V - Despertar
"She always finds a way to find me.
I can't run away, there's no way out.
So I pray
Not to see her again."
Sean Riley and the Slowriders, This Woman
Durante largas horas, a criatura não despertou e ele desistiu de a vigiar. Vestiu o casacão e regressou à aldeia para comprar mantimentos, já que tinha uma convidada em casa e sentia uma necessidade esquisita de recebê-la bem. Apesar de esta o ter tentado atacar e de continuar a considerá-la como uma maldita de uma criatura da floresta que zombava dele e que lhe provocara o primeiro pesadelo em anos.
Deitara-a na sua cama. Não lhe despira o vestido, mas descalçara as botas peludas e ficara alguns segundos, contrariado, a contemplar-lhe os pés pequenos e perfeitos. Teve de se aguentar para não lhe tocar nos pés, saber se eram macios ao toque tal como o eram ao olhar.
Depois, analisara-lhe o corpo à procura dos ferimentos. Descobrira um na nuca, na orla da cabeleira entrançada, pouco profundo que limpara e untara com uma pomada antibiótica que aprendera a fazer. Descobrira outros dois ferimentos, um na coxa esquerda e outro nas costas, que tiveram de ser ligados por serem mais graves. Um deles, o da perna, estava bastante feio e ameaçava infetar. Rasgara o vestido para poder desempenhar melhor a sua tarefa improvisada de enfermeiro. Sentira algum remorso, pois o tecido era realmente especial, diferente de qualquer coisa que ele já tinha visto ou tocado. A pele da criatura era também especial, lisa e suave como a de uma criança e dera por ele a corar em alguns momentos. E enquanto a manuseava, a criatura continuara adormecida, sem qualquer indício de ki, um ser que vivia mas que não emitia aura, como se estivesse suspenso num limbo que ele não era capaz de alcançar com a sua perceção.
Quando entrou na aldeia, sentiu-se um intruso, apesar de a sensação lhe ter incomodado tanto quanto a picada de um mosquito. Os aldeões evitavam cruzar-se com ele, fixavam-no com olhares assustados, cochichavam amedrontados, espreitando os seus passos. Nunca o tinham visto disparar um ataque energético e voar, pensou, ou seria admiração por ele ter dominado uma criatura que lhes parecera tão perigosa e impossível de dominar. Ficou-se pela última hipótese, condizia mais com o seu orgulho. Fungou cheio de vaidade e entrou na loja.
Foi atendido por uma mulher nervosa que não lhe dirigiu a palavra, limitou-se a acenar com a cabeça enquanto ele ia pedindo: pão, queijo, couve, leite e arroz. No fim lá se atreveu a abrir a boca para indicar o preço das coisas num murmúrio que ele mal percebeu. Pagou com uma nota que atirou para o balcão e nem se preocupou em receber o troco. Achou que a mulher também ficou aliviada por não ter de lhe dar o troco, pois não suportaria continuar a tê-lo na sua loja.
Fez a viagem da aldeia à cabana voando a toda a velocidade. Quando abriu a porta, percebeu que a criatura continuava adormecida, na cama que era dele, tapada com o cobertor que ele lhe tinha deixado.
Preparou uma refeição ligeira de arroz aromatizado e de carne seca, acompanhado com chá verde, mas acabou por comer sozinho. A criatura continuava a dormir e ele não a iria despertar. Como tinha a cama ocupada, dormiu essa noite no sofá velho. Apesar de ser desconfortável, concedeu-lhe uma descansada noite de sono, sem sonhos o que por si só já era suficiente, tendo em conta a agitada noite anterior.
Acordou de madrugada, à mesma hora de sempre, minutos antes de o sol nascer. A criatura continuava entregue ao mais absoluto dos sonos e ele começava a acostumar-se àquele estado dela. Pelo menos adormecida, não lhe causaria problemas e tê-la por perto permitia-lhe controlar a influência que exercia sobre ele.
Foi para o exterior sem vestir o casacão e treinou-se durante aproximadamente uma hora. Pela primeira vez desde há muitos anos pensou cada movimento, explorou a força e a técnica de cada golpe, esticou o fôlego até ao limite. Tinha o pressentimento de que iria lutar em breve.
Entrou em casa e enfiou-se na casa de banho. Tomou um duche de água bem quente, esfregando suor e poeira, juntamente com o pressentimento que o tinha acompanhado durante aquela sessão de treinos. Vestiu roupa lavada e enrolou aquela que estava suja para a deixar na aldeia, numa próxima visita, onde seria cuidada por uma velha senhora que era lavandeira. Torceu o nariz, lembrando-se de como o receavam agora na aldeia, provavelmente seria recebido pela lavandeira de uma forma menos cordial, mas não iria abandonar as suas rotinas só porque tinha revelado que não era um humano qualquer.
De seguida, chegou-se à bancada e começou a preparar uma refeição para duas pessoas, como no dia anterior. O fogo crepitava alegre, espalhando um calor agradável pela cabana, disfarçando a aragem fresca que soprava naquela manhã com prenúncios de chuva. Lavou uma porção generosa de arroz, preparou alguns legumes e tiras de carne seca. Estava a juntar as ervas para a infusão quando deitou uma olhadela por cima do ombro direito, para verificar a ocupante da sua cama. A água fervia no tacho suspenso por cima do fogo.
O cobertor estava atirado para o lado, uma grande parte tinha resvalado para o chão. A cama estava, portanto, vazia.
Girou rapidamente sobre si próprio, ficando com a bancada nas costas. Não conseguia sentir nada, nenhuma presença, nem sequer um leve resquício de perigo. Olhou para todos os cantos da cabana que não era tão grande assim, mas não encontrou sinal da criatura. Apertou os dentes, inquieto, afastando-se ligeiramente da bancada, cerrando o punho direito que levantava devagar, preparando a defesa. Escutava o ruído da água a borbulhar, os estalos da madeira a arder no fogão, a brisa a assobiar nas gelosias e o resto era um silêncio de fazer gelar os ossos.
Lembrou-se de um detalhe, enquanto dava um passo cauteloso. Cima. O teto. Levantou o queixo, olhou para cima. Não foi a tempo de utilizar o punho direito cerrado. Uma dor estupidamente forte penetrou-lhe a face esquerda, voltou a cara com o golpe. Algo aguçado tinha aberto três sulcos pouco profundos na pele, sentiu um líquido morno e quente a escorrer dos sulcos. Sangue.
Sangue?
Um vulto moveu-se rapidamente diante dele. Esquivou-o. Usou o punho direito cerrado, socou o vazio. Saltou para o lado, tentou usá-lo novamente, mas sentiu um pontapé nas costas, entre as omoplatas e caiu de borco para cima da mesa, partindo-a em duas. Voltou-se para se levantar, mas um peso imenso desabou sobre ele e imobilizou-o, fazendo-o arquejar de surpresa e de raiva.
Continuava a sentir o sangue na face esquerda. Acalmou-se, não podia perder o controlo. Sabia muito bem o que tinha acontecido, teria de enfrentar aquilo da melhor maneira possível.
A visão estava turva. Sacudiu a cabeça para recuperar a lucidez, o orgulho e tudo o resto que tinha perdido naquele curto embate. Abriu os olhos e descobriu-a sentada em cima dele. Ele estava deitado de costas, braços abertos presos debaixo dos pés pequenos da criatura que pressionava com uma força extraordinária, que não condizia com o tamanho daqueles pés. Ela sentava-se sobre o quadril dele, encaixando-se num lugar em que não era suposto encaixar-se. O mais lógico seria tê-lo atacado e imobilizá-lo sentando-se sobre o peito dele. Condicionava-lhe a respiração e podia, à mesma, prender-lhe os braços com os pés. Mas ela, ao estar ali naquele ponto específico do corpo dele, atrapalhou-o. Ficou, de repente com a boca seca ao sentir um calor insuportável a nascer nas virilhas.
Manteve uma expressão neutra, contudo, lutando contra o remoinho de sensações daquela posição ingrata.
Os sobrolhos finos da criatura formaram uma linha irregular quando franziu a testa e perguntou numa voz rouca:
- Onde está o meu diamante?
A criatura falava e era a primeira vez que ouvia a voz dela. Ele não lhe respondeu, para ouvi-la repetir:
- Diz-me! Onde está o meu diamante?
Era um som agradável, mas agreste, com um toque imperioso a roçar o divino. As palavras ditas tinham uma leve impressão a verde e a frescura, a primavera derramando-se daquela boca pequena e vermelha que escondia uns dentes caninos mais desenvolvidos que o normal. Ele resolveu responder-lhe porque ela, de lábio superior arrepanhado, estava a mostrar-lhe os dentes.
- Tu não trazias nenhum diamante quando eu te apanhei, na aldeia.
A explicação dele irritou-a ainda mais e mostrou-lhe os dentes todos, pingando saliva como uma besta feroz. Uma criatura bela mas perigosa e ele estava completamente à sua mercê naquela posição confrangedora.
Recordou-se, de repente, do que vira no seu sonho. O brilho nas mãos dela, mais ofuscante que o sol. Entendera que fora um aviso para o ataque energético com que ela o quisera atacar, mas agora compreendia que podia ser o diamante que ela procurava.
Os pés dela calcaram-lhe os braços com mais força, ele susteve um gemido. Aquilo estava a doer-lhe. Mas como podia uma criatura com o aspeto dela ter força suficiente para magoá-lo?
- Estás a enganar-me. Vou matar-te!
A ameaça não o amedrontou. Ele fez questão de lho demonstrar dizendo:
- Podes matar-me à vontade e revistar esta cabana depois. Não encontrarás o teu diamante. Ou podes revistar a cabana sem me matar, deixo-te fazer isso e continuarás a não encontrar o teu diamante.
- Escondeste-o noutro lugar, depois de mo roubares.
- Eu não te fiz nada.
- Não? Tenho as roupas rasgadas.
- Tive de as rasgar para tratar dos teus ferimentos.
- E quem te disse que eu precisava da tua ajuda?
- O homem que te resgatou não soube tratar de ti.
- Tu podias tê-lo feito e não o fizeste. Porque é que foste atrás de mim?
Uma constatação interessante e ele vacilou por um segundo. Mas rodeou a questão atirando num tom seguro:
- Pensei que tivesses sido tu a chamar-me.
Ela mostrou-lhe outra vez os dentes.
- Posso matar-te sem qualquer esforço, humano patético.
- Não me ofendas a chamar-me de humano. Sou apenas parcialmente humano, há uma grande parte de mim que é artificial.
- Continuas a não me impressionar.
Ajeitou-se em cima dele, que começou a entrar em pânico. Dor nos braços e desejo nas virilhas. Escondeu o que estava a sentir, mas o corpo atraiçoou-o e a criatura sorriu desdenhosa. Ela endireitou as costas, cruzou os braços e disse:
- Olha para ti, humano desprezível, a reagires assim à minha presença. Mesmo com uma grande parte de ti artificial, existem partes que funcionam exatamente igual à dos humanos normais, patéticos, frágeis e convencidos.
- Esta não é uma posição muito ortodoxa para conversarmos.
- Nós não estamos a conversar.
- Pelo que me disseste, precisas recuperar um diamante. Eu posso ajudar-te.
- Não preciso da tua ajuda.
- Nem sabes a sorte que tens por estares aqui.
- Em cima de ti, a ver-te reagir como um simples animal com o cio?
- Eu não costumo ajudar ninguém. Não gosto... desse tipo de favores. Percebes? Por isso, não te ajudei na floresta, quando te encontrei. Mas tu criaste comigo... como posso dizer isto? Uma ligação? Tu deves saber por que o fizeste. Se me escolheste, por alguma razão que, parece-me, até tu própria desconheces, então deves levar a escolha até às últimas consequências.
Ela rosnava baixinho, enquanto ponderava o que havia escutado. Ele aguardou, querendo parecer impassível, mas o desejo estava a alastrar-se depressa pela corrente sanguínea e começava a tornar-se insuportável ter aquela criatura linda e selvagem em cima do seu ponto fraco.
Durante um breve pestanejar, ela saiu de cima dele. Ele sentou-se, esfregando levemente os músculos dos braços doridos. Respirou fundo. O desejo arrefecia, aos poucos, restaurando-lhe a dignidade. Levou os dedos à face esquerda, limpando o sangue que coagulara. Tinha de tratar daquilo, não queria ficar com uma cicatriz por causa de um estúpido descuido.
- O que é que propões?
Olhou-a. Sentava-se sobre os calcanhares, voltada de costas para ele. Continuava de braços cruzados, cabelos despenteados, esguia e perigosa, descalça também, o vestido rasgado mostrando porções de pele branca e de ligaduras.
- Voltar à aldeia e interpelar o Bode.
Percebeu pelo leve estremecimento que ela não o percebeu.
- É o nome do homem que te resgatou da floresta – explicou-lhe – e cuja casa destruíste. Se existia um diamante, o Bode sabe de certeza o que foi feito dele.
- Claro que existia um diamante... – resmungou ela.
- Por que é explodiste com a casa do teu salvador? Atacaste-o, como o fizeste a mim? Costumas atacar qualquer um que se atravesse no teu caminho?
Ela pôs-se de pé com agilidade.
- Concordo. Vamos voltar à aldeia – disse, ainda de costas voltadas, esquivando-se às respostas. – Mas antes quero tomar banho.
Ele também se pôs de pé e indicou-lhe a casa de banho com o dedo.
- Está bem. E eu vou terminar de preparar a refeição.
Olhou para a mesa destruída, encolheu os ombros.
- Vamos ter de comer na bancada...
Ela já não o ouviu, pois já tinha entrado na casa de banho e ligado a água do duche. Rápida e silenciosa como uma serpente, igualmente perigosa pensou ele, permitindo-se franzir uma sobrancelha de genuína inquietação agora que não estava a ser observado.
Retornou aos afazeres iniciais com uma diligência exemplar, preparando os ingredientes e cozinhando, sem que se lhe pudesse apontar uma falha. Os acontecimentos anteriores não o incomodavam, uma vez passados e processados como pouco importantes, à exceção daquele dado novo: o diamante. A luz que ela guardava entre as mãos e que era capaz de iluminar o cenário mais negro, a dimensão mais sombria. Começou a pensar que tamanho teria essa pedra preciosa e se não fora esse o motivo principal que levara o pastor de cabras a salvar aquela estranha criatura que, apesar de bela, emitia um aviso de perigo impossível de ignorar, até para um néscio aldeão.
Sentiu-se observado e voltou-se.
O coração disparou e abriu a boca. Emoldurada pela porta da casa de banho, a criatura estava completamente nua a olhar para ele, mãos nas ancas, a perna direita colocada ligeiramente à frente da esquerda. Era ainda mais bela do que podia ter imaginado, um corpo imaculado, liso, curvilíneo. Tinha desmanchado as tranças e as longas madeixas onduladas de cabelo dourado tapavam-lhe os seios, revelando, no entanto, a sua forma perfeita, cheia, firme.
- O meu vestido está rasgado. Arranja-me outras roupas.
A voz dela vibrou-lhe na cabeça. Ele gaguejou:
- Eu não tenho... vestidos.
- Mas tens outra roupa para além dessa que usas, não?
Fez que sim com a cabeça.
A pausa foi demasiado longa, mas ele não conseguia deixar de contemplar aquela visão de pura beleza.
- Então, humano patético? Mexe-te! Não vou comer a tua refeição nua e certamente que não irei à aldeia nua.
Ele retirou do baú um par de calças de ganga, uma camisa de feltro vermelha e um par de meias grossas. Ela recebeu a roupa e começou a vestir-se, com gestos delicados, tão sensuais que ele corou despudoradamente.
- Continuas a portar-te como um animal na minha presença. Tenho de te ensinar maneiras, humano patético.
Não gostou do comentário. Regressou à bancada, serviu-se de arroz e de carne seca, encheu duas chávenas de chá e disse, sem encará-la:
- Tens aí chá. Serve-te do que quiseres.
Mas era a verdade, ela conseguia perturbá-lo e quebrar-lhe a máscara de indiferença que ele usava constantemente. Nem tentou perceber-lhe o ki, agora que a tinha desperta ao lado dele, temendo encontrar novamente o ki da corça que lhe tinha escapado.
Quando ela se juntou a ele já tinha o cabelo novamente arranjado, com tranças bem apertadas. A roupa dele assentava-lhe bem, emprestando-lhe um aspeto rústico mas elegante. As botas peludas que calçava condiziam com o conjunto. Lembrou-se, assim do nada, da irmã. Ela agarrou na chávena de chá e foi sentar-se numa das cadeiras, junto aos destroços da mesa. Pelos vistos, não queria comer nada, pensou ele, e nem queria a companhia dele. Ainda bem. Não suportaria outro deslize estúpido do seu corpo pleno de defeitos humanos e suportaria ainda menos outra observação ácida da parte dela.
Engoliu a comida depressa e estava preparado para regressar à aldeia, desta feita com a criatura ao lado. Ela bebericava o chá com um ar pensativo, perdido, quase humano. De vez em quando também fingia, como ele, que pertencia àquele mundo de humanos patéticos, como ela muito bem os descrevera. Descobriu-o a mirá-la e levantou os olhos da bebida quente.
Ele apertou os dentes. Os olhos dourados dela eram quase sinceros.
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