VI - Perguntas
"Tell me, did you sail across the sun
Did you make it to the Milky Way to see the lights all faded
And that Heaven is overrated?
Tell me, did you fall from a shooting star?"
Train, Drops Of Jupiter
A criatura chamava-se Ozilia. Arrancara-lhe o nome a custo, como quem desencrava uma espada cravada numa pedra dura. Sentira-se estúpido a fazer a pergunta, pois não lhe interessava minimamente saber como se chamava, a não ser pela razão prática e imatura de poder amaldiçoá-la convenientemente, quando chegasse a ocasião. A criatura tinha-o olhado desconfiada e não lhe respondera à primeira. Ele disfarçara enfiando as mãos nos bolsos das calças, enfiando também o queixo no peito, a arrepender-se de continuar a portar-se, quando estava com ela, como um reles humano patético. Ela usava o casacão dele, o que fazia os seus ombros terem o dobro do tamanho.
- Para que é que queres saber o meu nome, humano?
Encolhera os ombros, afundando-se no poço lodoso daquela situação.
- Chamo-me número 17. Pronto, já te disse o meu nome, podes dizer-me o teu.
Afundava-se cada vez mais, com aquele argumento soara a um menino mimado a mendigar um doce.
- Número 17...
- Hai.
- E queres saber o meu nome?
- Estás na minha casa, acho que tenho o direito de o saber.
Os seus argumentos eram do piorio. Encolhera-se ainda mais.
Irritara-se por estar a ser idiota.
- Esquece!
Antes de aquela exclamação acamar totalmente na paisagem bucólica que os rodeava, ela respondera com um murmúrio, que não fora totalmente voluntário.
- Ozilia.
Não gostara de ter cedido aos argumentos patéticos do humano patético, fizera-lhe a vontade e devia estar a morder a língua por ter-lhe dito como se chamava. Mas a espada fora desencravada e a vitória, sem que tivesse o sabor inequívoco da conquista, era dele. Ele não se sentiu melhor por isso, mas já tinha um nome para a criatura.
Podia amaldiçoá-la a seu bel-prazer.
***
As primeiras casas da aldeia apareciam ao fundo, depois daquela última curva no caminho e número 17 avisou:
- Eu vou falar com o Bode. Sozinho.
- Porquê? – Perguntou-lhe Ozilia calmamente.
O tom foi estranho, sem entoação, como se a palavra "porquê" se tivesse derramado, sem querer, da boca dela sem que o cérebro quisesse ter feito a pergunta.
- Tentaste destruir a casa do homem. Ele não vai responder com acerto a nada do que eu lhe perguntar se tu estiveres comigo. Vai esconder o que sabe e vai mentir. Nós não queremos isso.
- O maldito roubou-me o diamante.
- Muito provavelmente roubou-te o diamante, de acordo. Se queres recuperá-lo, terás de fazer o que eu digo.
- Já te disse que não preciso da tua ajuda.
- Sei disso muito bem.
- O que propões? – Apontou para as casas. – Estás a levar-me para a aldeia. O que eu fiz ontem assustou os seus habitantes e, mais cedo, ou mais tarde, o Bode saberá que eu estou ali, à espera do sucesso dos teus esforços em arrancar-lhe uma confissão. E, segundo a tua lógica, vai deixar de ser sincero e vai começar a mentir.
- Então, terei de o interrogar rapidamente.
- E eu?
- Vou deixar-te na taberna.
Ela arqueou os sobrolhos finos.
- Na taberna? Não havia um lugar mais concorrido e cheio de gente do que a taberna?
- Tenho lá uma amiga, vou pedir-lhe que... bem, que olhe por ti.
- Vais pedir-lhe que me esconda na cozinha, como se fosse um cão?
Olhou para ela à espera de uma explosão de génio, acompanhado de um grito, mas ela tinha um ar apático, imitando a sua indiferença. Sentiu-se incomodado, preferia uma explosão de génio àquilo.
- Não vais para a cozinha. Ficarás em boas mãos. Aceitas?
- Tenho outra possibilidade? Não me deixas fazer as coisas à minha maneira.
- Podias fazer... Afinal, tens uma força prodigiosa. Foste capaz de me derrubar.
- Tu não passas de um humano patético.
- Humano artificial, por favor.
- Como queiras. Apenas um humano.
Outra dúvida e naquela história, desde que falhara o tiro, as dúvidas eram uma constante: por que razão ela não ia recuperar sozinha o diamante? Tinha o engenho suficiente para o fazer, não precisava realmente da ajuda de um humano. Rebentava com algumas casas ou arrasava simplesmente com a aldeia inteira até que o seu precioso diamante aparecesse e voltava para o lugar misterioso de onde viera. A não ser que a solução não fosse assim tão simples. Talvez ela não pudesse revelar que tinha perdido o diamante e que teria de o recuperar antes que se descobrisse a sua falha. Era a única explicação para ela aceitar a ajuda de um humano patético.
A conclusão começou a assustá-lo. Estava a ligar-se àquela criatura, que ele não sabia muito bem de onde vinha e o que era. Ele nunca se ligara a ninguém, nem mesmo à irmã, e não sabia o que fazer. Fechou os olhos, suspirando. Iria recuperar o diamante, entregava-o à criatura e deixava-a ir. Não queria ninguém ligado à sua vida.
Chegaram à aldeia de ruas desertas, o que evitou cenas desnecessárias de pânico. Dirigiram-se à taberna. Número 17 empurrou a porta larga de madeira, o sino soou, Ozilia passou primeiro. A taberna estava como as ruas, deserta, o que era muito conveniente. Tudo estava a correr na perfeição. Ele acercou-se do balcão e a dona apareceu com um sorriso largo na cara rechonchuda.
- Oi, bonitão. O habitual?
Ele disse:
- A minha amiga precisa de um canto reservado. Ela vai ficar aqui à minha espera enquanto trato de um assunto importante.
A dona da taberna perdeu o sorriso ao reparar na criatura. Empalideceu, o lábio inferior estremeceu e recuou um passo.
- Ela não vai fazer nada à tua taberna, prometo-te. Serve-lhe um prato generoso de guisado.
- Deves estar a brincar comigo – disse Ozilia entre dentes.
Ele admirou-se, olhou para ela.
- Não comeste nada. Não tens fome?
- Não te preocupes comigo. Vai fazer o que tens a fazer.
Ele encolheu os ombros.
- Como queiras. – Voltou-se para a dona da taberna – Percebeste-me?
A mulher acenou com a cabeça uma única vez e repetiu:
- Um canto reservado. Vem por aqui... querida.
Tratava todas as clientes femininas por "querida" e os clientes masculinos por "bonitão", mas aplicá-lo à criatura foi, no mínimo, caricato. Ozilia não fez qualquer observação, nem sequer se importou com o tratamento familiar. Seguiu a mulher e sentou-se numa mesa pequena, situada próxima do extremo mais afastado do balcão. Número 17 verificou que a cabeça empalhada da corça ficava mesmo por cima dessa mesa. A mulher inclinou-se, perguntou qualquer coisa à criatura. Demorou cinco segundos a receber o pedido e afastou-se. Era um canto reservado, concordou ele, dissimulado num ângulo sombrio, transformando a criatura, vestida de calças, camisa e casacão, num vulto indistinto de um homem, apesar do penteado estranho. E protegido pela corça.
Estreitou os olhos. Tentou ler-lhe o ki, de repente, para apanhá-la desprevenida. Mas ela estava atenta e a barreira estava erguida. A cabeça dela girou, olhou para ele com um sorriso. Ela percebera a tentativa de intrusão do humano patético. E ele voltava a escorregar nas armadilhas dela.
A dona levava um bule fumegante e uma malga para a mesa do canto reservado e foi então que ele deu meia volta, saindo da taberna para a luz mortiça daquele dia de outono. Andou devagar até ao largo do fontanário, mãos nos bolsos das calças de ganga.
Ainda cheirava a queimado. Três homens labutavam junto à casa destruída, serrando madeiras e pregando outras tantas, erguendo a estrutura nova que iria substituir a destruída. Um quarto homem dava algumas indicações, manuseando uma enorme folha de papel onde estavam desenhos e havia ainda um quinto homem, com uma barbicha grisalha no queixo, que observava interessado os trabalhos de reconstrução. Número 17 aproximou-se do Bode e distraiu-o da sua entretenha.
- Jovem, o que desejas? Ajudar a construir a minha casa? És muito bem-vindo...
Mas reconheceu-o e franziu a cara, criando pregas na testa, junto aos olhos e em redor da boca, distorcendo-a numa máscara assustadora.
- Foste tu ontem que...
- Preciso falar contigo, ojiisan. Em particular.
O Bode levantou-se da pedra onde se sentava. Pensou durante uns segundos, depois concordou e pediu-lhe com uma mão que o seguisse. Mesmo sem a sua atenta observação, os trabalhos prosseguiram imperturbáveis. Os dois pararam numa ruela criada entre duas casas construídas demasiado juntas.
- O que querias falar comigo, jovem?
- Quero o diamante.
O Bode esbugalhou os olhos, desfazendo todas as pregas do rosto.
- Que diamante?
- Pela tua reação, vejo que sabes do que estou a falar, ojiisan. Ontem, viste o que eu consigo fazer e posso repeti-lo. Em vez de queimar apenas uma casa, posso arrasar com todas as casas desta aldeia. Hei de encontrar outro lugar neste mundo que faça um guisado de coelho-bravo tão bom quanto o da taberna deste lugarejo. Não perderei assim tanto, comparado com o que vocês poderão perder... Por isso, não me faças esgotar o tempo e a paciência.
O Bode engoliu em seco.
- Eu... eu...
- O diamante, ojiisan.
- Eu não sei onde está o diamante.
Número 17 agarrou no homem pela gola do casaco, sacudiu-o.
- Queres mesmo experimentar os meus nervos, não queres, ojiisan?
- Por favor, jovem...
- Devolve-me o diamante!
- É ela que quer o diamante, não é? Ela está contigo, não está? – O homem olhou para todos os lados. – Onde é que ela... está escondida?
- Isso não interessa.
Soltou-o com um empurrão.
- Vai buscar o diamante e não te demores.
O homem desatou a correr como um bicho assustado, a cabeça enterrada entre os ombros. Número 17 respirou fundo, passando uma mão pelo cabelo negro. O Bode não fora muito difícil de convencer. Aquele sim, era um exemplo perfeito de um humano patético. Saiu da ruela e encaminhou-se novamente para o largo do fontanário, com o habitual ar descontraído, mãos nos bolsos das calças.
Ao longe, um cão ladrou.
- O que é que tu pensas que estás a fazer?!!
O grito atingiu-o, qual flecha envenenada. Olhou para trás e encontrou Ozilia a correr para ele a toda a velocidade, furiosa como um monstro. Os olhos dela, reparou, estavam vermelhos como dois rubis iluminados por um fogo vivo.
- Eu confiei em ti! Ah, maldito humano!
Ele retirou as mãos dos bolsos, fechou os punhos.
Para que raios precisou saber do nome dela, se fora ela a primeira a amaldiçoá-lo? Agora sim, pela primeira vez, sentia-se patético. Odiou a sensação e cuspiu para o lado, preparado para lutar com ela. Explicou furioso:
- Mas eu consegui o teu precioso diaman...
- Cala-te! – Cortou ela e passou por ele, parando alguns metros mais adiante.
- Nani?
A terra tremeu quando um ser gigantesco, compacto e com o aspeto imponente de um guerreiro de outras eras aterrou no largo do fontanário.
Número 17 sentiu o estômago contrair-se.
O que era aquilo?
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