30. MELHORES AMIGAS
Normalidade é uma coisa boa. Pelo menos é o que dizem.
Eu não saberia dizer, pois já faz muito tempo que não me sinto normal.
A bem da verdade, o normal em minha família é um jantar alegre com muita conversa e brincadeiras. Às vezes sinto falta disso.
O problema é que o ser humano está constantemente mudando de ideia, se readaptando, e eu meio que me acostumei a jantares e passeios ao som da voz dele.
Por que isso tem que ser tão difícil?
Eu digo não, não, não! Mas isso é minha cabeça pensando racionalmente.
Minhas emoções são rebeldes. Assustadoramente rebeldes.
Julho de 2024, 8pm
Cristal olhou ao redor, procurando o interruptor para acender a lâmpada do apartamento de Julian, que agora seria seu. Ela estava cansada depois de passar quase seis horas atrás do volante.
Durante o caminho entre São Paulo e Lins, ela não conseguia parar de pensar em Erick e em como gostaria de ter se despedido dele apropriadamente, porém isso não seria certo, pois ele já estava envolvido demais e qualquer envolvimento com ela resultaria em sofrimento para ambos.
Já havia se conformado em ficar sozinha, pelo menos agora, quando as lembranças do seu passado estavam sendo forçadas para fora de sua memória por alguém que brincava com isso, e ela nem sabia ainda o que essa pessoa pretendia.
Ver a vulnerabilidade nos olhos de Erick quando ele a encontrou conversando com David, despertou nela sentimentos que a assustavam. Ele era sincero ao declarar ter sentimentos por ela, contudo, isso não mudava o fato de que ela não era a pessoa certa para ele. Estava quebrada demais. Tinha traumas demais e não estava pronta para seguir em frente.
Agora entendia a antipatia de Daniele. Não era de se admirar que ela tivesse raiva da mulher que roubava a atenção do homem com quem se relacionou por três anos e que deveria ser seu marido. Cristal não sabia o que tinha acontecido para que o relacionamento deles acabasse, mas não podia negar que se havia alguém que conhecia Erick de verdade, era Daniele.
Para distrair sua mente do loiro sexy que a enlouquecia, Cristal começou a pesar algumas decisões enquanto ainda dirigia na estrada que a levaria para casa. A primeira decisão foi se iria direto para a casa dos seus pais e a segunda era se continuaria morando com eles.
Depois de pesar os prós e contras, ela decidiu que precisava descansar antes de encontrar seus pais, pois havia dormido por cerca de três horas na noite passada, depois dirigiu por quase seis horas, mantendo-se acordada com café e energético, então sua aparência devia estar lamentável. Iria para o apartamento que Julian havia lhe dado a chave.
A segunda decisão foi a de que ficaria morando no apartamento até receber a resposta de Heidi ou conseguir um emprego. Tinha economizado dinheiro de mesadas, trabalho de meio período em meses de férias, e os salários bissemanais do estágio, por isso tinha o suficiente para se manter pelos próximos meses, levando uma vida bem simples enquanto concluía seu artigo de conclusão de curso e se formava, o que aconteceria até dezembro, pois o último semestre do seu curso era dedicado somente ao TCC, atividades extras e estágio, que foi o que ela fez com Heidi.
Precisaria conversar com seus pais sobre morar sozinha, porém precisava descansar antes. Abriu as janelas do apartamento para arejar, pois ficou meses fechado, e depois de colocar sua mala no quarto, tomou uma ducha e dormiu.
Quando acordou, já era noite. Atordoada, buscou o celular para ver a hora. Sábado à noite era o dia que seus pais tiravam para si mesmos quando ela ainda morava com eles. Aquiles e Rebeca também tiravam esse momento para passear com Ruth. Eles agora frequentavam uma igreja que guardava o sábado, portanto, só saíam para passear à noite, aproveitando o dia para assistir ao culto pela manhã e passar a tarde descansando ou em almoços, tardes com brincadeiras bíblicas e filmes cristãos ao lado de seus amigos da igreja.
Sem nada para fazer, pois já era oito da noite, ela saiu para comprar alguma comida e depois abriu seu notebook para assistir a uma série de fantasia. Talvez fosse mórbido, mas curtia séries e filmes de fantasia com suspense ou terror. Isso a fazia se distrair de seus próprios problemas e os terrores de seu passado. Também gostava de ação, porém tinha que ser muito eletrizante, sem drama nem romance. Comédias românticas eram horríveis e outras comédias eram para quem não tinha nada na cabeça.
Ou pelo menos ela pensava assim antes de conhecer Erick e aprender a apreciar filmes policiais inteligentes, dramas de superação e comédias que causavam vergonha alheia. No entanto, como o objetivo era não pensar nele para não sucumbir à depressão, ela voltou para as suas habituais fantasias dark.
Depois de passar duas horas assistindo uma série nova de magia e monstros, babando pelo protagonista que mais parecia um personagem perfeito de livros eróticos, ela desligou o notebook e pegou o celular para ler um livro digital. Como ainda se sentia cansada da viagem e por causa da noite mal dormida, logo deixou o aparelho de lado e apagou as luzes, acomodando-se para dormir.
Seu sono foi repleto de sonhos confusos, alguns até eróticos, envolvendo o ator da série que estivera assistindo, e depois o rosto dele mudou para o rosto de Erick. Quando o sonho estava ficando mais quente, na melhor parte, o rosto de Erick foi se transformando até que ela estivesse olhando para Kevyn.
Nesse momento, Cristal acordou com falta de ar.
Nervosa, sentou-se na cama e arrastou seu corpo lentamente para levantar e andar até a janela de vidro do quarto. O sol começava a despontar por entre as casas e prédios. Aquela parte da cidade era repleta de prédios residenciais, comerciais e lojas. Ao longe se via a parte mais movimentada do centro.
Olhou o relógio e suspirou. Era perto de seis horas da manhã.
Sem querer dormir novamente para não sonhar, ela se espreguiçou, lavou o rosto e vestiu um conjunto de moletom com capuz e tênis. Colocou fones sem fio e músicas pop em seu celular, que foi para o bolso interno de sua blusa junto com algum dinheiro, depois saiu do apartamento e desceu para ir correr nas calçadas em que começavam a aparecer os apreciadores de esportes matutinos.
Cerca de quarenta minutos mais tarde, tendo corrido a esmo pelas calçadas, ela finalmente retornou. Notou que havia uma cafeteria em uma das esquinas e uma padaria bem em frente ao prédio. Decidiu entrar na cafeteria para tomar um ristretto com canela, depois foi até a padaria, onde comprou pastéis folhados e uma garrafa de iogurte.
Depois de voltar ao apartamento e tomar um banho, Cristal vestiu apenas um top e short, sem calcinha, como gostava de andar em casa quando sabia que não receberia visitas. Ninguém sabia que ela já estava em Lins, então aproveitou sua liberdade.
Pegou a garrafa de iogurte e derramou um pouco em uma tigela de plástico, onde começou a mergulhar os pastéis pelas pontas para comer. Essa era uma mania estranha que ela tinha desde seus doze anos, não só com pastéis folhados, mas também com batata frita. Seus irmãos achavam isso nojento, entretanto, ela gostava do salgadinho oleoso misturado com a bebida cremosa. Fazia isso com milk-shake também, se divertindo com as caretas repugnadas de Nicole quando elas saíam juntas para lanchar.
Durante todo o tempo em que esteve no apartamento de Erick, ela só fez isso duas vezes antes dele chegar e revelar que era o dono do lugar. Agora, sentada na cozinha, ela apreciava a combinação incomum enquanto gemia comendo.
Pela parte da manhã, desfez as malas e arrumou as roupas no guarda-roupa. Às dez, fez uma chamada de vídeo para seu irmão, contando que já estava de volta e que ficaria no antigo apartamento do Julian. Combinaram um almoço na casa dele, uma surpresa aos seus pais.
Às onze, Cristal já estava na casa de Aquiles. Vestia bermuda com uma camisa da seleção brasileira, e os cachos rebeldes estavam soltos. Ao vê-la, sua sobrinha gritou e correu para os seus braços, rindo e a agarrando com toda a força de seus bracinhos roliços.
— Titiiiiiiaaaa!
— Oi, minha princesa! Como senti falta dessa fofura! — ela disse, carregando a menina e enchendo seu rosto de beijinhos.
Abraçou seu irmão e sua cunhada, e ficaram conversando, trocando histórias engraçadas enquanto esperavam seus pais chegarem, pois Aquiles os havia convidado para almoçar e eles nem desconfiavam que veriam a filha caçula.
Quando a campainha soou, dez minutos antes do horário previsto, Cristal foi atender, pronta para gritar "surpresa!", quando percebeu que seu irmão também armara uma surpresa para ela, pois a visitante era Nicole.
Elas gritaram e se abraçaram, rindo como loucas.
— Que saudade, Cris!
— Nick! Como é bom te ver! Tenho tanta coisa pra contar!
Ficaram tagarelando no sofá da sala, até que Eva e Carlos chegaram. Sua mãe a abraçou e chorou emocionada, dizendo como sentiu saudade de sua menininha e como estava feliz que ela havia voltado.
— Agora só faltava a Elise para estar perfeito! — Eva dizia.
Naquela tarde, depois de um almoço delicioso e muito animado, Cristal foi para a casa de seus pais com Nicole, arrumar suas coisas para levar ao apartamento. Foi difícil para Eva aceitar a decisão de sua filha de morar sozinha, contudo, depois de passarem algum tempo argumentando, ela finalmente viu que não havia nada que pudesse fazer para Cristal mudar de ideia.
Já era noite quando a morena se despediu de seus pais com a promessa de que os visitaria na noite seguinte. Ela e Nicole, ajudadas por Carlos, colocaram as coisas no porta-malas e no banco traseiro do volvo, depois partiram. O porteiro do prédio as ajudou a levar as coisas até o apartamento no sexto andar, então elas entraram, cansadas.
Nicole olhou ao redor, assobiando.
— Então esse é o famoso apartamento onde o Andreoli ficava hackeando, sentado na frente de um monte de monitores?
— Fala baixo, louca. Esse é o apartamento do Roger, que passou pro Julian e depois foi habitado pelo Andreoli. Foi aqui que a Bruna conheceu o italiano vulgo "pedaço de mau caminho".
Nicole riu.
— Ele é lindo mesmo. Eu não me oporia a ficar com um homem bem mais velho se ele fosse tão bonito quanto o marido da Bruna. — Fez uma pausa, olhando para uma foto que Cristal carregava para todo lugar e que havia prendido com um ímã numa placa de metal acima da televisão da sala. Ela mostrava Aquiles ladeado por Elise e Cristal. — Ou como o teu irmão.
— Eca, Nick.
— O quê? O Aquiles é tão gostoso quanto o Andreoli e o Julian.
Cristal revirou os olhos.
— Mas ele é meu irmão. É estranho ouvir alguém falando dele desse jeito.
— Que seja. Se ele não fosse tão louco pela minha antiga babá, eu tentaria a sorte. — piscou, rindo da careta de Cristal. — Falando de homens gostosos, você teve notícias do Erick? Ele parecia bem interessado lá em Roma.
Cristal bufou.
— Eu te disse que não peguei o número do telefone dele e nem dei o meu.
— Porque você não foi inteligente — Nicole retrucou.
— E você? O que aconteceu com aquele deus romano que passou a noite do casamento na tua cama?
— Cisco Sianconeli. — Nicole suspirou. — Eu já te contei como ele é bom com a boca?
Cristal assentiu.
— Tanto que deturpou minha mente pura.
— Mente pura minha bunda. — Riu Nicole. — Ele até manteve contato depois que eu vim embora, mas não dá certo assim. Estamos em continentes separados e ele é muito bonito para conseguir manter um relacionamento à distância. Resumindo, foi só uma transa maravilhosa.
— Não sei como consegue fazer isso. Eu sou péssima em lidar com um só homem enquanto você lida com dois a cada mês.
Nicole deu de ombros, se jogando num sofá. Cristal deitou no outro.
— Bom, eu estou esperando o homem certo, mas você sabe como é o ditado: enquanto não encontro o certo, me divirto com os errados. Então... se você perdeu a chance de conhecer melhor aquele homem perfeito chamado Erick, pelo menos conheceu alguém interessante na capital?
— Ele não é perfeito — Cristal resmungou.
— Vai ficar me enrolando? Sempre que conversávamos por vídeo, você ficava estranha quando eu perguntava se tinha alguém homem te enlouquecendo.
— É porque tinha.
— Sabia! Conta tudo!
Cristal respirou fundo.
— Você sabe quem é a família do Erick, né?
— Claro. Schmitz não é um nome muito comum aqui no Brasil. Isso não quer dizer que ele seja louco como o irmão. Ninguém escolhe a família em que nasce. O que isso tem a ver com o homem te enlouquecendo na capital?
— Heidi Becker, minha chefe, na verdade é Heidi Schmitz.
Nicole arregalou os olhos.
— Mentira! Então o apartamento em que você estava...
— Era do Erick, sim.
— Como você pôde esconder isso de mim, Cristal? Ele estava lá? Ah, eu vou te matar, sua vaca! Esse tipo de coisa não se esconde da melhor amiga! — Nick falava com tom sério, mas seus lábios tremiam, lutando contra um sorriso.
— Calma aí. Eu soube apenas duas semanas depois do começo do estágio, quando ele apareceu lá. Imagina como eu fiquei irritada.
— Irritada, sei. É o destino, tô dizendo! Você não quis saber dele e um mês depois o encontrou de novo. Essas coincidências da vida são misteriosas, mas deixam claro o que é para ser. Vocês dois são perfeitos um para o outro.
— Não fala besteira, Nick. Assim como eu, ele está longe de ser perfeito. Nunca daria certo.
— Ah, qual é? Tem que ver como os teus olhos brilham quando fala dele.
— Que mentira!
— Você tá caidinha pelo loiro de olhos esmeralda, querida.
— Não tô!
— Tá sim. Agora desembucha.
Cristal bufou.
— O teu queridinho perfeito é um machista, Nick. Ele me forçou a ir jantar na casa de um amigo dele.
— Forçou? Desde quando alguém te força a fazer alguma coisa? Agora estou curiosa para saber o que ele fez!
— Ele me jogou por cima do ombro como se fosse uma boneca de pano e me levou para o elevador descalça, vestindo camiseta e short curto, desses que eu uso em casa. Um idiota machista. Isso não é engraçado!
Nicole gargalhava com vontade.
— Eu queria ter visto isso! Como foi ter teu rosto bem perto daquele traseiro perfeito?
— Fala sério! Você só pensa em coisas sujas, Nick.
— Ah! Eu teria dado uma boa olhada.
A boca de Cristal se ergueu uma fração.
— É redondinha e bem firme.
— Safada! E esse amigo dele? Era tão lindo quanto?
— Lindo, mas um completo babaca.
— Sério? — Nicole fez uma careta. — Agora pode contar o que ele fez pra te deixar com essa expressão tristonha. Não gosto de te ver assim.
Cristal suspirou e fechou os olhos.
— O David é muito bonito. Os olhos dele são bem escuros e o cabelo preto é comprido como o do Julian. Tem a altura do Andreoli, um sorriso sarcástico muito parecido ao do Aquiles, o corpo cheio de músculos... A voz é mais grave que a do Erick e ele tem um jeito meio bruto. Não usa barba e é tão sexy que dá raiva.
— Hum... essa parte me fez ficar excitada. A junção dos homens mais bonitos que eu já conheci. — Nicole lambeu os lábios. — Agora fala da parte babaca.
— Ele me tratou mal desde o primeiro dia. Disse coisas desagradáveis, se incomodava com a minha presença e deixava claro que era contra qualquer tipo de relacionamento entre mim e o Erick. Falou que somos de mundos muito diferentes e eu não sou sofisticada como as mulheres com quem o Erick costuma se relacionar.
— Agora estou com vontade de chutar as bolas desse tal David.
— Eu teria feito isso se pudesse. Teve um dia que o David me disse coisas horríveis, entre elas que eu era uma golpista interessada no dinheiro dos Schmitz. Eu perdi a paciência e bati nele até derrubar no chão, só que o Erick me tirou de cima dele antes que eu pudesse quebrar o nariz do idiota.
— Essa é a minha garota! Mandou bem, gata, ele mereceu. Que absurdo!
— Mas tudo isso foi por nada, Nick. Não é como se pudesse existir alguma coisa entre nós. Eu não sou boa para o Erick nem para ninguém.
— Como pode dizer isso, Cris? Você é linda, talentosa e...
— Você sabe muito bem o que aconteceu no meu passado. O que eu fiz. Não sou uma mulher completa, Nicole, eu estou quebrada.
— Isso é besteira. Você não é a única no mundo que já tomou decisões erradas. Não faz isso consigo mesma, amiga. — Ela se sentou no chão e puxou a cabeça de Cristal para o seu colo. — Eu nunca soube a história toda. Você vai me contar?
Cristal encarou sua amiga com os olhos marejados, sofrendo.
— Um dia, Nick. Um dia eu vou contar tudo, mas não hoje. Só fica aqui comigo.
— Sempre, querida.
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