III
— Se puder me dar um espaço, sua ferida está quase se fechando, mas seria bom poder me concentrar no que estou fazendo. — ele pede com calma e ela cede, abaixando a mão e fechando os olhos mais uma vez.
Aquela expressão era de dor, ele conhecia muito bem.
Eles estavam nos aposentos reais quando ele viu aquela expressão pela primeira vez. Depois de semanas de discussão, ela tinha tomado sua decisão. Iria apresentar ao rei suas insatisfações com o governo. A família de Ayla, tão ligada ao povo comum, sempre havia sido porta-voz das necessidades do reino. Isso até que o pai dela perdeu a vida em uma expedição.
Naim não se importava com o povo. Por que deveria? Ele era o sétimo na linha de sucessão. Seu papel era não ficar no caminho. E ele sabia que o clamor de Ayla não faria bem algum. Ele tentou fazê-la entender, mas ela sempre foi uma fiel defensora de suas ideias. Ela jamais recuaria.
E não recuou. Ela foi ao rei. Quando voltou, com a revelação de um terrível segredo pesando em suas costas, a expressão de dor estava lá.
— O rei matou o meu pai. — foi o que ela disse na penumbra.
— De onde você tirou isso? — Naim questionou sem acreditar.
— Ele contou. Disse que me daria uma chance de ter um fim diferente. — Ayla contou com a voz baixa.
— Ayla... eu sinto muito. Mas estou feliz por estar bem. — o príncipe falou, tentando abraçá-la.
— Eu não estou bem. Sabe, o seu pai não me matou por ter misericórdia. Ele não possui essa tipo de sentimento. Ele não me matou, porque pensa que eu não sou uma ameaça. Talvez eu devesse provar o quanto ele está errado. — ela falou, com um ar sombrio.
— Você vai me matar, Ayla? — Naim perguntou, sentindo que, naquele momento, sua vida não estava segura.
— Não agora, meu príncipe. Não hoje. — ela decidiu, depois de alguns minutos em silêncio.
Aquele dia deu início a uma sucessão de eventos que levou o sétimo príncipe a ser o sucessor do rei do leste. Eventos que transformaram a última da família que falava pelo povo na comandante da rebelião, que luta para acabar com a monarquia.
Talvez ela ainda seja a voz do povo, ele pensa ao concluir o processo de cura. Talvez o povo não queira mais servir a um rei que não entenda de misericórdia e que subestima os inimigos com maior poder de devastação.
Porque Ayla ainda não matou Naim. Talvez ela nunca o mate. Mas, com certeza, ela seria sua devastação.
— Eu não me importo se você queima as residências da Coroa. Se você rouba o ouro para dar aos pobres. Eu não dou a mínima se o objetivo da sua vida é matar o meu pai...
— Eu não quero matar o rei. Quero que ele pague por seus crimes. — Ayla fala, tentando escapar do olhar penetrante de Naim. Ele ainda está com as mãos em seu abdômen, impedindo que ela se levante do chão.
— Mas andar por aí, com ferimentos que podem matá-la facilmente é inadmissível! E ainda estava prestes a começar um duelo comigo! Qual foi a primeira coisa que nós aprendemos? — Naim questiona, ignorando por hora a interrupção.
— Se estiver ferido, procure por um lugar seguro e saia do caminho de quem ainda pode lutar. — Ayla fala, de má vontade.
— Exatamente! Achei que depois de tantos anos essa seria uma lição que você jamais iria ignorar. — ele fala, finalmente se afastando, permitindo que Ayla se sente, apoiando as costas na árvore mais próxima.
— Não é como se eu tivesse simplesmente ignorado. Quem iria duelar com você? — ela pergunta, com uma sugestão de humor na voz.
— Ayla Lis, pode, por misericórdia, me explicar o que você está fazendo aqui? Se não vai matar o meu pai, qual é o seu plano? — o sétimo príncipe pergunta, sem expectativas de obter uma resposta honesta.
— A revolução nunca teve o intuito de ceifar vidas. Nossa causa nunca foi a guerra. Mas quando o rei mandou exércitos à nossa porta, não tivemos outra escolha, a não ser nos armar. Mas eu estou cansada, príncipe. Hoje, o mais importante é que suas forças se mantenham ocupadas aqui, enquanto meus amigos no castelo finalmente se juntam às nossas linhas. — Ayla confessa, não vendo mais um ponto em esconder a verdade.
— O que você fez com o rei? — Naim pergunta, alarmado.
— Eu não fiz nada. Como bem sabe, eu precisava estar aqui. Assim, você não estaria no castelo. Ter você no caminho até o trono dificultaria nossa ação. — ela fala, sem desviar do olhar, agora furioso, na face daquele que uma vez foi seu amigo.
— Eu que estou cansado! Eu não tenho mais família por causa das suas ações e agora está me dizendo que iria me matar também? Não pode existir um herdeiro? — ele questiona, quase se arrependendo de tê-la curado.
— Você sabe que eu nunca mataria sua família. Seus dois irmãos e suas três irmãs estão seguros, esperando o julgamento real. — ela explica, com calma.
— Do que você está falando? Eu vi a lápide de cada um! — o ataque dos rebeldes foi perfeito em muitos níveis. A grande casa no litoral, refúgio para os filhos do rei durante o verão, foi o palco para o massacre.
— Claro que alguns do meu lado sugeriram que a sua família merecia a morte. Às vezes, eu chego a pensar isso. Mas foi seu pai quem escolheu declarar que todos estavam mortos. Não se preocupe. A esta hora, o castelo já foi tomado, o rei já deve estar nas catacumbas e, em breve, a Coroa será julgada por seus crimes. Lembrando que neste reino não temos pena de morte. A lei não será quebrada, uma vez que foi criada pelo povo. — Ayla conta, com muita calma.
— E todos os embates que já tivemos, todas aquelas mortes, o objetivo desta guerra nunca foi matar a monarquia. Tudo isso porque você quer que passemos nossas vidas em masmorras? — ele pergunta, incrédulo.
— É claro que eu não serei nem juiz nem jure nesse caso. Eu busco justiça, não vingança. — ela explica, sem se perturbar.
— E o que acontece comigo? — ele pergunta, agora com a voz mais controlada.
— Quando aceitei ser parte da revolução, eu fiz uma exigência tola. Concordei em planejar e liderar cada ação necessária, mas, independente do que acontecesse no futuro, o sétimo príncipe, o meu príncipe, seria poupado. Eu sabia que você jamais seria parte dos crimes do rei. Sabia que se o encontrasse no campo de batalha, seria um fruto de obediência a Coroa, de uma crença na busca pelo melhor para todos. Nos nossos primeiros encontros em lados opostos, eu tive a pequena ilusão de que você também estava lá para, de alguma forma, me proteger. Você parecia me poupar tantas vezes, e nunca, jamais usou o arco contra nós. Com o tempo, eu vi que tinha perdido você, eu vi o ódio que nos tornou verdadeiros inimigos. Mas o acordo já tinha sido feito. E, agora, me questiono se era realmente ódio que eu enxergava quando via você nos campos de batalha. — ela fala, agora com intensidade.
— É claro que era ódio. Você era minha única amiga. E eu sei, eu entendo tudo o que você fez. Mas você me abandonou! E, mais do que isso, parecia sempre pronta para me matar. — Naim explica, de mal humor. — E eu odiei você profundamente, porque eu sabia, com toda a minha razão, com todo meu coração, que jamais poderia deixar de amá-la. E, até agora, eu sei que mesmo que você me devaste, que acabe comigo, eu nunca vou ser capaz de parar de admirar você. Parar de temer encontrá-la e ser o dia em que vamos matar um ao outro. Parar de querer encontrar você, mesmo que do lado oposto. — ele encerra, finalmente dizendo o que há tanto tempo o atormentava incessantemente.
— Naim... eu senti sua falta. — ela fala, notando as lágrimas que ele deixa escapar.
— Ayla, eu não quero mais sentir sua falta. — ele diz, se aproximando com cuidado. Quando ela não o ameaça com uma faca, ou espada, ou qualquer objeto afiado, ele se permite finalmente tocar o rosto dela depois de tantos anos.
Ela finalmente o abraça, lembrando-se do dia em que tudo começou e ele tentou fazer o mesmo. Depois de alguns minutos, escondidos pelas árvores e pela noite, eles finalmente se beijam. Uma devastação inevitável acontece para ambos, porque a consciência profunda de que não poderão mais se separar é real para os dois.
— Vamos embora? — desta vez é ele quem pergunta. Ela sorri ao lembrar-se do dia em que eles se tornaram amigos. Ela se lembra com precisão de como, no dia em descobriu sobre a morte do seu pai, fez essa mesma pergunta a ele. Uma pergunta sussurrada na madrugada, dita depois de uma ameaça de morte. Ele disse não daquela vez.
— Vamos. — ela responde, decidida a nunca mais cometer os mesmos erros. Ela jamais mentiria fingindo que o seu objetivo era matá-lo. A ideia mais estúpida de todas. Como ela poderia tirar a vida de quem a fazia acreditar que ainda existia esperança?
Porque o sétimo príncipe, o filho do rei do leste, o curandeiro com sonhos impossíveis, havia sido o primeiro a sussurrar, ainda na infância: como seria se todos fossem misericordiosos e não buscassem vingança?
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Faz muito tempo que estou planejando um livro de fantasia. É um dos meus gêneros favoritos, mas minhas ideias ainda parecem muito distantes de chegarem ao "papel". Enquanto isso, espero que você tenha gostado desse breve encontro entre Naim e Ayla. Não posso garantir que eles vão integrar meu universo fantástico, mas é possível, caso você tenha interesse em ler mais sobre isso, deixa aqui o seu comentário!
Até a próxima <3
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