ainda não, parceiro.
— Tem certeza?
— Tenho. Eu sempre vejo a menina chegar. Ela é gente boa, sempre traz alguma coisa pra eu comer... Você tem um cigarro?
Rick acendeu um cigarro para si e estendeu outro a ele. Angustiado, se sentou ao lado do homem na escadaria sem se preocupar com a sujeira ou o mau cheiro. Eles tragavam em silêncio enquanto ele seguia tentando ligar para Duda.
***
Duda desceu na estação República e caminhou pela plataforma quase deserta. Antes de chegar até ali, ela tinha permanecido sentada numa plataforma de outra estação qualquer até que fosse anunciado o último trem, e só então embarcou.
Sem se preocupar com o horário avançado, andava lentamente como quem adia o desfecho inevitável da própria existência. Sentia frio e mal-estar, o estômago protestava pela mistura de bebidas e pela fragilidade emocional em que se encontrava. Sabia que estava por um fio de perder o controle. Sim, porque apesar de sair correndo do trabalho por causa de um homem, isso ainda não configurava falta de controle. No seu caso, seria quando estivesse três dias sem banho, jogada num sofá ou sob algum edredom.
Ela já vivera isso antes. Já tivera sua cota de crises depressivas, quando dia e noite se misturavam e ela só desejava morrer de inanição. Não era um bom momento para isso, não quando seu único amigo se recuperava em algum lugar longe dela e não havia ninguém para convencê-la a reagir.
Angustiada, subiu as escadas rolantes da estação. Quando finalmente chegou ao primeiro piso, sentiu o celular vibrar com a chegada de mensagens. Por alguma razão o aparelho perdera o sinal durante o trajeto. Ergueu o smartphone e conferiu a tela: doze ligações perdidas de um mesmo número desconhecido.
Chegou a posicionar o dedo sobre o número para ligar de volta, porém um vulto passou por ela, arrancou o aparelho de suas mãos e saiu correndo logo em seguida. Ela gritou, um segurança da estação se moveu, mas o gatuno acabou desaparecendo nas sombras da noite.
Que idiota você é! Está no centro de São Paulo, porra! Não se anda por aí levantando os pertences, oferecendo-os, como se fosse uma feira livre!
Suas mãos tremiam de nervoso, ou tristeza, ou cansaço, ou tudo junto. Lágrimas teimosas se acumularam em suas pálpebras, sustentadas por algum milagre da natureza que não permitiu à gravidade fazer o seu trabalho direito. Suspirou e pensou em Rick, e só então uma gota sorrateira escapou, puxando outras consigo enquanto percorria o caminho pelo rosto até o pescoço, sendo por fim absorvida pela gola da camisa que ainda mantinha o primeiro botão aberto.
Devia ter esperado por ele. Devia ter aguardado o fim do show. Podia ter sido madura a esse ponto, porém não fora. Ela preferira se enfiar num canto escuro e lamber as feridas onde ninguém pudesse vê-la se apropriar do anonimato e do abandono a fim de desaparecer como indigente.
Sim. Indigente. Aquele que vive em indigência, sem condições de suprir suas próprias necessidades; miserável, necessitado e pobre. Talvez ela não o fosse fisicamente, mas certamente era uma indigente mental. Não conseguia gerir as emoções, as mágoas, os traumas e a infelicidade. Ela só ficava parada esperando a porrada do desequilíbrio emocional a atingir com tudo no peito. Quisera ser corajosa para enfrentar a dor com ousadia, para mandar as merdas dos vampiros que sugavam sua alma de volta ao inferno.
Ainda sentia o impacto dos sentimentos causados por Rick ardendo no peito. Ela queria tanto isolar essa farpa de emoção em uma redoma e protegê-la do vendaval que quase ignorava o fato de que não se põe uma farpa numa redoma, pois se apagaria por falta de oxigênio. Então ela tinha que deixar a farpa incendiar tudo em volta a fim de permanecer viva, e ela não sabia se seria capaz disso.
Finalmente, dobrou a última esquina para a rua do prédio onde morava. Escutava o ruído seco que o salto de sua bota fazia ecoar na noite fria de fim de outono e desejou, do fundo de sua alma, que a noite terminasse sem um amanhecer.
Isso mesmo. Ela desejava não acordar mais. Era horrível de se pensar? Sim. Significava que ela queria morrer? Não necessariamente. Ela só não desejava viver. Era essencialmente diferente.
***
Rick a viu na esquina. Reconheceria aquele cabelo alaranjado a quilômetros de distância. Tomado de uma ansiedade quase febril, se ergueu e jogou o quinto cigarro fora.
De longe, percebeu que ela estava com frio pela maneira como se movia, abraçando o próprio corpo. Caminhou acelerado em direção a ela com o peito ardendo de preocupação, até que ela o fitou bem dentro dos olhos, e o baque do olhar o paralisou.
Vazio. Tristeza. Abandono. Ele os reconhecia a todos muito bem, e a constatação da amplitude do que ela sentia o deixou indeciso e temeroso em continuar. Contudo, a dúvida durou apenas por um pouco de tempo. Lentamente, ele voltou a se aproximar e então, foi ela quem parou no meio-fio, esperando, decidindo se dava um passo adiante ou se recuava em seu casulo de mágoa.
Ele não esperou a decisão dela. Não dessa vez. Em outros momentos ele aguardou covardemente e ela o alcançou. Dessa vez, ele iria buscá-la no inferno ou aonde quer que fosse, mas não a deixaria mais no escuro, sozinha. Completou as passadas finais e a envolveu num abraço apertado.
— Duda... — ele sussurrou contra os cabelos dela — fiquei tão preocupado com você! Por que não me esperou?
A resposta para isso era tão longa que ela não se deu ao trabalho de responder. Ainda estava se recuperando do baque que a presença dele ali, no meio da rua, causara. Sentiu novas lágrimas queimando nos olhos, desesperadas para correr e correr sem controle novamente. Não queria fazer uma cena na rua, nem na frente dele. Já não bastava tê-lo atacado no beco como uma desvairada.
— Eu estou bem. Só preciso dormir.
Ele se deu conta de que não sabia como proceder a partir de então. Só planejara se certificar de que ela estava bem e, agora, diante dela, inteira ao menos por fora, não encontrava argumentos para continuar ali, cercando-a com sua obsessão. Desconsertado, removeu a jaqueta de couro e a envolveu com a veste.
Ao menos isso ele podia fazer.
Ela não reagiu verbalmente, contudo demonstrou um leve contentamento quando o couro foi acomodado em seus ombros, pelo aroma que exalava e pelo calor que proporcionava. Só isso já seria suficiente para garantir sua sanidade nas próximas horas. Ela seguiu pelo pavimento malcheiroso com Rick em seu encalço até a porta do edifício.
— Boa noite, Juca.
— Boa noite, Duda. O parceiro aí tá te esperando há um tempão.
Rick permaneceu atrás dela, aguardando uma palavra, um movimento, qualquer migalha que indicasse que poderia acompanhá-la ao menos essa noite. Atendendo aos seus anseios, ela lhe estendeu a mão. O calor da palma cobriu os dedos frios, e ele entrou com ela no prédio.
Eles subiram em silêncio. Ele se sentia como uma tocha num castelo de gelo, como se qualquer movimento seu pudesse derreter tudo em volta, fazendo Duda desaparecer. Ela entrou no apartamento no terceiro andar e abriu espaço para ele entrar com ela. Sem uma palavra, ela foi direto ao banheiro e fechou a porta, deixando-o plantado no meio da sala sob o olhar curioso de um gato amarelo.
De repente, ele se sentiu ridículo e fora de lugar. O que tinha imaginado? Que chegaria ali, arrancaria as roupas dela e transariam no chão sobre aquele tapete puído? Pensar nisso o fez sentir uma pressão incômoda na virilha e uma vergonha absurda de si mesmo.
Enquanto esperava, olhou em volta. O lugar pequeno e apertado tinha um aspecto um tanto quanto caótico. Um sofá vermelho e desbotado ocupava um canto da sala pintada de um rosa manchado, ao lado de uma estante cheia de livros distribuídos nas prateleiras de modo irregular. Uma janela com grades dava para um vão entre prédios, o que devia minimizar a iluminação natural durante o dia. Havia, também, um batente sem porta que dava acesso a uma minúscula cozinha de azulejos antigos.
Um guarda-roupas velho e riscado dividia a sala, isolando uma cama de casal encostada na parede, na outra extremidade. Outra porta dava para o pequeno banheiro e, ao lado dela, um violão empoeirado se destacava no ambiente peculiar. Um antigo aparelho de som estilo microsystem ocupava outra parede, próximo a caixas de vinis e bugigangas espalhadas pelo chão. Um único abajur com a cúpula torta jazia no chão perto da cama, e um mancebo cheio de roupas e bolsas penduradas ocupava o outro lado do móvel.
Rick pensou em como tudo isso refletia o caos interior de Duda.
Ele decidiu esperar que ela saísse do banheiro para se certificar de que ela estava bem e, assim, ir embora. Não que o ambiente o incomodasse, ele definitivamente não ligava para isso; pois, apesar da desorganização, o espaço era limpo e tinha o cheiro dela, pêssegos e flores, uma combinação tão distinta quanto a cor de seus olhos que mudavam de acordo com a incidência de luz ou dependendo de como ela se sentia.
Ele não tinha certeza se queria ficar, porque não sabia se havia um lugar para ele ali.
Quando ela, enfim, saiu do banheiro envolta em uma toalha e com o rosto inchado e vermelho, ele notou as manchas em sua pele clara, e sua decisão de partir oscilou significativamente. Movido por impulso, se aproximou e a abraçou novamente, sem segundas intenções.
— Você quer que eu vá embora? — ele perguntou, beijando-lhe o topo da cabeça enquanto acariciava os cabelos úmidos.
— Não.
Ficaram um tempo assim, sentindo um ao outro. Ela se encaixou no peito dele, aceitou o calor do corpo, o conforto das pontas dos dedos em sua nuca e acolheu o pulsar do coração dele como se estivesse tocando uma canção apenas para ela. Como ele pode ser tão carinhoso e tão doce? E como seu cheiro misturado com o aroma do cigarro pode ser tão bom?
Aos poucos, o cansaço a foi vencendo, então ela se afastou, pegou uma camisola branca pendurada no mancebo e passou por sobre a cabeça e os braços, sem se preocupar que ele estivesse vendo-a se trocar. A camisola desceu pelo corpo ao mesmo tempo em que a toalha caía, sem tempo de revelar a pele nua por baixo.
A cena o fez sentir outra fisgada na virilha. Imaginou que ela devia fazer muito isso, talvez na frente do amigo Alex por não ter a privacidade de um quarto. O pensamento o incomodou de um jeito estranho e causou um sentimento que ele ainda não sabia classificar.
Ela se deitou, se cobriu com o edredom e se voltou para a parede. Ele ficou em pé ao lado da cama sem saber como proceder.
— O que quer que eu faça agora, Duda? Você quer alguma coisa? Quer que eu prepare algo pra você comer? Do que você precisa?
Ela estava com o rosto contra o travesseiro. O carinho e o cuidado dele a constrangiam, aumentando consideravelmente o fluxo das lágrimas que molhavam a fronha. Ela bem queria se controlar, ah... como queria! Como tinha fantasiado com ele ali, no seu quarto-sala, mas em outro momento, quando ela estivesse segura de si e emocionalmente estável.
Ele percebeu que ela continuava chorando e foi até a cozinha, procurou algo para acalmá-la, então encheu um copo com água e adoçou com duas colheres de açúcar. Não sabia o que fazer, o que realmente precisava fazer, mas também não podia deixá-la assim.
Voltou com a água adocicada e pediu a ela que bebesse. Por fim, se sentou na cama e puxou-a contra si num abraço. Ela apoiou novamente o rosto em seu peito e ficou assim até que os espasmos diminuíram e foram substituídos por um ruidoso ressonar.
Satisfeito, ele fechou os olhos e, embalado pelo leve ronco e pelo aroma de pêssegos, sabonete e mulher, dormiu com ela nos braços.
***
...Dorme agora... é só o vento lá fora.
(Pais e Filhos - Renato Russo)
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Lembre-se, você não está sozinho. Se você se identifica com os sentimentos confusos e opressores descritos nesta obra, em algum grau, busque ajuda.
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