III - Procura
"Wondering if I'll stay young and restless.
Living this way I stress less.
I want to pull away when the dream dies."
Nelly Furtado, All Good Things (Come To An End)
Na aldeia do vale próximo havia uma taberna que servia refeições quentes, bebidas retemperadoras e dois dedos de conversa. Era frequentada sobretudo pelos aldeões, mas também apareciam por lá turistas em excursões de verão, viajantes ocasionais que procuravam aquelas montanhas para caminhadas pelos trilhos florestais e camionistas que transportavam as mercadorias pela autoestrada que passava na orla da cadeia montanhosa. Era um lugar animado, quente e acolhedor, com um ambiente familiar que agradava à clientela.
Ele abriu a porta e escutou o habitual tilintar do sino que estava pregado nesta. Um aviso sonoro de mais um cliente, que tanto servia para alertar a dona do estabelecimento como quem já se encontrava lá dentro. Havia sempre um ou outro olhar indiscreto que avaliava com atenção quem chegava.
Sentou-se ao balcão e pediu uma caneca de cerveja preta morna e uma dose de guisado de coelho-bravo. Quando não cozinhava na cabana e os dias em que cozinhava eram raros, vinha comer a sua refeição quente na taberna da aldeia. Uma única refeição por dia, sempre àquela hora, um pouco antes das onze da manhã. Nunca ninguém lhe estranhou o hábito ou lhe fizeram perguntas indiscretas. Tinham-no como um caçador eremita da cabana, reservado mas amistoso e descontando o olhar escrutinador dos venerados anciãos da aldeia, nunca o incomodaram para lá daquilo que ele considerava insuportável. E os limites dele não eram muito alargados.
Outro dos pontos fortes da taberna era a comida que serviam, sempre divinamente bem temperada e cozinhada no ponto. Os guisados de caça eram a especialidade e ele apreciava muito o de coelho-bravo. Pedia-o sempre e quando não havia, franzia a boca de uma maneira que fazia assustar o empregado que o atendia, que corria a chamar a dona que lhe sorria em resposta, às vezes, quando estava numa de ser mais ousada, agarrava-lhe na mão que ele tinha pousada no balcão e explicava-lhe com brandura o que tinha na ementa para o dia. E ele fingia que aceitava a explicação por causa da atenção extraordinária.
O interior da taberna era sombrio, num tom alaranjado conferido pela lareira que estava permanentemente acesa, quer fosse inverno ou verão. Apesar de haver luz elétrica na aldeia e em alguns pontos das montanhas, como na clareira remota onde se situava a sua cabana, a iluminação interior da taberna era feita com recurso a candelabros onde ardiam milhentas velas. Mas isso fazia parte do encanto do lugar, tornando-o calorosa, transmitindo a todos aqueles que a frequentavam uma sensação agradável de conforto e de refúgio.
Por isso, ele fora até à taberna depois de ter regressado da floresta, não apenas para o costumeiro guisado de coelho-bravo, mas também para sentir alívio de uma noite mal dormida e daquele pressentimento que persistia no seu peito, uma dor como se o tivessem socado no esterno.
Bebeu um gole de cerveja e quando o líquido lhe assentou no estômago, aqueceu-o e fê-lo distender os músculos, num relaxamento que lhe acalmou a irritação daquela manhã.
Ele não era dado a instintos, nem a premonições. Não se deixava influenciar por superstições ou pelas lendas locais, criadas para explicar temores antigos. E havia muito disso naquelas montanhas, que eram mortalmente perigosas de inverno e inclementes no verão, povoadas de animais perigosos para os humanos que as tinham escolhido como lar, onde sobreviver era sinónimo de ser o mais forte. Mas alguma coisa lhe alfinetava o raciocínio sempre que pensava nos eventos do dia anterior e, em sequência, da noite passada. Como se um pormenor importantíssimo se lhe tivesse escapado e ele fora incauto ao ponto de não se ter apercebido de tal no momento correto. Agora, o momento tinha passado, ele deixara-o passar, e estava a perder terreno para um inimigo invisível que ele não conseguia alcançar. E ele tinha de conseguir recuperar o que perdera, se queria suplantar o desafio proposto pelo inimigo. E, em última análise, derrotar esse inimigo.
Tinha de encontrar a estranha criatura ferida.
- Oi, bonitão...
Moveu os olhos do prato para o que se postava diante dele, sem mover a cabeça, pelo que ficou a olhar de baixo para cima. A dona da taberna interpelava-o.
- É o teu guisado preferido. O que é que se passa? Temos menos fome, hoje?
A mulher era roliça, ombros largos, uns seios generosos como dois melões firmes, tão grandes que era um mistério não se vergar ao peso destes e cair para a frente sempre que caminhava. Mas era desenvolta a caminhar, pelo que o peso dos seios devia ser compensado por uma coluna vertebral robusta ou um qualquer truque de equilibrismo desconhecido para ele. A cara da mulher era redonda, afável, constantemente sorridente, maçãs do rosto salientes e muito coradas, olhos pequenos e brilhantes, o cabelo aloirado apanhado num carrapito amarrotado, orelhas também pequenas e tão vermelhas como as maçãs do rosto, enfeitadas com duas esferas de ouro como brincos.
Ele fungou, apático, sem demonstrar qualquer tipo de reação à observação espirituosa. A dona da taberna assentou os braços no balcão, os seios vieram atrás, quase a saltarem para fora do decote daqueles vestidos desengraçados que ela usava e ele ficou a cismar com aquela linha cor-de-rosa que separava a alvura do seio esquerdo da do seio direito. Era impossível não cismar com aqueles melões firmes. O tom dela era em jeito de confidência:
- O que é que se passa, bonitão? Estás apaixonado?... Hein? Não me digas que uma menina marota te roubou o coração? Olha que já estou cheia de ciúmes.
- Sabes se encontraram alguém ferido na floresta?
A pergunta foi no sentido contrário ao interesse da mulher, pelo que ela endireitou as costas e os melões firmes recolheram-se para dentro do decote do vestido desengraçado, escapando às conjeturas momentâneas da parte lasciva da mente dele.
- O quê? Nestes últimos dias? – Indagou a mulher pensativa, torcendo a boca numa careta.
- Entre ontem e hoje.
- Hum... Não ouvi contar nada. Porquê? O que é que sabes?
Fixou-lhe um olhar gelado e a careta da mulher desfez-se.
- Pensava que era aqui que se sabia tudo.
O instante de tensão foi curto. A mulher estava habituada a qualquer tipo de resposta, a qualquer espécie de cliente, a desenvencilhar-se de qualquer sorte de sarilho. Era uma das sobreviventes daquelas montanhas. Sorriu-lhe e piscou-lhe o olho.
- Oh, bonitão. E sabe-se mesmo tudo na minha taberna. E se não ouvi dizer nada sobre o salvamento de alguém ferido, é porque não aconteceu.
- Hum...
- Agora, vais comer o meu guisado, porque pareces-me pálido. Ainda mais pálido do que costumas ser, bonitão.
Uma segunda piscadela de olho e deu meia volta, vociferando para um homem que acabava de entrar e que era um parente seu, acolhendo-o na sua casa daquela forma tão imprópria.
Ele bebeu outro gole de cerveja. Devagar, a assimilar a resposta da mulher lentamente no cérebro que se enchia de pequenas dúvidas, subtis, como pequenos mosquitos a se reunirem para um ataque a um mamífero de grande porte. Agarrou na colher de madeira, ajeitou o prato do guisado na bancada, rodando-o, a escolher o melhor ângulo para atacar aquela delícia gastronómica e começar, finalmente, a comer.
Encheu a colher de uma pequena porção, meteu-a na boca.
Começou a elencar as dúvidas, enquanto mastigava.
O ki da corça – por que razão era tão esquivo e como conseguia um animal fazê-lo aparecer e desaparecer?
Novamente, o ki da corça – por que razão sentira-o quando vira a criatura?
A criatura – por que é que estava ferida? E por que é que ele estava naquele local, como se alguma força o tivesse empurrado para ali, para que fosse ele a encontrá-la?
E se a criatura tinha desaparecido e se ninguém daquelas montanhas a tinha encontrado, então tudo levava a crer que ela tinha despertado e ido embora pelo próprio pé. Provavelmente, não estaria assim tão ferida.
E que tipo de influência o seu encontro com a criatura tinha tido nele próprio, para que o tivesse feito rebolar-se inquieto na cama, uma noite inteira?
E por que razão sentira o desejo imperioso de regressar ao local onde vira a criatura?
E mesmo que ela tivesse ido embora pelo próprio pé, estava ferida e, por isso, não andaria longe. E ele poderia encontrá-la, sentindo-lhe o ki? Todas as criaturas vivas emitem ki e não lhe era difícil pressentir as auras de cada uma, distingui-las e marcá-las. E ele conseguiria fazer isso, encontrar a criatura se seguisse o ki da corça?
Terminou o guisado. Depositou a colher, empurrou o prato ligeiramente e agarrou na caneca de cerveja. Pelo canto do olho descobriu, à sua direita, na parede por cima da janela redonda dos vidros embaciados – aliás, todos os vidros das janelas da taberna estava embaciados – a cabeça empalhada de uma corça macho que fitava o vazio com uns olhos mortiços. Sentiu um arrepio e ficou incomodado. Bebeu o resto da cerveja de uma assentada e pousou a caneca com um baque. Olhou intrigado para a cabeça empalhada, à espera que esta abrisse a boca, de repente, que os olhos cobrassem vida e que desatasse a responder a todas as suas dúvidas. Devia lá estar desde sempre, a taberna estava toda decorada com motivos alusivos à caça e à vida nas montanhas, mas só agora lhe prendera a atenção.
E saberia aquela triste cabeça empalhada o que lhe matraqueava o cérebro, para que fosse capaz de lhe responder?
O ruído ensurdecedor que enchia habitualmente a taberna calou-se subitamente quando se escutou, vindo do exterior, o som inconfundível de uma explosão. A dona levou as mãos ao ar e lançou um grito histérico:
- Mas o que foi isto, senhores?
Ele deu um salto do banco, antes deixando algumas moedas no balcão, ao lado do prato e da caneca vazia, retiradas do bolso do casacão e que pagava a comida e a bebida. Seguiu a trupe que saía aos encontrões da taberna para ver o que é que se passava lá fora, suficientemente afastado para escapar daquela excitação. Era raro acontecer alguma coisa naquela aldeia, pelo que qualquer evento invulgar era motivo de ajuntamento e de falatório. Enfiou as mãos nos bolsos das calças de ganga, indiferente ao que estaria a suceder, com um certo ar de fastio no rosto pálido, porque ele, definitivamente, não era um humano qualquer.
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