PARTE UM
Trabalhar no choradouro é uma merda, mas rende uma boa grana. O cliente entra, senta na sua frente e chora. Desabafa sobre o dia, a vida horrível, o chefe escroto e tudo mais. Eu abraço o sujeito, ouço sem julgar, pego na mão e espero o tempo passar. Nem tenho relógio na parede, para não sofrer a tentação de olhar para ele o tempo todo. Se o cliente repara vai tudo para o saco. E o cliente sempre repara.
O rapaz que não consegue arrumar uma namorada se despede e sai da sala. Abro a gaveta do armário ao lado da porta e checo meu smartphone. O valor de créditos pisca na tela e arredonda para trinta e cinco mil. Abro um sorriso, o único do dia. Fim do expediente.
Assim que piso para fora da sala, ouço o burbúrio da conversa dos outros funcionários do choradouro. Consigo avistá-los conversando em rodinha no final do corredor. Enquanto coloco o meu dedão no sensor para travar a porta, um dos meus colegas de trabalho estica o pescoço e olha na minha direção. Eu sei exatamente que conversa nós vamos ter, a mesma que já tivemos mil vezes.
— Erick, seu grandão! — O rapaz sorri. — Nós estamos indo para o bar agora, vem com a gente!
— Não, Gabriel. Obrigado! — Forço um sorriso de volta. — Estou economizando.
— Ainda? — Gabriel faz uma cara exagerada de surpresa e se volta para os seus amigos de rodinha — Esse cara está guardando tanta grana que um dia vai comprar o choradouro e mandar em todos nós!
Todos riem.
— Não se preocupe com isso — respondo enquanto me afasto. — Não se preocupe com isso...
Abro a porta para a rua, sou invadido pelo barulho dos carros e naves viajando acima da velocidade permitida, pelas luzes coloridas do neon presente nas propagandas, prédios e roupas. Sou esbarrado por humanos e andróides que caminham pela calçada sem olhar para frente. E sou molhado pela chuva, é claro. Em 2077, é difícil encontrar um lugar no mundo onde não esteja chovendo.
Faço o mesmo caminho a pé todos os dias. Poderia pegar um coletivo, mas prefiro poupar os créditos. Já fiz o mesmo trajeto tantas vezes que nem preciso pensar mais enquanto ando, os pés encontram o caminho automaticamente.
Tudo no meu dia a dia é rotineiro e eu gosto disso. Acordar, andar, trabalhar, checar os créditos do dia, andar, chegar em casa, tomar banho, deitar na cama e encarar o meu pôster da Bahia até cair no sono.
No meio de um dos únicos becos relativamente escuros da cidade, ouço um barulho estranho. Paro e olho em volta. Deve ser só um gato andróide pulando entre as lixeiras. Volto a andar. Ouço o barulho novamente, olho em volta.
Finalmente enxergo a origem do som.
Um andróide.
A metade de um andróide.
Modelo feminino, de cabelo curto, encharcada pela chuva e parcialmente escondida pela sombra da lata de lixo. Seus olhos são um pouquinho maiores do que olhos humanos, fora isso, era tão realista quanto qualquer outro robô. Sua cintura acabava em um punhado de fios expostos.
— Por favor, me ajuda — ela suplicou. — Estou jogada aqui há dois dias e estou sem pernas. Não consigo ir para lugar nenhum.
Normalmente, não converso com gente de lata, mas algo me fez agir diferente.
— Onde está o seu dono?
Lembro das notícias que li sobre gangues que usam máquinas assim como isca para praticar assaltos. Talvez tenha sido uma péssima ideia parar em um beco escuro para conversar com uma. Fico atento a minha visão periférica para correr a qualquer sinal de perigo.
— Ele me largou aqui — ela responde. — Disse que eu não sou mais útil. Ele está enganado, me leva para casa que eu posso ser útil.
Eu não gosto de máquinas em casa. Não fazem nada que eu não faria sozinho e a manutenção é cara demais.
— O que aconteceu com as suas pernas?
— O meu dono levou embora para vender — ela responde. — Eram pernas novinhas, menos de dois anos.
— Bom... Amanhã é terça, então deve passar o caminhão de coleta. É só esperar um pouco.
— Eu não quero ser levada pelo caminhão! — Ela ergue o tom de voz e contrai as sobrancelhas simulando a expressão de uma pessoa desesperada. — Eles amassam nossas peças e nos transformam em outras coisas.
— E daí?
Ela parece envergonhada em responder.
— E daí que eu não quero isso.
— Agora vocês também querem coisas?
Deixo escapar uma risada seca e volto a caminhar. As pessoas gastam dinheiro com coisas estúpidas, como andróides que criam problemas ao invés de selecionar.
— Não! Não me deixa aqui! — Ela grita. — Me leva com você! Eu não vou fazer barulho! Eu prometo! Eu posso ser útil!
Consigo ouvir os seus gritos, mesmo depois de virar a esquina. Não acredito que parei para conversar com um pedaço de plástico que não consegue nem andar já que o antigo dono...
...vendeu as peças?
Eu poderia vender o resto? Quanto valeria cada braço? Os olhos parecem ter algum valor, são verdes. Mesmo que não fosse muito, ainda seria alguma coisa.
***
— Você não vai se arrepender, senhor — Ela repete pela quarta vez enquanto a carrego no ombro até minha casa. — Muito obrigada por isso. Eu prometo que você não terá problemas.
— Pode parar de agradecer.
Entro no meu apartamento, as luzes se acendem automaticamente. Puxo uma cadeira e coloco a andróide nela.
— Não faça barulho!
Vou ao banheiro. Tomo banho, me troco, escovo os dentes e sigo minha rotina noturna com tanto rigor que tomo um susto quando abro a porta e dou de cara com ela na cadeira, no meio do cômodo único do meu apartamento. Esqueci da sua presença por um segundo.
— Meu nome é Sofia, aliás — ela diz. — E o seu?
— Erick — respondo.
Vou até a cama e deito encarando o meu poster, pronto para pegar no sono.
— Você não tem móveis — Sofia vira a cabeça para todos os lados, escaneando os cantos do meu lar.
— Tenho uma cama, uma mesa e duas cadeiras — digo. — É tudo que preciso.
— Mas onde você come?
Respiro fundo. Talvez, trazê-la comigo tenha sido uma péssima ideia.
— Recebo comida no trabalho.
— E à noite você não come?
— Como na rua.
— Entendi... E você não tem esposa?
— Você prometeu que ficaria quieta.
— Sim, claro. Desculpe, desculpe.
Ficamos em silêncio por mais ou menos dez minutos. Sofia não aguenta ficar sem falar.
— Por que você fica encarando esse poster?
Péssima ideia. Trazê-la comigo foi uma péssima ideia.
— É a Bahia — digo a contragosto. — Você deveria saber o que é a Bahia.
— Sim, eu sei — ela disse. — Mas, não me leve a mal, você parece gostar demais dessa foto.
Sento na cama. Olho para Sofia.
— A Bahia é um dos únicos lugares do país onde ainda tem sol. Não chove todos os dias, temos luz natural — digo. — Isso pode não fazer diferença para você, mas o sol faz bem aos humanos. Nós gostamos.
Ela balança a cabeça, pensativa.
— Então você vai morar lá?
— Sim. Estou juntando crédito há anos para finalmente não precisar mais trabalhar e pagar a minha passagem para lá. Vou me aposentar, pegar sol e finalmente ter uma existência minimamente digna. Falta pouco!
— Entendi. Ouvi dizer que a Bahia não tem muitos postos de manutenção de andróides, mas acho que consigo me adaptar.
Ela pensa que vai comigo. Isso me lembra que preciso me livrar do problema logo. Levanto da cama, pego o meu celular e começo a tirar fotos da Sofia, de todos os ângulos que eu consigo.
— O que você está fazendo?
— Algumas fotos para te mostrar para meus amigos.
Sofia sorri para a câmera.
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