Capítulo 3
— Logo, se eu questionar a vocês: Quais foram as consequências após a Segunda Guerra Mundial? — olhei para meus alunos. Crianças ansiosas pelo aprendizado, mesmo que nada animadas para estudarem no sábado.
— Mortes? — Matheus fez piada. Ele sempre era o palhaço da turma quando podia. Desgostei da resposta. Ele teve de me encarar enquanto ia até sua mesa para ouvir de maneira adequada.
— Matheus. — virei-me a todos, mas ainda próximo a vossa carteira — Todos vocês, que riram da graça dele. — Aumentei o tom, tendo as atenções voltadas às minhas palavras — Não sou capaz de dar-lhes um colégio de qualidade dentro de nossa favela, e peço perdão por isto. É por este motivo que estão aqui, estudando no preparatório para conseguirem competir com alunos da Zona Sul, que possuem condições superiores às de todos vocês! — Olhei outra vez para o piadista — Descontrair nas aulas é sempre bom, mas quando inibe sua capacidade de evolução, lhe fará perder para si próprio. E você é melhor do que isto, Matheus.
— D-Desculpa professor Ivan. — ele ficou cabisbaixo, e me senti cruel pela tristeza em vosso semblante. — P-Pacto de Varsóvia? — A resposta me concedeu um sorriso astuto.
— Você será um grande homem. — Baguncei o cabelo dele. — Mais alguém!?
As crianças, afoitas para continuarem a responder, levantaram os braços. O sinal tocou justo para finalizar nossa última aula. Um entristecer ressoou em vossos gemidos chateados e altos. Só que não foi condizente com a velocidade que saíram das carteiras para retornarem para casa.
Outro sábado de aula, num violento calor de 30°. O abafado era descrito nas marcas molhadas de suor na camisa azul. Por sorte os ventos batem nos pelos das pernas por conta da bermuda. Coloquei pastas e livros na mochila e, como sempre, fui o último a sair da sala.
No exterior da associação de moradores da Vila do João a feira estava armada. Vendedores locais berravam para barganhar legumes, roupas e pastéis para atrair o grande número de favelados que passeavam na frente das barracas. O clima é solícito e amigável, além da bagunça visual. Era-me tão gostoso de olhar. Impossível de não sorrir contemplando a paisagem.
"Como eu amo esse lugar."
— Vai um pastel aí, professor Ivan!? — O pasteleiro me gritou, junto a ele, o bramido grave da máquina de fazer caldo de cana. — Ou aquele bolinho de carne de sempre?
— Seu Carlos... — Ri a ele. Gesticulei de braços abertos. — Um bolinho e um caldo de cana. Pago mais tarde, tudo bem?
— Vou cobrar o dobro, hein! — ele me encheu o copo de caldo, e me deu o bolinho quente.
O safado preparava já sabendo meu horário de saída. Assim ficava irrecusável.
Evitei passar pela multidão. Preferi a rua de trás, onde o movimento era quase nulo. Queria conseguir ouvir meus pensamentos antes de chegar a casa. As crianças brincavam nas ruas sem medo da violência ou operações policiais. Nas esquinas o tráfico era nulo. Nenhuma boca ou segurança local.
Eu era o único mal na comunidade.
"É tão bom ver a segurança desta favela..."
Ao chegar em casa larguei a mochila no sofá. Petúnia, a gata gorda, me recebeu com miados altos. A fiz carinho. Acreditei que fosse o que ela queria. Enganado estava. Ela só queria que seu dono colocasse mais ração no pote.
— Agora não Petúnia. Você está de regime. A Dandara colocou o bastante para ti. — Só ouvi mais miados, como se brigasse comigo na própria língua.
Gatos, de fato, creem na superioridade deles.
Coloquei um pouco só de ração. Dandara... Hoje ela iria fazer um trabalho em grupo da faculdade. À noite planejei buscá-la, pois a volta da UFRJ não costuma ser tão agradável. O tempo de sábado passou enquanto continuei a concluir os afazeres. Faxinei a casa. Brinquei com a Petúnia. Conclui o livro Pedagogia da Esperança. Treinei magia através da meditação.
Coisas em geral. Curtas, mas que com calma deliberaram a tarde até a chegada do entardecer. O pôr do sol no horizonte de morros distantes era belo. Remetia ao término de mais um dia agradável. A penumbra das nuvens alaranjadas que cedia espaço para iluminação das casas. Las Vegas não é nada comparada a favela do final de semana.
Troquei de roupa. Calça moletom inclusive. Estava esfriando. Se caminhasse devagar conseguiria chegar ao fundão com calma, e não adiantar Dandara para retornarmos para Vila.
As ruas largas e bares acesos não entorpecem mais minha cabeça de pensamentos felizes. Quais tive antes do pôr do sol.
"Dou aula para quarenta crianças. Provavelmente cinco cursaram a faculdade. As demais farão a oportunidade de conhecimento perecer no ensino médio."
"Algumas, se saírem desta favela, vão para o tráfico."
Sem me dar conta. Perdido nos planos estava no Fundão. O campus educacional ficava demasiado escuro quando era noite. Desértico e desolador. Como se não houvesse alunos, funcionários públicos, ninguém.
Ouvi gritos. Femininos. Não pareciam pedir ajuda, mas com convicção brigavam por algo. A voz não me era estranha. Só poderia ser de Dandara. Vinha do matagal cercado por árvores tortuosas de galhos grossos e folhas vívidas. No escuro da lua não eram belas. Simulavam uma visão de terror onde a crueldade do homem só conseguia ser vislumbrada pelo silêncio da natureza.
Corri. Até chegar próximo a briga. Quando próximo diminui a velocidade, para que não me percebessem. Fui furtivo. Escondi o torso atrás de uma árvore.
A sirene da viatura iluminava o local onde os estudantes estavam sendo revistados. Dandara brigava com os dois policiais a berros enquanto os outros dois estudantes foram algemados e petrificaram em cima do capô do veículo. A amiga deles chorava. Pelo visto, a revista não os agradava.
— Cala a boca piranha! Ou quer ser levada por causa do baseado? — o policial empurrou Dandara com a mão. Ela deu dois passos para trás. Quase caiu.
— Você está assediando ela! — Ela não recuava, pelo contrário.
O cachorro de farda levantou a parte oposta da mão até o superior da nuca. Pronto para descê-la com violência no rosto de Dandara.
— Toque-a. — Sai das sombras, com a fúria embebida nos olhos — E morrerá antes de perder a consciência.
— Quem-
Não o permiti continua a frase. Os músculos do rosto ainda se mexiam. Tentavam buscar justificativa para compreender o motivo de não conseguir falar. Eu puxei o cabelo dele, e direcionei a cabeça — agora em minhas mãos — para que pudesse ver o corpo cair inconsciente.
Decepado.
O parceiro de equipe faltava derreter pelo suor. A face trazia-me o pânico comum nos homens que opunham-se às minhas ordens. Ele estava sozinho. Notou a cabeça do colega ter espasmos musculares por alguns segundos antes de perder a consciência por completo.
— V-v-você é... você é! — temeroso pela própria vida. Mal conseguia gesticular uma frase.
Patético.
— Ivan. — Caminhei até o policial. O homem estava paralisado, sem armas, era um mago sem sombra de dúvidas. Mas quem disse que conseguia usar magia?
Desesperado recobrou a consciência do momento. A mão esquerda dele vinha em direção ao meu rosto. Um ataque direto. Ela brilhava num roxo neon.
Defendi o golpe. Usei do punho para evitar que tocasse o rosto.
Ele continuava a forçar o soco, como se fosse um último recurso. A magia drenava a luz das sirenes, e do farol da viatura. O soco ficou mais brilhante, quase ofuscante.
— O que um demônio como você está fazendo aqui!? Protegendo estudantes como estes!? — A pergunta me insultou, admito.
— Protegendo de anjos como você.
Atravessei o braço no peito dele. O coração pulsava dele ainda batia em meus dedos, como se rejeitasse o aperto das unhas contra o músculo delicado. O tecido me sujava de sangue, porém era nítido no olhar. Meu sorriso não escondia. Divertia-me com a cena.
Ele cedeu a oportunidade para a morte, sem contestação.
Fui até os amigos de Dandara. Concentrei energia mágica nos pulsos e destrocei o metal das algemas, os libertando. Eles me agradeceram, assim como a menina quase assediada. "Quem diria... um bandido caçado pelo Estado. Recebe agradecimentos dos estudantes por serem salvos das garras do Estado."
— Eu conseguiria cuidar da situação. — Dandara bufou. Era claro que havia ficado indignada.
— Universidade é um ambiente de lutas teóricas, práticas, mas não com violência. — retruquei.
O pouco de luz que restou no farol mirava naqueles olhos redondos e julgadores. Dandara parecia querer me matar atrás dos cílios brancos.
— Deixa teu pai cuidar de ti enquanto está vivo. — sorri. Ela odiava ser mimada na frente dos outros — Vamos para casa.
Ela se despediu dos colegas. Pela forma que tudo ocorreu, eles apenas iam fugir. O assassinato, por conta de a Universidade ser próxima da Vila do João, ia cair sob mim. Não tinha importância. Os cães de farda tinham medo de vir atrás da minha cabeça.
Dandara me atravessou em passos longos. Bufava como um touro zangado.
— Quero comer lanche essa noite. — Essa era a forma dela dizer que eu precisava me desculpar.
Não contive os risos.
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