13 - Compressão
Compressão: utilizado em sinais de áudio, serve basicamente para diminuir o volume dos sons mais altos e aumentar o volume dos sons mais baixos do sinal, estreitando a faixa dinâmica do som, ou seja, "achatando" o som.
Rick observou Duda se servindo de algumas doses de vodca, e se deu conta que não a tinha visto bebendo das outras vezes que ficara ali, na mesa de som, se contentando em apenas olhar para ela sem se aproximar. De fato, não a tinha visto beber antes, e não fora por falta de olhar.
Duda jamais imaginaria que ele se mantivera afastado, mas não completamente. Ele continuara observando-a de longe, sem ser notado, sempre que possível. Quando ele entendeu que não poderia estar com ela, protegê-la e conhecê-la como gostaria, ficou ainda mais obcecado.
A situação o fazia se sentir culpado, errado, desequilibrado. Por várias vezes, pensara em largar tudo e voltar para a Irlanda, entretanto seu comprometimento com a banda o mantivera no lugar, ainda que fosse uma tortura cada dia tão perto e tão longe do que realmente queria.
No último mês Rick buscara manter a mente ocupada com a banda. O grupo alugara um estúdio na mesma região do Johnny-John para fazer ensaios uma vez por semana e ele aproveitara para refinar alguns arranjos, trabalhando as vozes de Alex e Hannah como backing-vocals. O efeito valorizava a voz de Dani e o resultado ficara impressionante, tanto que eles estavam com a ideia de começar a gravar.
O foco o ajudara a se distrair do que sentia em relação à Duda. Ele sabia que precisava de tempo e distância para lidar com os próprios sentimentos, já que conhecer uma farpa da história dela mexera com as suas estruturas e despertara o menino solitário que dormia encolhido no canto do quarto escuro à espera da mãe, e ele odiava se sentir assim.
Rick odiava o que Duda despertava nele, um sentimento que o obrigava a enfrentar aqueles espectros antigos, quase extintos. Fazia muito tempo que nada daquilo causava um efeito tão significativo sobre ele, e ele detestava se lembrar, detestava se sentir um coitado.
E Rick não era isso, não um coitado. Ele era um cara foda, muito foda e não precisava que ninguém o convencesse disso. Só que ele não se sentia tão fodão com Duda. Não com ela. Ela o fazia se sentir vulnerável outra vez, e ele não sabia o porquê, nem queria saber, isso não importava agora. A única coisa que importava naquele instante é que ele precisava passar o som com a banda. Ao menos essa noite, ele poderia estar no palco, o que era muito melhor do que ficar parado, estático, no mesmo local, noite após noite, com a mesma visão tentadora.
Ele passou o som, observou Duda de longe e se esquivou mais uma vez dos olhos cinzentos. Em tempo, ajustou o pedestal do microfone, pegou a stratocaster*, ajustou a correia, soltou os cabelos e se preparou para o show. A luz começou a se mover enquanto o público se amontoava em frente ao praticável. A máquina de gelo seco fazia subir uma fumaça perfumada. A energia, a pressão, a expectativa, tudo junto como uma droga viciante o envolveu, isolando-o completamente dos pensamentos intrusos. O baterista marcou o tempo na baqueta e desceu a mão, enquanto a contrabaixista o acompanhava no groove**. Rick acionou o pedal de distorção e soltou o acorde. O público ovacionou, o show começou.
***
Duda só percebeu que um rapaz estava gesticulando nervoso para ela quando Jonas lhe deu uma cotovelada no braço. Aparentemente, o cliente estava tentando pedir uma bebida, mas Duda flutuava em outro planeta em que um feiticeiro tatuado e cabeludo tocava uma Fender cheio de energia. Toda vez que ele soltava a voz no microfone para as harmonias de vocal, ela reparava embevecida em como os cabelos dele colavam nos lábios úmidos e no rosto suado. Ele estava deslumbrante, de um jeito que fazia suas entranhas doerem.
— Qual vai querer? — Duda questionou sobre a marca da cerveja que o rapaz desejava e o serviu sem tirar os olhos do palco, porque simplesmente não conseguia. Chegou a se perguntar se apenas ela se sentia tão enfeitiçada assim por Rick.
Ela jamais saberia, pois já estava um pouco zonza, não só pelo efeito inebriante que ele causava nela, mas devido às inúmeras bebericadas que dava cada vez que preparava um drinque. Um gole de vodca, outro de gin, um martini aqui, uma tequila ali... Ela sabia que estava fazendo merda, também sabia que a dor de cabeça do dia seguinte seria mais agradável do que os dentes dos seus vampiros sugando a vida do seu coração partido.
Sim. Ela estava de coração partido. Porque seu amigo a abandonara para confraternizar com estranhos em algum retiro. Porque aquele homem maravilhoso do palco nunca mais falara com ela depois do beijo, aquele beijo que para ela fora tudo e, aparentemente para ele não significara nada. Ela sabia que estava sensível, que estava entregando os pontos, mas não queria parar agora. Ela queria sentir algo, qualquer coisa que tirasse a sensação de abandono de dentro de si.
Ao perceber que a banda estava finalizando a primeira etapa do show, ela sentiu um desejo súbito e inconsequente, um anseio ardente de saber como seria agir por impulso ao menos uma vez na vida, essa vida que ela vivia, tão insossa, amarga e vazia na qual nada era capaz de chacoalhar as águas paradas e lamacentas das suas mágoas submersas, porque mexer fazia subir o mau cheiro dos pensamentos de autodesprezo e desejo de morte que ela tentava esconder a todo custo. O impulso foi mais forte, embalado pelo efeito do álcool, então ela abandonou Jonas no balcão apenas por um pouco de tempo e cruzou o bar rumo ao banheiro.
Duda entrou no cubículo agora cheio de mulheres por conta do intervalo do show, e jogou uma água no rosto para se recompor. Ela viu o próprio reflexo, as maçãs do rosto rosadas pela expectativa, a expressão que zombava de si mesma como se fosse outra pessoa, uma melhor ou talvez pior do que a versão original. Tentou um sorriso, lhe pareceu promissor, quase verdadeiro, quase sincero.
Ela não se deixou abater pelo engodo. Soltou os cabelos e os afofou para ajustar o volume, depois abriu o primeiro botão da camisa do uniforme deixando aparecer a bordinha do sutiã de renda, nada vulgar, só um detalhezinho que chamava a atenção quando ela se movia ou inclinava o corpo com esse propósito. Feito isso, ela deixou o banheiro e saiu pela porta lateral sabendo exatamente o que queria.
***
Rick acendeu o segundo cigarro. O primeiro ele tragou quase em duas puxadas. Estava cheio de energia e de adrenalina por conta do show. O bar estava abafado e agora ele apreciava a brisa fresca da noite em seu corpo suado pela performance e pelo calor das luzes. Ele admitiu que a sensação só não era melhor do que a carícia de uma mulher...
Talvez de uma mulher específica.
E por falar em mulher, quando Duda cruzou a porta de acesso ao beco, ele quase se engasgou com a fumaça e chegou a pensar que ela era uma alucinação causada pela nicotina. Ela caminhou em sua direção, extremamente sensual de um jeito que nunca a tinha visto antes. Os cabelos volumosos estavam soltos em camadas ao lado do rosto rosado, os lábios estavam úmidos e semiabertos e o olhar, direto nele, fisgava-o sem misericórdia como um arpão.
Ele deu um passo atrás quando se lembrou do conselho de Júlio, mas ela seguiu avançando em sua direção. Sem escapatória, descartou o cigarro um segundo antes de ela se lançar e suas bocas se juntarem num beijo ensandecido. Alguns fumantes ao redor deram assobios e vibraram em comemoração.
Ele sentiu o coração a ponto de sair pelas orelhas — não pela boca, porque ela estava ocupada demais agora — e a tensão dos intermináveis dias de afastamento se evaporou conforme o cheiro dela subia por suas narinas: pêssego e algo mais primal, mais carnal e absurdamente excitante. Rendido, ele a envolveu nos braços e invadiu a boca gulosa com a língua.
Deus, como desejou enfiar a língua nessa boca!
Duda se abriu para ele e gemeu cheia de volúpia. Ele sentiu o hálito de álcool e percebeu que ela não estava totalmente sóbria, mas não se importou. Não agora, agora não havia o que fazer além de experimentar o fogo branco que os envolvia. Rick separou os lábios, apenas um pouquinho para respirar, e seus olhos encontraram o busto dela onde a abertura da blusa deixava ver a renda do sutiã.
Se o seu corpo já não estava completamente retesado, agora estava, e ele sentiu o sangue pulsar em todas as terminações, principalmente na virilha. Não se lembrava de ter desejado tanto assim uma mulher em toda a sua vida. Ele percebeu que a respiração dela estava irregular e que ela estava tão cheia de tesão quanto ele, e se ele não tivesse que subir ao palco de novo, a arrebataria dali para qualquer lugar onde pudessem terminar o que acabaram de começar.
No entanto, ele tinha que voltar ao palco e não queria causar mais problemas a ela. Ele precisava ser a porra do sóbrio ali, então a afastou delicadamente, tentando recolocar as emoções e reações do corpo sob controle.
Duda protestou e o segurou pelos braços. Rick daria tudo para vê-la assim sem a necessidade do álcool, pois sabia que o que as pessoas faziam quando bêbadas era o que desejavam quando sóbrias e, muito provavelmente, essa era a verdadeira Duda, ou como ela seria se não estivesse com a vida toda ferrada por causa dos pais.
Inconformado com a ironia de ter que a deixar, ele a abraçou apertado, aspirou o aroma dos cabelos rubros, um pouco mais do pêssego ou alguma fruta desse tipo que ele não ia poder degustar agora, e esperou os ânimos se acalmarem. Então, uns poucos minutos depois, ele sentiu o corpo dela tremer num leve chacoalhar. Buscou-lhe o rosto e a encontrou chorando copiosamente. Ele não entendeu nada e, nesse momento, Nico apareceu na porta, procurando-o. Rick não sabia o que fazer.
— Duda... eu preciso voltar e... Por que você tá chorando?
Ele manteve o rosto dela entre as mãos, lhe acariciando o couro cabeludo com os dedos. Duda fechou os olhos pois não conseguia mais encarar aquele olhar tão doce e tão profundo. Percebeu como Rick estava dividido, então, tentando controlar o pranto, fez um sinal com a mão para o afastar.
— Estão te esperando...
— Por que você tá chorando?
Ela não respondeu e ele finalmente a soltou. O beco já estava quase vazio, exceto por um casal que se agarrava perto da caçamba de lixo assim como eles mesmos faziam há pouco. Ele se perguntou quanto tempo tinha durado o beijo que acabaram de trocar.
— Me espera, ok? A gente precisa conversar sobre isso... Você vai ficar bem até eu terminar o show?
Ela moveu a cabeça afirmativamente. Ele deu um beijo leve nos lábios dela e entrou de novo no bar, sentido o gosto salgado das lágrimas na própria boca.
Nunca foi tão difícil para Rick terminar um show. Ele tinha consciência de que sua performance caíra, entretanto, as pessoas sequer repararam. Ninguém percebeu que ele emitia as dobras da harmonia vocal sem a mesma energia, porque a garganta estava travada, nem se importou com as notas longas e sem vontade que ele passou a soltar na guitarra, se aproveitando do efeito da distorção.
Ele continuou vasculhando o local com o olhar, buscando Duda no bar, porém ela não voltara para lá nem para parte alguma. Jonas, muito irritado, também procurava por ela, até que um dos garçons falou com ele e passou a ajudá-lo com os drinques.
Quando a última música finalmente acabou, Rick se apressou em guardar os equipamentos sem falar com ninguém. O pessoal da banda ficou intrigado com o seu comportamento achando que haviam feito algo de errado. Ele não se importou em elucidar o caso, só precisava sair dali, precisava procurar por ela, então desceu do palco e foi direto ao bar.
— Sabe da Duda? — Perguntou a Jonas.
— Foi embora. Estava passando mal, eu acho.
Rick saiu do bar sem se despedir e jogou o instrumento no banco de trás do carro. Precisava falar com ela, ver se ela estava bem, então deu a partida, manobrou o carro e cantou os pneus em direção ao centro da cidade.
***
Não existiria som se não houvesse o silêncio
Não haveria luz se não fosse a escuridão
A vida é mesmo assim
Dia e noite, não e sim"
(Certas Coisas - Lulu Santos)
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* Modelo versátil de guitarra muito usado por bandas de pop-rock.
** Na música, o groove, popularmente também chamado de levada ou clave, são padrões rítmicos curtos que servem como guia na música em sua dimensão rítmica
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