|12 | 𝑹𝑬𝑪𝑶𝑹𝑫𝑨𝑹
Eu poderia passar minha vida nessa doce redenção
Eu poderia me perder neste momento para sempre
Todo momento que eu passo com você
É um momento precioso
𝑰 𝑫𝒐𝒏'𝒕 𝑾𝒂𝒏𝒕 𝑻𝒐 𝑴𝒊𝒔𝒔 𝑨 𝑻𝒉𝒊𝒏𝒈𝒗 | 𝘈𝘦𝘳𝘰𝘴𝘮𝘪𝘵𝘩
Depois de várias taças de vinho e uma troca de perguntas que pareciam não ter fim, eu e Sorah estávamos cada vez mais próximos. O riso dela, alto e despreocupado, preenchia o ar, e eu me pegava sorrindo a cada gargalhada. Havia algo nela que fazia o tempo parecer insignificante, como se o mundo lá fora não existisse. Mas, assim como todos os momentos bons, o nosso foi interrompido pelo toque insistente do meu celular.
Nós dois nos olhamos, sem perceber o quão tarde havia ficado.
— Acha que ainda dá tempo de eu te levar a um lugar? — Ela perguntou, os olhos brilhando com um entusiasmo inocente, como se tivesse um segredo guardado, algo que só ela poderia me mostrar.
— Claro, desde que não me mate e dê meu corpo aos porcos — respondi em tom brincalhão, tentando esconder o leve desconforto que o toque do celular havia trazido. Ela revirou os olhos, mas com aquele sorriso brincalhão que eu amava.
— Tenho certeza de que Serena teria ideias melhores para se livrar do seu corpo — ela respondeu, fingindo seriedade.
— Com certeza! — Ri, enquanto começávamos a juntar as coisas do piquenique, mas meu celular tocou de novo, insistente, interrompendo o momento.
Sorah me lançou um olhar compreensivo, mesmo que eu sentisse o peso da expectativa em seus olhos. Ela sorriu gentilmente, aquele sorriso que dizia que estava tudo bem, mesmo que, no fundo, talvez não estivesse.
— Pode atender — ela sugeriu, ainda sorrindo. — Eu arrumo as coisas.
Hesitei. O toque do celular parecia ter mudado o ar entre nós, e eu me odiava por isso. Suspirei e me afastei alguns passos, atendendo a ligação.
— Tens exatamente dez minutos pra eu não te quebrar na porrada — rosnei, já ouvindo a voz arrastada e embriagada de Blayne do outro lado.
— Conseguimos, cara! — A voz dele era alta, e havia barulhos ao fundo. — Conseguimos a porra do CD! — Blayne anunciou, e eu podia imaginar o sorriso enorme no rosto dele.
— Caralho, sério? — A excitação percorreu meu corpo, mas logo desvaneceu quando meus olhos caíram sobre Sorah. Ela estava ali, arrumando o piquenique com tanto cuidado, como se quisesse prolongar o momento, talvez tentando manter o que restava daquela noite.
— Parece que alguém comprou a gravadora e investiu na gente — ele continuou, com o som abafado de vozes femininas ao fundo. — Vem comemorar, cara! Tem cada garota gostosa aqui.
Fechei os olhos e respirei fundo, o conflito em mim crescendo. Eu queria comemorar, claro, mas não da maneira que Blayne sugeria. Olhei novamente para Sorah, que estava ali, embaixo da árvore, me esperando. Seus gestos eram suaves, mas eu podia ver nas linhas tensas de seus ombros que ela sabia. Ela sabia que, com aquela ligação, o nosso encontro tinha chegado ao fim.
— Eu vou pensar — respondi, a voz sem firmeza, sabendo que ela ouviu.
— Como assim "vai pensar"? — Blayne questionou, mas eu já estava desligando o telefone antes que ele pudesse continuar.
Guardei o celular no bolso, com a mente a mil. Quando voltei para junto de Sorah, ela estava de pé, os olhos evitando os meus, e pude ver o brilho de uma tristeza que ela tentava esconder.
— Eu posso ir de Uber, não se preocupe — ela disse baixinho, tentando parecer casual, mas a mágoa estava ali, na forma como seus dedos tocavam delicadamente o pano do piquenique, como se não quisesse que a noite terminasse assim. E eu também não queria. Estava tudo tão bom, e a ideia de deixá-la ir me apertava o peito de um jeito que eu não esperava.
Sem hesitar, peguei o celular novamente e, em alguns rápidos toques, mandei uma mensagem para Blayne: "Foi mal, cara, não vou conseguir ir."
Guardei o telefone e, dessa vez, olhei diretamente para ela.
— Hoje é a nossa noite — disse, minha voz suave, mas firme. Sorah ergueu os olhos para mim, e o que vi neles me deixou aliviado. A tristeza foi substituída por surpresa, e então por um sorriso, um sorriso tão genuíno que eu soube, naquele momento, que havia feito a escolha certa.
Seu humor mudou tão rapidamente que era quase palpável. A alegria voltou a brilhar em seus olhos, como se um peso tivesse sido tirado de seus ombros.
— Então, você está pronto? — ela perguntou, o entusiasmo voltando com força. — Porque eu estou curiosa pra saber se você vai gostar de onde vou te levar.
E, naquele momento, eu soube que não importava para onde iríamos. O que realmente importava era estar ali com ela.
Sorah dirigia com cuidado, o olhar fixo na estrada enquanto as luzes da cidade se refletiam em seus olhos castanhos. Ela pediu para que eu colocasse uma música, algo que nos acompanhasse durante o trajeto. Sem pensar muito, selecionei uma das minhas playlists de rock, e, para minha surpresa, Sorah começou a cantar junto, sabendo a maioria das letras.
— Tem certeza que não quer comemorar com seus amigos? — Ela perguntou de novo, a voz suave, mas com um leve peso, talvez uma preocupação escondida.
Eu olhei para ela de relance, vendo o brilho da dúvida em seus olhos, mas neguei com um sorriso.
— Primeiro: vou comemorar com você essa minha conquista — respondi, colocando minha mão sobre a dela que estava firme na embreagem, sentindo o calor suave da sua pele — E segundo: eu comemoro com eles em outra hora. Eles vão entender.
Sorah sorriu, um daqueles sorrisos que iluminam o rosto inteiro, os olhos relaxando um pouco como se um peso tivesse sido aliviado.
— Chegamos. — Ela disse, enquanto o carro parava suavemente em frente ao lar de idosos.
Olhei para o prédio, as janelas altas, o letreiro discreto, e arqueei uma sobrancelha.
— Vamos atazanar os velhinhos agora? — Perguntei em um tom de brincadeira, tentando quebrar o silêncio que havia se instalado.
Ela riu, uma risada leve, mas sincera, e revirou os olhos.
— Não... Vem comigo, você vai entender. — Sorah respondeu enquanto soltava o cinto e saía do carro. Eu a segui, curioso.
A recepcionista na entrada sorriu de imediato quando Sorah se apresentou. Parecia que já a conhecia, entregando-lhe um crachá e nos deixando passar sem demora. Havia algo familiar na forma como Sorah segurou minha mão e me guiou pelo corredor. As paredes estavam cheias de quadros, pinturas de paisagens, mas nenhum nome de artista.
Atravessamos o corredor até uma sala grande. Sorah ligou as luzes, revelando vários cavaletes espalhados, com quadros inacabados. Ela caminhou até o centro da sala, os braços abertos como se estivesse me apresentando seu mundo.
— Você me mostrou seu lugar favorito — disse ela, com um brilho de emoção nos olhos — Nada mais justo que eu mostre o meu.
Eu pisquei, absorvendo o que ela havia acabado de dizer. Os quadros ao nosso redor... Eram dela. Sorah, a artista misteriosa.
— Você faz tudo isso? — Perguntei, surpreso, sentindo uma onda de admiração subir pelo meu peito.
Ela assentiu, os olhos fixos em mim, como se estivesse esperando meu julgamento. Me aproximei de um dos quadros, e a familiaridade das figuras me atingiu em cheio. Eram três pessoas: eu, seu irmão, e Drake. Nossa primeira apresentação no colégio.
Lembro de como as garotas fizeram camisetas da nossa banda e distribuíram para os alunos. A lembrança me fez sorrir, mas a precisão com que Sorah havia capturado aquele momento... Isso me deixou sem palavras. Ela havia pintado mais que apenas nossas figuras; ela havia capturado a essência da nossa amizade, a eletricidade daquele momento.
— Nunca tive coragem de entregar isso para vocês... — A voz de Sorah estava baixa agora, quase um sussurro.
— Por quê não? Isso está incrível, anjo. — Eu disse, segurando o quadro com cuidado, quase com reverência.
Ela desviou o olhar, um sorriso tímido se formando em seus lábios, como se nunca tivesse sido elogiada assim antes.
— Meu irmão não sabe que eu pinto — ela confessou, a voz carregada de incerteza. — Ele sabe que eu tenho um estúdio nos fundos do quintal, mas nunca se interessou em saber o que eu fazia. E Drake... Bem, nós não somos tão próximos assim, não ao ponto de eu entregar um quadro para ele.
— E eu? — Perguntei, um leve sorriso de curiosidade.
Sorah mordeu o lábio, pensativa, os olhos brilhando com algo que eu não conseguia definir.
— Eu nunca pensei que conseguiria falar com você... — Ela admitiu, quase como se fosse um segredo guardado por muito tempo.
— E por que esconder tudo isso aqui? — Perguntei, tentando entender sua motivação.
Ela deu um passo à frente, me guiando até o fundo da sala, onde havia vários retratos de rostos envelhecidos, alguns sorrindo, outros com expressões sérias, mas cada um transbordava vida.
Sorah observava os quadros na parede com um olhar distante, quase melancólico, como se cada pincelada guardasse um pedaço de alma. Seu olhar vagava pelas pinturas, mas sua mente parecia viajar por lembranças que as palavras não alcançavam.
— Para eles, não são apenas tinta no tecido, são memórias — disse ela, a voz suave, mas carregada de uma sabedoria triste. — Do que eles foram, do que são... e do que nunca puderam ser.
A forma como ela falava, com tanto respeito e carinho por aquelas pessoas, me fez entender o quanto isso significava para ela. Havia uma profundidade nas suas palavras que eu ainda tentava alcançar. Sorah se virou para mim, os olhos levemente úmidos, mas com um sorriso pequeno e sereno, quase resignado.
— Para mim, é muito mais gratificante ser lembrada pelas memórias que consigo devolver a eles através da minha arte... do que ser apenas mais uma artista no mundo. — Ela terminou a frase com um suspiro, e eu senti o peso que carregava.
— Não só mais uma artista com sua arte. — Completei, captando o que ela estava tentando dizer. — Então, por que não me conta as histórias que estão guardadas aqui? Temos o resto do piquenique no carro, e pelo que vejo, cada quadro tem uma história que deve ser fascinante.
Sorah sorriu de novo, dessa vez com mais calor. Fomos buscar a cesta no carro, e assim que voltamos, ela me mostrou cada quadro, cada pincelada contando histórias que iam além da superfície das cores. Era impossível não me perder em admiração por ela. Cada vez que ela falava sobre uma paisagem, um rosto, um momento capturado na tela, eu percebia o quão incrível ela era.
Segurei um dos quadros, mais pesado que os outros, talvez pelo conteúdo emocional que carregava. A imagem retratava uma família: um homem alto, de cabelos loiro-escuros, olhos azuis e traços bem definidos, como se fosse esculpido pela precisão britânica. Ao seu lado, uma mulher de sorriso largo, cabelos cacheados e olhos verdes escuro, sua pele bronzeada pelo sol irradiava calor. No meio, uma adolescente, o perfeito equilíbrio entre os dois. Os olhos azuis do pai e o cabelo escuro da mãe, ela era a combinação exata.
— Esse é Nadilene, Moretti e a filha deles, quando tinha a idade da Serena. — Sorah disse, como se lesse meus pensamentos.
A peça final do quebra-cabeça se encaixou. Era a mãe de Serena, Rose. Eu sabia pouco sobre a história antes de conhecer os Franklin, mas sabia que Serena havia perdido a mãe muito jovem. E seu pai... bem, ele nunca apareceu no enterro.
Serena sempre evitou falar sobre o que aconteceu, como se cada palavra pudesse reabrir uma ferida que jamais cicatrizou. O silêncio que pairava sobre esse assunto era quase ensurdecedor, como uma barreira invisível que ela levantou para se proteger da dor. Mesmo anos depois, era evidente que ela ainda carregava o peso dessa perda, incapaz de deixá-la para trás. Quando entramos no ensino médio, Nadilene, sua avó, ainda estava mergulhada no luto pela filha que havia perdido tão cedo. Era uma tristeza que parecia eterna, até que o destino golpeou novamente. O marido de Nadilene, Moretti, teve um ataque cardíaco e morreu no mesmo dia. Foi como se o mundo de Serena desmoronasse mais uma vez, e a sensação de impotência tomou conta de todos nós. A cada perda, ela parecia se afundar ainda mais em uma tristeza silenciosa, incapaz de pedir ajuda, mesmo quando todos ao seu redor desejavam estender a mão.
— Nas duas vezes que fui ao enterro dos Franklin, Serena não chorou. — Sorah disse, a voz quase num sussurro, mas carregada de uma tristeza profunda. — Ela reconfortou todos. Quando sua avó estava desolada, Serena assumiu as responsabilidades da família sozinha.
Eu sabia o quanto aquele peso a esmagava. O escape de Serena para as drogas foi algo que ninguém viu chegando, mas logo todos nós percebemos. A primeira overdose dela foi o choque que nos distanciou. Estávamos afastados, graças à briga entre ela e Harper, uma briga cuja razão Serena nunca revelou, enquanto Harper espalhava suas versões.
Sorah respirou fundo, os olhos se fixando em um dos quadros mais ao fundo. As lágrimas ameaçavam cair novamente, mas ela as segurou, apenas o suficiente para continuar.
— Nadilene não sabe quanto tempo ainda tem — dessa vez, sua voz quebrou, revelando uma vulnerabilidade que ela raramente mostrava. — E me pediu para pintar algo que mostre à Serena que eles sempre vão estar com ela.
Eu senti um nó na garganta enquanto a observava abaixar a cabeça, lutando contra as lágrimas que inevitavelmente escorreram pelo rosto. Rapidamente, Sorah as limpou com a mão, como se não quisesse que eu visse.
— Ela acha que Serena não vai aguentar mais uma perda. Quando Nadilene se for... ela acredita que Serena perderá qualquer motivo para continuar.
Abracei Sorah naquele momento, sem dizer uma palavra. Eu podia sentir o medo dela, o peso de ver sua amiga se esvaindo lentamente, sem poder fazer nada para mudar isso.
— E sabe o que é mais irônico? — Ela sussurrou, a voz entrecortada. — Em todas as três vezes que alguém da família Franklin morreu, foi Drake quem a reconfortou...
— Três vezes? Eu pensei que só o avô e a mãe dela haviam morrido. — Sorah balançou a cabeça.
— Havia outra pessoa, antes de sua mãe se suicidar e seu pai desaparecer. Dizem que, antes dessa morte, eles eram uma família feliz. Mas quando essa pessoa partiu, foi como se tudo desmoronasse.
Me aproximei mais, sentindo o peso do que ela dizia. O mistério ao redor de Serena era denso, impenetrável, e cada pedaço que eu descobria só fazia a tristeza crescer.
— Pensei que ela odiasse o Drake e o Blayne.
Sorah olhou para mim, os olhos cansados, mas ainda cheios de preocupação.
— Ela odeia as atitudes infantis do Blayne. Ela acha que ele não valoriza a sorte que tem. — Sorah olhou para o quadro de novo, o olhar distante. — E... ela não odeia o Drake. Ela odeia tudo o que faz com que ela sinta algo próximo do amor.
— Por que isso? — Perguntei, a voz baixa.
— Porque quando você perde tantas pessoas que ama, começa a perceber que amar é uma escolha. E, para ela, não há mais esperança em amar alguém, sabendo que, inevitavelmente, essa pessoa vai embora. — Sorah respondeu com uma certeza triste.
— Por que ela acha que ele vai embora?
— Porque, de uma forma ou de outra, todos que ela amou se foram.
Eu fiquei em silêncio, absorvendo aquelas palavras. Eu conhecia Drake, e sabia que ele gostava de Serena, talvez até mais do que gostava de admitir.
Sorah se sentou num banco em frente a um cavalete, pegando seu avental.
— Quer saber como fazer Serena confiar nele? Ações, não palavras. Palavras são fáceis. Ações... são o que fazem a diferença.
Eu entendia o que ela queria dizer. Sabia que, por trás de tudo, Sorah só queria proteger Serena de mais sofrimento.
— Agora, senta ali. — Sorah disse com um leve sorriso, tentando aliviar o peso do momento. — Vou fazer uma pintura sua.
— Serei sua fonte de inspiração? — Brinquei, tentando seguir o tom mais leve.
— Sempre foi. — Ela respondeu com um sorriso gentil, cheio de algo que eu não conseguia decifrar.
Sentei-me em silêncio, ajustando a postura na cadeira velha, mas não conseguia encontrar uma posição que me distraísse da intensidade do momento. Havia algo quase sagrado na forma como Sorah se entregava à pintura, como se cada pincelada fosse um gesto de cura. Ela pintava com uma precisão que não buscava a perfeição, mas sim a verdade escondida nas cores que escolhia.
Eu gostava de observá-la assim, perdida em seu próprio universo. Era como ver o lado mais íntimo dela, o que ela nunca mostrava para ninguém – nem para o irmão, nem para os amigos. A paixão em seus olhos, o jeito como ela mordia o lábio quando algo não saía como queria, me faziam admirá-la ainda mais. Eu não queria interromper, só queria estar ali, partilhando aquele instante que parecia muito maior do que qualquer palavra pudesse descrever.
Quando Sorah terminou a pintura, o horizonte já começava a se tingir de um azul suave, anunciando o amanhecer. As horas haviam passado como um borrão, e eu nem percebi o tempo voar enquanto a observava, concentrado na forma como ela cuidava de cada detalhe, cada traço, com uma delicadeza quase hipnotizante. Antes de começar, ela tinha me mostrado o rascunho, os olhos brilhando em expectativa, perguntando se eu aprovaria.
— Está pronto — anunciou, erguendo-se lentamente. O avental que antes estava impecável agora estava coberto por manchas de tinta, cada cor uma testemunha do seu trabalho árduo.
Eu me levantei, o coração acelerado pela curiosidade. Mas, no impulso de ver logo a pintura, esbarrei desajeitadamente em algumas latas de tinta. O barulho metálico ecoou pela sala, e antes que eu pudesse reagir, senti o chão me puxar, e em segundos eu estava estatelado, com a roupa toda lambuzada de tinta. O pânico por ter estragado algo de Sorah me atingiu primeiro, mas ao levantar o olhar, encontrei seus olhos já marejados de tanto rir.
— Não acredito! — ela gargalhava, mal conseguindo falar, o som tão leve e contagiante que me arrancou um sorriso imediato.
Eu estava coberto de tinta, mas a alegria nos olhos dela fazia tudo parecer uma cena de comédia cuidadosamente ensaiada. Comecei a rir também, uma risada desajeitada que logo se transformou em algo incontrolável.
— Não sabia que Sorah Philips era uma pessoa má — provoquei, ainda rindo entre uma tentativa e outra de me levantar. Ela se aproximou, estendendo a mão, os lábios curvados em um sorriso travesso.
— E eu não sabia que o grande Luciene Petit era tão desastrado — disse ela, o riso ainda dançando em sua voz. Aceitei sua ajuda, mas, em vez de levantar suavemente, puxei-a de surpresa. O grito de susto que ela deu foi curto, mas logo abafado pelo som dela caindo ao meu lado, direto em uma poça de tinta.
— Ôpa! Parece que você também escorregou — murmurei com um sorriso de canto, apreciando o sarcasmo da situação.
Sorah me encarou, os olhos semicerrados em desafio.
— Tem algo sujo aqui — apontou para meu rosto, com uma expressão tão inocente que quase me convenceu. Quando levantei a mão para me limpar, senti a frieza da tinta ser espalhada pelas suas mãos ágeis, tingindo minha bochecha de azul. Ela me olhou com aquele ar zombeteiro, tão divertida que eu não pude evitar revidar.
— Ah, é assim? — Disse, mergulhando a mão em uma poça de tinta próxima, passando os dedos coloridos no rosto dela, deixando uma trilha de tinta vermelha em sua pele clara.
Ela arfou, surpresa, e por um segundo pensei que o momento tinha acabado ali. Mas, em um piscar de olhos, ela riu de novo, e de repente estávamos atirando tinta um no outro como duas crianças em um jogo sem regras. As cores voavam pela sala, se misturando, nos envolvendo em um caos colorido e feliz. O ambiente que antes era silencioso, agora estava cheio de gargalhadas, barulho de latas caindo e pinceladas desajeitadas.
Quando paramos, ofegantes e completamente sujos, o riso ainda ecoava em nossos ouvidos. Olhei para Sorah, seu rosto coberto de tinta, os olhos brilhando com uma alegria que eu nunca tinha visto antes.
— Acho que sua sala nunca mais vai ser a mesma — comentei, tentando conter o riso enquanto observava o estrago que havíamos feito.
— Talvez, mas você ficou lindo de azul — respondeu ela, sorrindo daquele jeito que fazia meu coração disparar.
E ali, entre risos e manchas de tinta, percebi o quanto eu adorava cada parte desse caos.
Estávamos prontos para ir embora, apesar da bagunça que criamos. Tentamos arrumar um pouco, mas a sala ainda era um caos de cores espalhadas. Sorah e eu nos entreolhamos com um riso contido, sabíamos que nosso esforço para limpar tinha sido inútil.
— Bom dia, querida — uma voz suave interrompeu o silêncio. Virei-me e vi uma senhora de cabelos curtos e cacheados. Ela olhou ao redor, com um sorriso divertido, observando a sala destruída e, depois, nossos rostos ainda manchados de tinta. — Vocês parecem que se divertiram bastante.
— Eu vou me arrumar e depois limpo tudo, Senhora Park — Sorah se apressou a dizer, a voz levemente embaraçada, enquanto tentava tirar o avental sujo.
Mas a mais velha apenas balançou a cabeça com um sorriso doce e fez um gesto para que Sorah parasse de falar.
— Querida, vocês são jovens. É natural que façam coisas de jovens — ela disse com um tom cheio de carinho, se aproximando e tocando o ombro de Sorah com gentileza. — Agora, vão se limpar. Deixem que eu cuido do resto — disse, tirando o avental de Sorah e me lançando uma piscadela cúmplice.
Sorri em gratidão, sentindo o alívio de não ter que lidar com o estrago, e seguimos para o carro. O sol já começava a esquentar o horizonte, mas Sorah parecia estar se afundando no cansaço. Assim que entramos no carro, seus olhos começaram a fechar, e ela adormeceu antes mesmo de eu dar a partida. O silêncio a envolveu, e seu rosto relaxado contrastava com a energia que ela demonstrara minutos atrás. Eu não quis acordá-la. Era raro vê-la tão tranquila, sem as preocupações que sempre a rondavam.
Quando chegamos ao apartamento, olhei para ela, ainda dormindo profundamente, e não tive coragem de chamá-la. Ao invés disso, desliguei o carro e cuidadosamente a peguei no colo.
A porta do apartamento foi aberta por Serena, que me olhou de cima a baixo, claramente surpresa com a cena. Ela usava uma camiseta de uma banda de rock, larga, e um short despojado, mas seus olhos estavam atentos, se movendo entre mim e Sorah.
— Vou querer saber o motivo? — perguntou com uma sobrancelha arqueada, cruzando os braços enquanto me analisava.
Eu apenas balancei a cabeça em negação, pedindo silêncio com um gesto. Não queria acordar Sorah agora que ela finalmente estava descansando.
Serena soltou um suspiro, dando de ombros, mas com um olhar que dizia que não deixaria isso passar em branco.
— Leva ela lá para o quarto de hóspedes. E se você sair antes dela acordar... — Ela fez uma pausa dramática, me encarando com olhos sérios. — Eu arrebento teu carro.
Ri baixinho, tentando conter o riso ao ver sua seriedade misturada com uma preocupação óbvia por Sorah. Passei por ela, caminhando até o quarto com Sorah ainda adormecida em meus braços, sua respiração leve contra meu peito. Serena seguiu para a cozinha, e eu me concentrei em deitar Sorah suavemente na cama, sem fazer barulho.
Assim que a ajeitei, fiquei por um instante observando-a. Seus cabelos loiros espalhados pelo travesseiro, as manchas de tinta ainda no rosto, mas algo nela parecia completamente em paz. Era uma visão que eu poderia ficar apreciando por horas, mas sabia que Serena não hesitaria em cumprir a ameaça.
Saí do quarto em silêncio, fechando a porta atrás de mim com cuidado, mas antes que pudesse ir embora, Serena me esperava no corredor, os braços cruzados novamente, com um sorriso travesso nos lábios.
— Lembre-se, Petit. Não faça nenhuma besteira — disse ela, e embora o tom fosse de provocação, havia algo de protetor na forma como ela falava.
— Prometo que não — respondi, lançando-lhe um olhar de cumplicidade antes de sair, ainda com a lembrança de Sorah, tranquila e adormecida, gravada na minha mente.
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