05
Sei que é falta de educação demorar muito tempo embaixo do chuveiro na casa dos outros. Mas a água quente me traz uma sensação tão boa que nem vejo o tempo passar. Vejo as pontas dos meus dedos enrugadas e chego à conclusão de que já passei dos limites.
Desligo o chuveiro e puxo a toalha para me secar. Na pia do banheiro tem uma legging preta, uma camiseta branca e um par de lingeries ainda lacrados na embalagem. Visto tudo, as roupas ficam um pouco cumpridas, mas não tem problema. Pelo menos me livrei do vestido. Penteio os cabelos com as mãos mesmo, no meu rosto ainda há resquícios do lápis de olho e do rímel, mas não me importo.
Recolho as minhas coisas, jogo dentro de um saco que estava junto as roupas e saio do quarto.
Encontro Rafael na cozinha, junto com Tonta. Um mexe no celular e o outro dorme. Em cima do balcão têm duas caixas de pizza e uma Coca-Cola.
— Desculpa, acabei demorando demais — peço, envergonhada.
Eu faço o cara correr uma maratona comigo, ele me dá abrigo, eu choro feito uma desequilibrada e ainda esvazio sua caixa d'água. Esse vai para o céu.
— Não tem problema, você precisava de um tempo. — Ele levanta, pega a sacola da minha mão e puxa uma cadeira para mim. — Deixa que eu vou por isso em um lugar, amanhã você pega.
Assinto e me sento na cadeira oferecida. O cheiro de pizza invade as minhas narinas e logo o meu estômago ronca.
Rafael leva a sacola para algum lugar e volta para o meu lado.
— Como eu não sabia do que você gostava, pedi uma de frango com catupiry e margherita e outra portuguesa com calabresa.
— Eu amo todas.
— Então vamos atacar. Costumo dizer que pizza com Coca-Cola aplaca qualquer tristeza.
— Concordo.
Pego uma fatia de frango com catupiry e Rafael uma de calabresa.
Quando coloco um pedaço na boca percebo o quanto estava faminta. Eu estava só com o café da manhã e o dia foi bem desgastante para me preocupar com alimentação, até agora.
— Então, o que fez nesse tempo fora? — pergunto para puxar assunto.
— Eu fui morar com o Maurício em Praga, terminei o ensino médio e descobri a minha paixão por fotografia, então decidi me especializar na área. Me formei na FAMU de Praga, fiz algumas especializações, pós e mestrado por lá mesmo.
Caramba, ele deve ter o quê, uns vinte e sete anos e já tem toda essa bagagem.
— Caramba, que máximo. E o que você gosta de fotografar?
Rafa serve mais uma fatia de pizza para cada e eu encho novamente os nossos copos com Coca.
— Tudo — responde animado. — Não tenho algo específico, eu só gosto que seja natural. As minhas fotos preferidas são aquelas que capturam coisas que as pessoas normalmente não veem. Um exemplo é em um casamento, aquele olhar que um dos noivos dá quando o outro não está olhando, aquele que todos estão ocupados demais para apreciar.
Sorrio fracamente e uma fisgada me atinge no peito. Será que eu recebi esse olhar do João? Claro que não, se ele me amasse a essa hora eu estaria na minha festa e não comendo pizza com um "quase desconhecido".
— Entendo — respondo com um suspiro, não queria parecer tão desanimada, mas foi mais forte que eu.
Rafael limpa as mãos no guardanapo e puxa a minha mão que brincava com o copo.
— Desculpa — pede com sinceridade —, eu não quis te deixar assim. É que fotografia é a minha paixão e acabo me empolgando.
— Tudo bem, Rafael. Você tem sido maravilhoso, eu que estou emotiva — respondo.
— O que acha de uma panela de brigadeiro para compensar? — ele pergunta com uma piscada.
Os meus olhos brilham com a menção do brigadeiro.
— Se alguém precisa compensar alguma coisa aqui sou eu — rebato —, mas aceito uma panela de brigadeiro. — Sorrio.
— Que bom, porque eu preparei enquanto você tomava banho.
— Acho que nem a minha mãe conseguiria me animar tanto em um dia como hoje — confesso.
Ele apenas sorri e voltamos a comer. Tonta aparece ao meu lado e joga as patas no meu colo. Acho que alguém quer pizza.
— Ele come outras coisas além de ração? — pergunto.
— Tudo o que tiver pela frente, meus sapatos que o digam — resmunga.
— Posso dar um pedaço para ele?
— Calabresa, é a preferida dele.
Pego um pedaço de pizza e estendo para Tonta, ele abocanha e se deita no chão para comer.
— A hora que o Tonta estava em cima de mim e você o chamou, por um momento pensei que a tonta fosse eu — confesso e Rafael começa gargalhar.
— Eu jamais te chamaria de tonta — diz.
— Sei lá, eu estava parecendo mesmo uma tonta naquela hora.
— Na verdade, você estava linda correndo — Rafael sussurra e um sorriso se forma no meu rosto.
Então, quando menos espero, ouço um clique. Ele tirou uma câmera não sei de onde e está com ela apontada para mim.
Rapidamente viro o rosto, envergonhada.
— São essas as minhas favoritas — comenta, referindo-se as fotos.
— Eu estou horrível.
— Por quê? Por não estar cheia de maquiagem, com a roupa mais bonita ou com o cabelo impecável. Nada disso importa, a beleza maior vem de dentro, vem do brilho que cada um carrega.
Rafael tem toda razão, beleza é muito mais que roupa, maquiagem e cabelo. Bonito é ser você mesmo, sem se importar com padrões.
— Você tem razão — concordo, mesmo que neste momento eu me sinta horrível, não pela aparência física, mas pela dor que estou sentindo.
Terminamos de comer e ajudo Rafael a arrumar tudo, depois dividimos uma panela de brigadeiro enquanto conversamos sobre nossas vidas.
O papo surge tão naturalmente que é como se já nos conhecêssemos há anos.
"Vocês se conhecem, Luíza"
Tecnicamente sim, mas Rafael era mais próximo do Leonardo e sendo quatro nos mais velho que eu, vivíamos praticamente em mundos distintos.
— Você quer assistir um filme ou prefere dormir? — Rafael pergunta.
Olho no relógio de parede e já passa da uma da manhã. Eu sei que não vou dormir, mas o coitado precisa descansar. Além disso, preciso pensar um pouco.
Estar aqui com o Rafael criou uma espécie de bolha, deixando de fora a realidade de tudo. Mas amanhã terei que soprar para que ela estoure e eu volte para o mundo real. Um mundo onde eu sou uma ex-noiva cheia de galhos na cabeça.
— Eu prefiro ir dormir. Estou cansada e amanhã o dia será cheio.
— Tem razão, você precisa descansar. Vem, vou te mostrar o quarto de hóspedes.
Subimos as escadas e Rafael me leva ao quarto de frente para o seu. A decoração é bem clean, com exceção de alguns quadros coloridos que dão vida ao quarto.
Entro e viro de frente para a porta, onde Rafael está encostado no batente.
— Obrigada por tudo — digo.
Ele sorri e dá um passo na minha direção.
— Qualquer coisa eu estou no quarto em frente. Não tenha receio em me chamar. E eu tomei a liberdade de avisar a sua família que você está aqui. — Droga, nem me lembrei da minha família. — Agora tenta descansar. Boa noite, Lu.
Ele deposita um beijo na minha testa, como se eu fosse uma criança. É algo terno e carinhoso.
— Boa noite, Rafa — consigo dizer antes dele fechar a porta atrás de si.
Vou até o banheiro, escovo os dentes com uma escova nova que estava no armário e depois vou me deitar. A cama, apesar de confortável, é estranha. Parece grande e vazia.
A noite passa devagar e consigo apenas tirar alguns cochilos. Quando o sol invade as janelas, sinto um misto de vazio e desespero.
Chegou a hora de estourar a bolha e voltar para a realidade.
Enrolo por mais um tempo e quando dá oito horas saio do quarto. O cheiro do café está chegando no corredor e sei que o Rafa já está de pé.
O encontro na cozinha, preparando um belo café da manhã. Quando me vê, ele vem até mim e deposita um beijo na minha testa, igual na noite anterior.
— Bom dia, conseguiu descansar? — ele pergunta.
— Um pouco — minto.
Ele me olha de lado e parece querer dizer algo, mas desiste.
— Você parece animado, hein. Pensei que ainda estava dormindo.
— Eu gosto de acordar cedo. E também fiquei preocupado com você, então levantei e vim passar um café.
— Não precisava, Rafa — digo e reparo que agora somos Rafa e Lu e não mais Rafael e Luíza. — Eu já te aluguei ontem até tarde.
— Precisava sim. E nunca vou reclamar por ficar acordado na companhia de uma mulher linda igual você.
Sorrio sem graça pelo seu elogio.
— Você é incrível, Rafa.
— Não vai achar depois que eu disser que o nosso café da manhã será restodonte de pizza — conta com uma careta.
— Tá brincando? Restodonte de pizza é o meu café da manhã preferido.
Ele ri da minha expressão exagerada e puxa a cadeira para eu sentar.
— Então aprecie o banquete, madame — diz em uma voz engraçada.
Apesar do bom humor do Rafa ser contagiante e restodonte de pizza ser mesmo o meu café da manhã favorito, o meu estômago está fechado e acabo tomando só um café preto.
Ajudo o Rafa arrumar a cozinha quase em silêncio. Ele tenta me animar, mas cada vez que penso que vou ter que enfrentar a realidade um frio se apodera do meu peito.
— Não posso mais adiar, preciso voltar para o mundo real e enfrentar os meus problemas.
— Lu, você sabe que pode ficar mais se você quiser.
— Eu sei, mas não posso. — Respiro fundo e me viro para o Rafa.
Depois de arrumar a cozinha sentamos na área dos fundos para tomar um sol e eu me acalmar um pouco.
— Posso usar o seu telefone para pedir um táxi?
— Não. — Espanto-me com a sua negativa. — Eu vou te levar, só me avisar quando estiver pronta.
Não discuto, a verdade é que quero aproveitar cada minuto que ainda tenho com ele. Rafael foi um verdadeiro amigo nas últimas horas e me sinto bem ao seu lado, como se tudo fosse dar certo.
— Acho que estou pronta.
— Vou pegar a sua sacola e as chaves do carro.
***
Rafael estaciona em frente à casa dos meus pais e mantém os dedos no volante.
— Tem certeza que não quer dar mais um tempo, eu posso dar umas voltas — ele pergunta.
Solto o meu cinto de segurança e viro meu corpo para o seu lado.
— Enrolar não vai amenizar nada, melhor encarar logo de peito aberto e ver no que vai dar. Obrigada por tudo, Rafa, você salvou o meu dia.
— Não fiz nada demais. — Dá de ombros.
Levo minha mão ao seu rosto e faço um afago na sua bochecha.
— Fez sim, e eu serei eternamente grata. Mas agora preciso encarar a realidade. — Respiro fundo. — Tchau, Rafa.
Desço a minha mão, mas ele a segura e deposita um beijo na palma.
— Se precisar de alguma coisa, pode me chamar.
Assinto com a cabeça e desço do carro. Rafa espera até que eu esteja na porta de casa para dar partida e sair.
Enquanto observo o seu carro sumir na rua, um sentimento estranho me toma. Algo como saudade.
Acho que pirei de vez.
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