Acho que não se pode dizer que sou uma mulher culta ou que entende de literatura clássica. Nem mesmo posso dizer que sei escrever bem.

Essa seria minha irmã, na verdade. Se uma de nós quisesse seguir a carreira de escritora, ela seria bem-sucedida, o que não posso dizer de mim mesma. Porém, mesmo que eu não seja tão boa com literatura quanto ela, tenho meus momentos.

Há alguns anos encontrei uma citação de uma poetisa que usava o pseudônimo Cora Coralina. Não sei muito sobre ela, apenas que deve ter sido a escritora mais velha a publicar seu primeiro livro. Houve um pensamento dela que me chamou atenção, mas que eu não entendia bem, até agora.

Dizia assim: “Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir”.

Por muito tempo me deixei ser soterrada pelas decisões que tomei no passado. Deixei a culpa me corroer por dentro, enquanto as pessoas ao meu redor só viam uma adolescente imatura que rapidamente se recuperou das situações que abalaram sua família.

Eles estavam errados por me verem assim, mas eu também estava errada por esconder o que realmente sentia. Foi necessário passar pelo inferno, enfrentar meus demônios e tomar coragem para me abrir sobre tudo isso com as pessoas que amo para poder, finalmente, entender que todas as coisas pelas quais passei foram frutos de minhas decisões e que eu era responsável pela minha própria felicidade.

Só quando entendi que tenho o poder de decidir o que vai ou não me afetar, é que pude deixar para trás quem eu fui, os traumas que me definiam, e me tornar uma versão melhor de mim mesma.

Por isso decidi ser uma pessoa melhor e perdoar a garota imprudente que errou das maneiras mais estúpidas. Pude me olhar no espelho sem o desprezo que sentia por mim mesma, pude aprender a amar quem sou agora.

Durante seis anos eu escrevi, página após página de autorrecriminação, raiva, tristeza e todo tipo de sentimentos negativos. Escrevi para extravasar minha dor, para colocar para fora o que ninguém mais poderia escutar sem me julgar. E deu certo.

Você serviu ao seu propósito, Diário.

Foi o meu terapeuta mudo, onde eu descarreguei minhas frustrações, memórias e tudo de ruim que havia em mim. Por isso agradeço o dia em que minha irmã me aconselhou a escrever.

Sim, você serviu ao seu propósito, mas agora eu não preciso mais de você.

Decidi seguir em frente, ser diferente, melhor. E decidi que mereço amar e ser amada como qualquer outra pessoa.

Isso é um adeus.

Você irá se juntar a todos os outros diários em um lugar onde nunca ninguém poderá encontrar e usar minhas palavras contra mim, pois aprendi que não podemos mudar o passado, por isso devemos seguir em frente e esquecer tudo que não nos fez pessoas melhores enquanto o tempo passava.

Adeus, meu querido diário. Talvez sentirei sua falta.

Ou talvez não.

Dezembro de 2024, 11pm

Cristal fechou seu último diário e olhou para a grande lata de lixo onde ela havia feito uma fogueira para jogar cada um de seus diários. Suas palavras virariam cinzas, nunca mais seriam lidas e, para ela, isso estava ótimo.

Ela estava empacotando suas coisas para ir embora de Lins, pois agora começaria uma nova fase de sua vida em São Paulo, trabalhando ao lado de Heidi, sua sogra.

Havia se passado quatro meses desde aquela noite de terror e carnificina. Enquanto observava os diários queimando, lembrava-se com muita nitidez dos acontecimentos que encerraram aquele encontro mortal com Kevyn.

Ela estava pressionando as feridas do Erick, tentando impedi-lo de morrer quando o tiroteio do lado de fora cessou e Elise derrubou a mulher que o Kevyn chamou de Alessa. Depois disso, apenas viu Kevyn caindo no chão e sufocando até a morte.

Quando ele morreu, Alessa já estava acordada. Ela deu um grito e avançou em Elise com um pedaço de vidro, pretendendo feri-la, mas foi interceptada pela irmã gêmea, que no meio da pancadaria havia acordado sem que ninguém percebesse.

Tudo aconteceu muito rápido. Ao ver sua irmã tentando matar Elise, a mulher que agora Cristal sabia se chamar Alícia Fiorentino pegou a faca que estava caída no chão, próxima a Erick, e a enterrou nas costas de Alessa, perfurando seu coração.

Cristal estava perto o suficiente para ouvir o que Alícia falou antes de sua irmã morrer.

— Me perdoa, Alessa, minha querida irmã. Você tinha razão, eu escolhi a Elise e deixei você, mas se fiz isso foi porque era o certo. Você tem muito sangue nas mãos e eu não posso deixar que tenha o dela também. Chega de mortes, acabou. Para nós duas.

Alícia foi rendida pelos policiais que adentraram a sala, procurando os suspeitos. Tudo que Cristal sabia era que seu cunhado havia invadido a mansão sozinho e derrubado mais de vinte capangas antes que a polícia chegasse. Os dois primeiros tiros que ouviram foram disparados por um homem que tentou matar Julian, os outros foram de um embate entre a polícia e cerca de vinte criminosos que subiram a colina e abriram fogo.

Ao saírem da sala, as imagens eram aterradoras. Foi um massacre, tinha sangue por todos os lados, a casa estava destruída. Cada criminoso que resistiu à rendição e atacou a polícia, foi morto.

Kevyn e Alessa ficaram na sala para que a perícia trabalhasse em seus corpos e reconstituísse os fatos, mesmo tendo o testemunho de quatro sobreviventes. Erick foi levado por paramédicos para o hospital mais próximo e operado às pressas. Sobreviveu por pouco, precisou de transfusão de sangue e ficou em estado crítico durante dias que, para Cristal, foram o inferno na Terra.

Elise, Julian e Cristal também foram para o pronto-socorro tratar de seus ferimentos. Julian e Elise tinham perfurações e hematomas, enquanto Cristal tinha hematomas por todo o corpo e uma laceração em volta do pescoço, onde Kevyn apertou. Nenhum deles precisou de cirurgia, contudo, passaram longas horas fazendo exames para ver se não tinham danos internos.

Alícia Fiorentino foi presa em flagrante pelo assassinato de Alessa Reviello, mas sua sentença foi suavizada pelo testemunho das três vítimas sequestradas de que ela agiu para salvar Elise. A italiana também foi autuada por falsidade ideológica, já que usou documentos falsos junto com sua irmã para se passar por Amber Axel.

O corpo de Kevyn só foi liberado para ser levado de volta ao Brasil depois de uma semana e o casal Schmitz mandou equipar o jato particular da família para que Erick fizesse a viagem com todo o apoio necessário, visto que estava se recuperando de uma cirurgia recente. Obviamente, ele deu seu depoimento completo à polícia romana antes de partir.

Elise, Cristal e Julian, depois de darem seus depoimentos, também voltaram ao Brasil com a família Schmitz, afinal, suas famílias estavam preocupadas desde o dia em que descobriram que o Kevyn havia fugido, e era bem mais fácil os três irem para Lins do que seus pais e irmãos irem para Roma.

Julian foi inocentado pela morte de Kevyn, pois a polícia considerou legítima defesa, mesmo que a perícia revelasse que ele sabia exatamente o que estava fazendo quando o golpeou naquele lugar específico. Foi um golpe perfeito, limpo, não uma tentativa desesperada, mas afinal, Kevyn era um assassino em série que quase matou o próprio irmão, sua família não quis abrir processo, então estava tudo certo.

Ao chegarem no Brasil, as irmãs conheceram seu novo sobrinho: Adrian. O garoto tinha cabelos negros e olhos azulados, que foram clareando com o passar do tempo, até chegarem ao tom verde dos olhos de Aquiles.

Cristal suspirou profundamente ao lembrar da difícil conversa que teve com seus pais ao chegar em Lins. As lágrimas, os pedidos de perdão, a forma como sua mãe se culpou por não ter prestado mais atenção à filha caçula. A todo momento, Elise esteve ao seu lado, segurando sua mão, encorajando-a a falar, pedindo perdão por não ter sido mais aberta com todos na época em que conheceram ao encantador “Ricardo”.

Mas todos tinham que seguir em frente, não dava para mudar o passado, apenas tentar ser melhor no presente.

Elise também estava ao seu lado, assim como sua mãe e Nicole, quando Cristal foi ao médico pegar os resultados dos exames que ela fez para saber o quanto seu corpo havia sido afetado pelo aborto de anos atrás.

Elas choraram juntas quando foi confirmado que Cristal jamais poderia ter filhos biológicos. Seu útero havia sofrido demais com todo o procedimento violento a que foi submetido e com a infecção que quase a matou, agora era estéril e já se passara muito tempo para que qualquer médico pudesse reverter essa situação.

Ela passou semanas inconsolável, sem querer comer ou beber nada, lamentando-se por suas decisões, até que a mulher do pastor da igreja que Aquiles e Rebeca frequentavam foi visitá-la. Ela era uma terapeuta familiar, psicóloga especializada em depressão e outras doenças psicológicas que afetavam o físico das pessoas.

A partir daquele dia, Cristal passou a se consultar regularmente com a terapeuta e aprendeu a se perdoar aos poucos pelas escolhas feitas no passado. Passou três meses cuidando apenas de si mesma, ainda que sentisse uma enorme saudade do Erick.

Cerca de um mês atrás, ela recebeu um e-mail parabenizando-a por agora fazer parte da empresa de Heidi, foi então que decidiu ligar para o Erick e acabar de vez com a tortura que aquela separação longa causava nos dois.

No dia seguinte, ele estava ali, na frente dela, declarando seu amor. É claro que não foi como em um conto de fadas, afinal havia muitas coisas importantes sobre o que conversar, a primeira delas era o fato de que ela não poderia dar filhos biológicos ao herdeiro Schmitz, o que talvez fosse um problema para a família dele.

Erick acariciou seu rosto e disse com ternura que não importava nada do que ela dissesse, ele a amava e queria estar com ela, o resto eles resolveriam depois. Foi assim que ele a pediu em namoro e ela aceitou.

Sua família ficou exultante e a família dele a recebeu de braços abertos, pois “uma mulher que arriscou a própria vida para salvar seu filho, merecia estar com ele”, palavras do poderoso Edgar Schmitz. Heidi, por sua vez, alegou que não haveria maior alegria para ela naquele momento tão difícil do que ter como nora uma mulher  forte como Cristal.

Depois de três meses, o casal Schmitz ainda guardava luto pelo filho perdido. Um luto que duraria para sempre, pois não importava quão mau o Kevyn tenha sido, nem todo o mal que ele tenha causado, sempre seria o filho primogênito que eles carregaram no colo e ensinaram as primeiras coisas. Essa dor nunca seria esquecida pelos pais, cujo único consolo era o filho caçula, que havia se tornado o extremo oposto de seu irmão.

Erick não estava de luto. Sentia-se triste pela tristeza de seus pais e por nunca ter conhecido o amor fraterno que Cristal tinha com seus irmãos, mas no fundo estava aliviado porque o Kevyn nunca mais o atormentaria de novo.

Agora Cristal estava de mudança para São Paulo, assim como Erick também saiu da mansão de seus pais em Campos do Jordão e fixou residência no apartamento onde se desenvolveu entre ele e Cristal aquele sentimento tão intenso que não podia mais ser ignorado.

Quanto a Elise e Julian, Cristal soube tudo que aconteceu antes do sequestro, sua irmã se abriu com ela e as duas se criticaram por serem tão teimosas. Agora o casal estava bem. Voltaram para Roma, onde ambos conseguiram ótimos empregos em museus. Teriam que galgar os muitos degraus necessários até se tornarem curadores, é claro, mas não podiam estar mais felizes. A carreira artística de Julian também estava começando a se consolidar e Elise descobriu uma paixão sem precedentes pelas mitologias antigas, tanto que iria começar um mestrado nessa área.

Finalmente, depois de todos aqueles anos em que a sombra de Kevyn pairou sobre a família Albuquerque, todos estavam com suas vidas bem encaminhadas. Carlos e Eva já tinham se acostumado a morar sozinhos e Aquiles recusou uma proposta de emprego na capital para estar perto de seus pais, cuidando deles e criando sua família naquele lugar um pouco mais quieto que a loucura de São Paulo.

Cristal olhou uma última vez para a casa onde viveu toda a sua vida. Já havia se despedido do apartamento onde morou pelos últimos cinco meses, agora precisava se desapegar do lugar onde cresceu, onde deu seus primeiros passos e falou suas primeiras palavras, mas que também foi o lugar onde fez as coisas mais estúpidas, as piores decisões de sua vida.

Beijou o rosto choroso de sua mãe e abraçou com carinho seu pai. Agora ela era adulta e iria fazer sua própria carreira, deixaria para trás a Cristal inconsequente e mimada que foi. Era a sua vez de recomeçar.

Virou as costas e andou até o Mercedes-Benz estacionado perto da calçada, onde seu namorado a esperava, sorrindo. Todos os seus pertences importantes estavam no porta-malas e no banco traseiro do carro, agora só faltava ela ir embora.

Olhou para trás uma última vez, para seus pais abraçados na frente daquela casa, e sentiu que queria isso. Queria uma relação sólida como a de seus pais, e agora iria se permitir tê-la com o homem lindo que dirigia ao seu lado, levando-a para longe.

Erick sorriu e acariciou seu rosto com delicadeza antes de manter as duas mãos no volante.

— Eu te amo, Cristal.

Ela encarou o belo rosto de perfil do homem que fazia seu coração disparar e sentir calma ao mesmo tempo. Não conseguia encontrar palavras para definir o que sentia por ele. Erick a salvou da escuridão que habitava em seu coração. Quando ela esteve prestes a matar a mulher que ameaçava sua irmã, foi a voz dele que a trouxe de volta, que a fez entender que era ela mesma quem tinha o poder de decidir ser boa ou má. Ele a fez ver que ela podia ser muito mais do que um assassino cruel queria que ela fosse.

Ainda existia escuridão dentro de si, isso não mudaria de um dia para o outro, mas Erick a fazia sentir como se uma luz brilhasse lá no fundo, lentamente extinguindo as trevas que antes a dominavam.

Não podia exprimir em palavras suficientes o que sentia por ele, mas por hora, essas bastavam:

— Eu te amo mais.