1 - Da Capo
Da capo (ital.): significa "do início", é uma indicação de onde a música começa.
D.C.
Já passava das duas horas da manhã quando Duda finalmente fechou as portas do bar. A noite tinha sido movimentada, e o último casal demorara a ir embora. O salão estava vazio, exceto pela presença de Jonas, o gerente do local.
— O que você achou da banda esta noite? — Jonas perguntou enquanto terminava de limpar as mesas.
— Ah... normal — Duda respondeu, evasiva. Ela não tinha gostado, mas não era muito de falar o que pensava. Na verdade, ela quase nunca falava o que pensava.
— Achei o grupo meio perdido hoje, não sei. Não entendo muito de música, mas alguma coisa estava fora do lugar.
— O guitarrista. Ele tava fora do lugar. — Diferentemente de Jonas, ela sabia algo a respeito de música.
Na verdade, ela sabia muito sobre música. No entanto, ninguém sabia disso, nem nunca saberia, se dependesse dela.
— Acha que ele voltou a usar...? — Jonas especulou, preocupado.
Todos no bar se preocupavam com Alex, o guitarrista da banda que tocava às sextas-feiras e aos sábados no Johnny-John, o bar de música alternativa localizado na Zona Oeste de São Paulo. O local era famoso por apresentar bandas de rock em início de carreira.
Os shows costumavam ocorrer de quinta-feira a domingo, e os donos do local eram muito criteriosos na escolha de quem se apresentava lá. Costumavam dar preferência às formações mais enxutas, trios ou quartetos, critério importante devido ao tamanho do palco. Mesmo que as bandas estivessem no começo, precisavam provar que eram boas; os músicos podiam apresentar releituras de outros compositores, mas a maior parte das canções deveria ser autoral, e nisso os proprietários eram categóricos.
— Não sei, Jonas. Fica fora disso.
Duda sabia que Alex nunca havia parado de fato com as drogas; porém, como sempre, ela não contaria a ninguém. Não tinha nem um mês, ela socorrera o rapaz desacordado numa poça de vômito no próprio apartamento e chamara o SAMU*. Tudo ficara entre eles, obviamente.
Alex era a pessoa mais importante na vida de Duda. Eles se conheciam desde a adolescência, quando ela não passava de uma gótica depressiva e ele um imbecil com a guitarra nas costas. Não foi uma, nem duas ou sabe-se lá quantas vezes que Alex precisou intervir nas surras que Duda levava do próprio pai, e foram muitas as vezes que ela teve que tirar Alex de pontos de consumo de drogas antes que uma batida policial ou uma overdose acabasse com a vida dele. Foi Alex quem apresentou Duda aos donos do Johnny-John, onde passou a trabalhar como bartender.
— Vamos ver como ele vai estar amanhã. Você sabe que eu vou precisar contar pro Júlio se a banda não estiver agradando, certo? — Jonas falava enquanto colocava as cadeiras viradas sobre as mesas para limpar o chão.
Júlio era um dos sócios do bar: o homem do cérebro e do ouvido. Diferente de Mateus que só entrava com a grana, Júlio tinha talento para encontrar talentos. Como costumava visitar locais de música ao vivo, fazia o trabalho de garimpar músicos e os trazer para o Johnny-John.
Foi ele quem descobriu a Dropp, a banda de rock composta por Alex na guitarra; Hannah e sua levada incrível no contrabaixo; Nico, que arrasava com as baquetas; e Dani, o vocalista de sorriso fácil e principal compositor da banda.
— Ninguém reclamou deles, Jonas — Duda respondeu, distraída —, acho inclusive que o pessoal tava curtindo. Eu vou conversar com o Alex amanhã, beleza? Se tiver alguma coisa acontecendo, eu te falo.
Era óbvio que ela não ia falar nada.
Ela pegou os sacos de lixo e foi até uma porta nos fundos do bar para descartá-los na lixeira externa. A porta dava para uma ruela estreita e escura, longe das vistas e do acesso direto do público. Mesmo assim, quando queriam fumar, os clientes costumavam ficar por ali, no local que apelidaram de "beco". Duda arrastou os três grandes sacos pela calçada, xingando mentalmente Jonas por não fazer esse trabalho no lugar dela.
Tudo bem, ela estava acostumada a carregar o lixo.
Cansada pelo esforço, deteve-se por um momento e puxou o ar a fim de recuperar o fôlego. Sentiu o celular vibrar no bolso de trás da calça, pegou o aparelho e suspirou contrariada ao ver a identidade do chamador.
E por falar em lixo...
Irritada, ignorou pela décima vez a chamada de Enzo, seu ex-namorado. Tinha terminado com ele naquela manhã, cansada do jeito controlador do rapaz. Não suportava ciúmes.
Duda estivera com Enzo por seis meses, um recorde, num namoro que no começo dava sinais de que seria bacana; mas fatalmente, como em tantas outras relações, Enzo começara a colocar as manguinhas de fora: queria controlá-la.
Era o que todos faziam uma hora ou outra. Faziam-na acreditar que era livre, que tinha escolha e, dali a pouco, interferiam no que ela vestia, aonde ia, o que comia ou quando comia. Até que, enfim, se metiam nos seus problemas emocionais; diziam que ela precisava se tratar e passavam a lidar com ela como uma desequilibrada. Quando chegava nesse ponto, ela já não queria mais nada com a pessoa.
Ninguém nunca mais iria controlá-la.
— Ei, ruivinha... quer carona? — um rapaz gritou para ela da janela de um carro, acompanhado de outros que faziam algazarra enquanto ouviam funk no último volume.
— Vaza, imbecil! — retrucou, sabendo que ele não a ouviria, mas certamente entenderia a mensagem do dedo do meio em riste que ela lhe direcionou. O rapaz deu uma risada alta e saiu cantando pneus, deixando o beco no mesmo silêncio de antes.
Ela colocou o lixo na caçamba e voltou lentamente para a porta dos fundos do restaurante, apreciando o ar úmido da noite de São Paulo em começo de outono. Pensou que poderia fumar um cigarro agora, mas tinha parado de fumar, então se deteve por mais alguns instantes ali fora, contemplativa.
Duda gostava da noite. Era menos barulhenta, menos quente e com menos gente. Ainda que São Paulo fosse uma cidade que não dormia, esse era um horário em que o ruído constante de carros diminuía e o ar ficava menos pesado de poluição.
Em noites úmidas assim, quando o frio ainda estava distante e as águas de março já tinham fechado o verão, era até agradável caminhar pelas ruas, não tão desertas, mas bem menos movimentadas. Sempre era possível ver alguém passeando com um cão ou um cão passeando sem ninguém. Ironicamente os cães solitários vasculhavam o lixo à procura de comida, e as pessoas que se alimentavam do lixo sempre tinham um cão por companhia.
Era a cidade dos cães sem dono e dos donos sem cães.
E dos homens que tratavam os outros como cachorros.
E dos que adorariam ser um cão de raça daqueles donos cheios de dinheiro, que gastavam uma fortuna com seus animais de estimação.
— Ei, Duda! Preciso fechar! Você vem? — Jonas a chamou da porta, interrompendo suas divagações.
Era sexta-feira, o movimento seguia até domingo e ela precisava descansar. Como era madrugada e o Metrô não circulava a essa hora, pediu um Uber. Viu que havia mensagens de Enzo em sua caixa de entrada, mas as ignorou. Para ela, quando chegava o fim, era o fim, e ponto final.
[...]
Do outro lado do beco, oculto pelas sombras, um homem observava Duda. Ele jogou o cigarro no chão, apagou-o com a ponta do coturno e pegou o celular.
Então aqui é o Johnny-John, e essa é a Eduarda...
Constatou que a menina era idêntica ao vídeo. Não era tão fácil encontrar ruivas autênticas por aí, e essa mulher, com certeza, era uma versão mais mais madura da garota da gravação. Definitivamente era ela: Eduarda Ferri.
***
Sempre precisei de um pouco de atenção.
Acho que não sei quem sou, só sei do que não gosto,
e destes dias tão estranhos,
fica a poeira se escondendo pelos cantos...
(O Teatro dos Vampiros – Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá)
*SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
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