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Capítulo 94

Meu ouvido não havia ficado cego. Dava para ouvir os estrondos mágicos que ressoavam da luta de Barão e meu irmão. Por sorte, ou desejo, a briga não atrapalhava minha meditação. Aos poucos, corpo e alma relaxavam numa imersão a outro plano. Me sentia materializada num mundo que não era meu. Onde a vida flutuava na água calma de um oceano vasto.

Abri os olhos. A sensação era real. Estava banhada na água clara. O céu límpido expelia bondade no ambiente. "Paz, finalmente..." sorri, aliviada. Fechei os olhos novamente.

— Sempre olhando para o lugar errado. — a voz de uma entidade abarcou meus pensamentos.

Ergui as pálpebras rapidamente. Desesperada. O céu havia ficado vermelho, entupido de sangue que despojou da lua preta. Quando olhei para os lados, a água havia se tornado sangue que nascia da pilha de corpos. Pessoas e Slaafs, não importava, o sangue deles se misturava na poça que me banhava.

— V-você é Vehuiah? — olhei para o canto direito, pois percebi a presença da criatura.

O celestial estava sentado num trono de ossos. Equipado de uma armadura enferrujada e suja com placas de sangue antigas. Tinha uma coloração parda, e o corpo ósseo. Um soldado que não passava a sensação de força ou fartura, pois o corpo era um aspecto nítido da fome. Na mão direita regia uma lança verde. A mesma lança que ele permitia eu utilizar em meus combates.

Olhá-lo era como encarar o ódio. "Não consigo encará-lo por muito tempo." Desviei o olhar.

— A primeira vez que veio à minha casa, encontrou outro celestial. — bateu a lança na água. — Ele reside nessa lança. Foi ele que te ensinou essa técnica mágica. Tornar a si mesmo numa arma. — Baixinho, Vehuiah começou a rir. — Que interessante.

— Esses corpos... — olhei para o redor, me ergui na água. Ela era profunda, ao mesmo tempo que rasa. — São todos que você matou?

— Não. São os corpos que você trouxe para cá.

Me espantei. Eu havia matado tanta gente? Quando olhava com detalhe podia ver. Haviam alguns Slaafs, mas a maioria era de policiais e inocentes.

— E-eu matei tantos? — minha moral desabou.

— Eu não disse que você os matou. Disse que os trouxe para cá. — Me corrigiu. — Em guerra, acreditamos que as mortes que saíram do nosso controle são nossa culpa também. — Me encarou. — Esse é o peso que tua magia tem carregado a cada movimento que você faz. Uma magia que tem carregado almas por culpa, não é digno de ser chamada de magia.

Abaixei a cabeça, triste, algo que não ocorria há tempos. Era a verdade que eu escondia de todos. O trauma dessa carnificina que começou na missão da Candelária. Proteger as pessoas? Eu nunca protegi ninguém. De lá para cá eu trouxe caos e destruição para todos os ambientes que eu pisei.

— Todos são culpa minha. — sussurrei.

— Mortes são consequências das atrocidades. Foi você a atrocidade? A guerra? O ódio?

Isso não. Isso nunca! Balancei a cabeça em negação. Foi a primeira vez que consegui olhá-lo sem medo. Sentia uma mana estranha vincular entre nós dois.

— Por que veio até mim? — perguntou. — Até nós... — Observou a lança.

— E-eu não sei... Não sei mais...

— Você sentiu prazer em algumas mortes? — cogitou. — Riu em algumas batalhas e se sentiu feliz com a dor das feridas? Dá para ver que está mentindo para mim.

— Sim. — afirmei com a cabeça. — Eu queria... mais... poder.

— HAHAHAHAHAHA! — A risada dele ecoou pelo infinito. — O teu rosto não engana ninguém menina. Você quer continuar na guerra, no caos.

— EU QUERO MATAR O FILHO DA PUTA QUE COMEÇOU TUDO ISSO!

— ISSO, CARALHO! SEJA VERDADEIRA COMIGO! VOCÊ QUER DESTRUIR TUDO!

— EU QUERO ACABAR COM TODOS! — respirei fundo. — Pois só assim serei capaz de proteger essa cidade. Onde estão as pessoas que me protegem até aqui. — Pensei em Gael e Luana.

— Para isso precisa parar de tomar cada corpo como um peso. As pessoas morrem, mas não foi você que iniciou a guerra. — Ele inclinou a cabeça para mim. — Mas será você que irá acabar com ela.

Ódio e caos se realinharam no meu semblante. Os sentimentos ruins e bons começaram a se complementar, e compreender o meu processo. Era como se eu estivesse me libertando da culpa. Os corpos das pilhagens começaram a sumir como poeira. Voavam no sussurro dos ventos. Tomavam paz em seus respectivos destinos. A água clareava e a lua voltava a se pratear. Os céus não eram mais uma pintura do horror. Nem o trono de Vehuiah, que agora se assemelhava a uma assento de rei.

— Eu sou arcaico, criança. Mesmo um Slaaf, ou celestial, como me chama, sempre matei Slaafs. Por prazer... — pausou. — O mesmo que você sente quando enfrenta um inimigo que pode te matar. Se aceitar-me como magia, posso te mostrar seu real poder. Mas logo te lembro de um único aviso.

— Qual?

— O ódio é o caminho que o homem escolhe, quando não suporta mais a tristeza.

Estendi a mão. — Então me dê seu ódio. — O encarei. — Me dê o Caos.

Eu vou destruir tudo. 

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