11 - Mediante
Mediante: terceira nota de uma escala, que está a meio caminho entre a Tônica: nota principal, e a Dominante: a nota que dá força à Tônica.
Seria lindo se não fosse irônico... ou até ridículo. Duda ainda sentia todo o corpo vibrar como se estivesse em carne viva, como se um único toque fosse capaz de fazê-la entrar em combustão.
Ela nunca se sentira assim antes. Estava consciente de que sua pele branca estava vermelha agora, gritando para todos em volta que ela estava fora de si. Ela passou direto pelo cozinheiro, foi até o banheiro dos funcionários e se trancou lá.
Ao se aproximar da pia, viu o próprio reflexo no espelho. Os cabelos rebeldes estavam se soltando do rabo de cavalo que ela tinha feito mais cedo, e havia manchas na pele, como edemas, no busto e no pescoço. Era uma espécie de reação emocional. As manchas costumavam aparecer quando ela se estressava ou se descontrolava.
Quando ainda estudava, não queria mostrar os verdadeiros edemas nos braços e pernas causados pelas explosões de fúria do pai, então vivia com blusas de capuz e nunca, nunca colocava um short. Conhecidos questionavam sobre as manchas que, por vezes, surgiam onde se podia ver um pouco de pele, e ela alegava casualmente se tratar de alergia, chegara até a inventar uma doença rara.
Certa vez, intrigada com as manchas que despontavam no pescoço, a professora de Educação Física a instigara a puxar um pouco a roupa para checar a pele do braço. Duda dera graças a Deus porque naquele dia não havia nenhum edema real naquela área, apenas os vermelhões da reação emocional.
As surras começaram quando ela tinha apenas onze anos de idade, exatamente quando seu corpo começava a mudar, os seios despontavam e as curvas ficavam mais evidentes a cada dia. Conforme crescia, mais se parecia com Isadora, e isso era insuportável para Henry.
Ela podia ter denunciado o pai pelas surras? Podia. E talvez não acontecesse nada, e se acontecesse de ele ser preso ou perder a guarda da filha, para onde ela iria? Não havia parentes, amigos de família, nenhum lugar onde ela pudesse se esconder. Os avós estavam mortos, ela seria separada de um ambiente que lhe era familiar e levada para algum abrigo. Por pior que fosse sua realidade, o desconhecido era muito mais assustador para ela. No fim, ela acabara concluindo que só precisava aguentar mais alguns anos e então poderia partir.
Quando tudo mudara e sua vida virara uma sequência dias de tormento sem fim, a música fora o seu elo com a sanidade. Nos momentos em que Henry não estava em casa, ela pegava o violão e entrava em outro mundo, um lugar onde vampiros não devoravam suas entranhas sufocando seus sonhos.
A música também se tornara a sua quimera, um talento proporcionado geneticamente por aqueles que deveriam amá-la e protegê-la, mas não o fizeram. Eles a abandonaram e maltrataram, ano após ano, fazendo-a odiar suas origens e tudo o que a associava a eles. A música era um remédio amargo que ao mesmo tempo acalentava e atormentava sua alma. Confuso? Totalmente. E sem solução aparente.
Mais calma agora, ajeitou os cabelos, lavou o rosto e se preparou para encarar Júlio no salão. Reconhecia que estava ficando sem desculpas para manter o emprego. Nesse momento, deu graças a Deus por ter dois, assim não ficaria na mão quando saísse pelas portas do bar para não mais voltar. Quando finalmente deixou a cozinha, encontrou o salão vazio, exceto por Jonas que repunha os guardanapos das mesas.
***
Rick convenceu Júlio a ir com ele a uma padaria próxima ao bar. Precisava sair de lá, sentia-se sufocado e inseguro com toda aquela situação. Acomodaram-se numa mesa, pediram dois expressos e Júlio, percebendo o estado do amigo, tentou substituir a chacota pela solicitude, pois era evidente que tinha algo a mais no comportamento inconsequente do produtor.
— Ei, brother... O que tá pegando, além da minha bartender?
— Eu não tô pegando ela. Para de ser idiota!
— Calma, velho... só quero conversar.
Júlio notou como Rick estava de fato irritado. Era muito raro ver o amigo assim. Rick sempre foi o cara do "deixa disso", e todo mundo gostava dele porque ele estava sempre tranquilo e sorrindo.
Quando Júlio conheceu Rick, ele já era "da paz". Foi num estúdio na Zona Sul, há uns doze anos. O músico fora contratado por uma cantora para gravar o contrabaixo num álbum de MPB no qual Júlio havia feito os pianos. O som era um misto de samba e soul, um som mais dançante com raiz nos ritmos afro associados às batidas eletrônicas. Júlio ficara impressionado com a performance do contrabaixista, o modo ritmado e marcado que ele tocava, as ideias e frases que ele inseria no arranjo eram algo bem incomum.
Eles conversaram muito na época. Júlio rapidamente se afeiçoou a Rick pelo jeito maduro como ele lidava com os trabalhos, não botava banca nem tentava se impor, sempre muito educado e seguro. Eles acabaram ficando amigos e fizeram vários projetos juntos depois, até que Rick saiu do país.
— Cara... eu preciso te contar uma coisa sobre a Duda — Rick começou a falar, incerto se seria uma boa ideia —, você precisa me garantir que não vai se meter nesse assunto com ela, combinado?
— Não sendo nada que prejudique meu negócio, por mim tudo bem.
Então Rick contou por alto como tinha conhecido Duda. Falou do vídeo e de Isadora Ferri. Ele se sentiu um delator, alguém que não tinha o direito de contar os segredos de outras pessoas, mas que o fazia porque precisava desesperadamente falar com alguém sobre o assunto.
— Quer dizer que você virou uma espécie de tarado enquanto estava na Europa? — Júlio perguntou, sem conseguir afastar o deboche.
— Vá à merda. — Rick empurrou o café sem poder ingerir o líquido morno.
— Desculpa, cara, mas a história dá umas boas fantasias. Você pegava a mãe, agora quer pegar a filha...
— Vá tomar no cu, Júlio! Que merda! – Rick se levantou e foi ao caixa para pagar a conta.
— Calma, Rick! Você me conhece, irmão! Você sabe que eu só tô tentando melhorar o teu humor. Fica de boa!
— Bela tentativa! Vá se foder!
Rick soltou um longo e ruidoso suspiro. Estava de fato muito irritado por ter se metido na história do ex-namorado, por ter perdido o controle, por ter interrompido o beijo... Seus lábios ainda formigavam pela sensação, e o resto do corpo também.
Ele não esperava pelo beijo. Tinha se aproximado dela sem planejamento ou segundas intenções, impelido apenas por um impulso de protegê-la, de colocá-la num invólucro de segurança. Porém, do nada, ela já estava colada ao seu corpo, devorando-o com aquela boca deliciosa.
A lembrança o fez sentir novamente os açoites do desejo. Nem ele mesmo sabia que aquilo estava borbulhando sob a superfície de aparente controle, só que agora que as fissuras apareceram, seria muito difícil conter a vazão das emoções.
— Me deixa ver o vídeo! — Júlio se aproximou de Rick que, contrariado, entregou o celular a ele. Quando começou a assistir à gravação, ficou evidentemente espantado.
— Ca-ra-lho...! Ela canta pra porra!
Rick insinuou o primeiro sorriso do dia, um pouco mais tranquilo por confirmar que não era de fato um maníaco com uma obsessão sem sentido. Júlio devolveu o celular a ele.
— Por que essa moça não tá cantando no palco ao invés de preparar drinques? — Júlio questionou.
— É uma excelente pergunta, mas o assunto é delicado. Ela não quer e não se meta nisso, por favor. Você me garantiu.
— Certo, certo. Mas agora não vou conseguir dispensar ela, meu senso de oportunidade não vai permitir.
— Por que você quer dispensá-la?
— Porque ela deu mole pra você! É proibido dar em cima dos clientes. Deu mole: rua!
— É diferente, você sabe disso e eu nem sou cliente!
— Pros outros não é diferente. Agora, como fica a minha credibilidade? Se eu fizer uma concessão, eu perco a razão.
— Inventa que eu dei a investida, sei lá.
— Fica na sua, então. Segura tua onda, pelo menos no bar. Da porta para fora, eu não posso me meter no que vocês fazem, mas no meu bar, não quero putaria.
E ali estavam o Júlio e sua sagacidade para os negócios. Ele até era um cara legal, mas quando se tratava de trabalho, ele era um rolo compressor.
— Fica tranquilo. Não vou chegar perto dela, beleza?
— Valeu, irmão. Outra coisa, conselho de amigo: foge dessa história. Isso vai dar merda e tá na cara, escuta o que eu tô te falando. Se você insistir nisso, vai acabar quebrando a cara, vocês vão se magoar e eu não quero nem pensar no que pode acontecer quando essa moça souber que você pegava a mãe dela. Agora, bora voltar pro bar porque eu tenho que resolver uns lances.
Rick voltou com Júlio. Uma apreensão, como se uma bolha de ar estivesse alojada acima do seu diafragma, dificultava sua respiração.
Ansiedade.
Fazia anos que não sentia isso, mais precisamente desde quando soubera da morte da mãe. Ficou conjecturando sobre como o ser humano não passa de um saco de ossos cheio de neurotransmissores que apenas recebem informações e decidem o que se deve ou não sentir. Medos, angústias, frustrações, paz, amor, paixão... às vezes tudo junto e ao mesmo tempo.
Rick sabia que Júlio estava certo, que não tinha como a história com a Duda evoluir para algo mais significativo e agora precisava ficar ligado para não deixar a coisa sair do controle, se é que dá para controlar alguma coisa quando se trata de sentimentos. Ele cortaria o contato, mas não se sentia capaz de se afastar totalmente.
Não depois de saber que, além de abandonada, ela havia sido agredida.
Não enquanto aquele ex-namorado maluco a estivesse cercando e ameaçando.
Não depois de ter tocado sua pele e sentido seus lábios...
Não. Ele não conseguiria.
***
Eu posso estar sozinho, mas eu sei muito bem aonde estou.
Você pode até duvidar, acho que isso não é amor.
Será só imaginação? Será que nada vai acontecer?...
(Será - Renato Russo / Dado Villa-Lobos / Marcelo Bonfá)
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