9 - Temos um acordo
Angel acordou. Nem percebeu que pela primeira vez não sentiu a tristeza que a acompanhava em cada despertar. Sua atenção voltou-se totalmente para o rapaz que dormia ao seu lado, com um braço carinhosamente passado sobre seus ombros.
Surpresa com a situação, ficou parada admirando a face morena próxima a sua, seus narizes quase se tocando. Estavam na penumbra, mas era possível, graças a luz do abajur ao lado, observar como ele era lindo, mas de uma forma diferente de quando estava acordado. Angel notou os cílios longos e negros como asas de um corvo que tocavam as bochechas e as mechas dos cabelos sedosos que se espalhavam pela testa. A boca, geralmente apertada em uma linha reta de seriedade, agora estava levemente erguida nos cantos, como se Alexis estivesse satisfeito com algo. Era isso que o fazia parecer diferente, Angel reparou, ele exibia uma expressão feliz. Só então a garota se deu conta de que, assim como ela, Alexis provavelmente não tinha muitas alegrias em sua vida.
Absorta em seus pensamentos, Angel continuou a olhar o Príncipe adormecido, até que os olhos dele foram se abrindo lentamente. Nenhum dos dois mexeu um centímetro sequer durante algum tempo. Ficaram apenas passando os olhos um pelo rosto do outro, sem pressa. O que era aquilo que os ligava daquela forma? E aquela estranha sensação de reconhecimento que sentiam, como se já tivessem estado juntos, tão próximos daquela maneira, em algum momento de suas vidas?
― Por que estamos aqui, desse jeito? – finalmente Angel perguntou baixinho.
― Eu não ia deixá-la sozinha naquela sala – respondeu ele, ainda sem se mexer, sentado no chão, com a cabeça apoiada no sofá em que ela estava.
― Certo. Mas não era para estar deitada em uma das camas da Sala Médica, recebendo tratamento da adorável Enfermeira Feliz? - questionou sem conseguir desviar o olhar do intenso azul do rapaz.
Alexis ficou em silêncio por alguns instantes.
― Não queria ser visto pelos corredores com um roxo no queixo a carregando praticamente desmaiada nos braços. Essa sala era mais fácil de acessar sem sermos vistos.
― Mentiroso - acusou sem alterar o tom displicente que usava.
Ele não retrucou.
― E faz parte da sua estratégia de discrição estarmos juntos dessa forma? - Ela ergueu a sobrancelha.
― Não.
Uma resposta aparentemente simples, mas que Angel sabia, carregava uma enorme complexidade para a situação entre eles.
― Certo – disse quase num sussurro, semicerrando os olhos.
A garota começou a se erguer, quando Alexis a segurou pelo braço mantendo-a sentada.
― Por que não costuma ficar por muito tempo nos lugares? - ele perguntou sem perambulos.
Angel se recostou contra o sofá novamente. Alexis se moveu apenas o suficiente para ficar de frente para ela, que ficou em silêncio por um longo tempo antes de responder.
― Para irritar meu avô. Ele fica muito puto cada vez que recebe um comunicado de disciplina. Quando sou expulsa, então, acho que gostaria de me matar. – Angel riu e não acrescentou que ele provavelmente só não fazia isso porque bastava esperar a natureza seguir o seu curso e logo seu desejo se tornaria realidade.
Os dois voltaram a ficar em silêncio. Angel queria se chutar por ter dito tanto sobre si mesma, não era sua intenção, mas quando percebeu já estava desabafando. Mais um alerta sobre o efeito que o Príncipe tinha sobre suas emoções.
Alexis tocou seus cabelos, enrolando os fios platinados nos longos dedos morenos.
― Eu tenho uma proposta. – Ele puxou de leve os fios com os quais brincava a impedindo de falar. – Antes de qualquer decisão, pense nos benefícios que você teria com o que vou dizer. Consegue fazer isso?
Angel suspirou e virou a cabeça na direção dele, a balançando de forma positiva. Então Alexis começou:
― Posso ajudá-la a irritar seu avô. Imagine poder ser tão rebelde quanto quiser, recebendo uma quantidade admirável de advertências e, apesar disso, não ser expulsa. – Vendo que ela erguia uma sobrancelha indagadora, Alexis prosseguiu. – Sim, eu sei que ser expulsa é a cereja do bolo, mas tenho uma alternativa muito melhor. O quanto estaria disposta a tirar do sério o vovô Lancaster?
Angel riu, era divertido perceber o senso de humor estranho de Alexis.
― Estou sempre disposta a aprimorar a arte de fazê-lo sofrer.
― Mesmo que isso coloque toda a família Lancaster no mesmo pacote?
Dessa vez a garota arqueou as duas sobrancelhas muito interessada. Desforra sobre as pessoas que a ignoravam, maltratavam e a amaldiçoavam desde o seu nascimento?
― Agora estou realmente curiosa.
― Bem, posso garantir que cada deslize seu se torne motivo de comentários entre ilustres políticos e empresários. Todos falarão sobre as desgraças dos Lancasters, a forma imprópria com que a futura geração está sendo criada e todas essas coisas que os respeitáveis membros da nossa classe adoram criticar. E, creio que alguém tão preocupado com o bom nome da família, como é caso de George Lancaster, não vai achar divertido ter que esclarecer tais questões tão aborrecidas.
Angel o observou um tanto cética. O Príncipe sorriu com uma dose tão grande de confiança que ela quase cedeu a vontade de mandar ele enfiar tal proposta naquele lugar onde o sol não bate. Só que seria um enorme desperdício de oportunidade.
― Sabe, sinto como se a minha escolha fosse a clássica "pular da frigideira para o fogo" - por fim ela comentou.
― Nessa situação, a frigideira não possui a liberdade que o fogo promete.
Angel apenas ficou o encarando com seriedade.
― Está com medo? Estou surpreso. - Alexis a provocou.
Ela se ergueu do sofá e ficou em pé observando Alexis que permaneceu sentado no chão a observando. Angel não se iludiu, ele era esperto. Era apenas uma forma de garantir a ela uma falsa sensação de poder. "Veja, você é quem está no comando".
― Vamos supor que eu aceite essa tão generosa oferta. Como isso funcionaria? De que maneira isso afetaria minha discreta existência nessa escola?
― Não afetaria de nenhuma forma. Continuaria a frequentar somente as aulas que do seu interesse e no restante do tempo poderá fazer o que quiser. Como bolar planos mirabolantes para tirar o sono do seu avô. E melhor, poderá por em prática em qualquer momento que estiver com disposição para isso.
A garota olhou a noite pela janela e voltou a fitá-lo depois de algum tempo refletindo. Era melhor colocar todas as cartas na mesa.
― Vamos ser francos. Aquele beijo e, bem, tudo o mais que rolou entre nós lá naquela sala não foi totalmente planejado. – Ela olhou para um ponto qualquer no topo da cabeça dele, evitando seus olhos. - E não consigo deixar de pensar que em algum lugar nessa negociação existe uma expectativa para que esse tipo de coisa faça parte do acordo.
― Tem razão. Existe uma expectativa. – Angel não pode evitar a expressão de surpresa. – Mas, não estou propondo isso especificamente. Não estamos negociando o seu corpo. É mais o caso de se acontecer será porque nós dois tivemos vontade, não como uma recompensa por realizar os seus desejos.
Alexis a observou atentamente.
― Aliás, estou curioso. O que exatamente não foi planejado, o beijo ou o soco?
Angel deu alguns passos para o lado e inalou o ar.
― Isso é cheiro de macarrão? Meu Deus que fome!
Ela foi seguindo o aroma até um carrinho repleto de comida. Ele estava praticamente na entrada da porta, intocado.
― Caramba, um banquete!
Sem dar a mínima para o rapaz que continuava sentado aguardando por uma resposta, Angel ligou a luz mais próxima e pegou um prato. Após se servir de várias coisas se sentou no chão em frente a mesa de centro e começou a comer avidamente.
Alexis finalmente conformado com a situação, também se serviu e sentou-se em frente a garota.
Ainda que a fome fosse muito verdadeira e estivesse provando o paraíso em formato de frango, Angel não pode deixar de continuar a pensar na decisão que Alexis havia colocado em suas mãos. Seria, de fato, a melhor opção aceitar o que ele propunha? Fazer o que quisesse e de quebra esmagar o orgulho do seu adorável avô? Ela nunca poderia ter sonhado com algo assim. Tudo bem que na realidade ainda estaria a mercê de uma pessoa, mas seria alguém disposto a conceder coisas que ela sempre havia almejado. Como dizer não para isso?
E sendo muito franca, o beijo e o que aconteceu durante aqueles momentos acabaram por mudar um pouco as suas perspectivas. Angel ia morrer, isso era fato, quando, não sabia, mas todos os médicos foram unânimes quanto a ela não chegar muito longe, aliás era um milagre ter atingido a idade de vinte e dois anos. Angel já havia feito uma porrada de coisas malucas, mesmo sob o firme controle de George. Ainda assim, poucas vezes sentira realmente prazer com suas ações. Inevitavelmente era preenchida por um vazio que nublava boa parte de sua satisfação, voltada unicamente em irritar o avô.
E, ao analisar a proposta de Alexis, viu a possibilidade de fazer algo apenas para si. Depois do beijo que trocaram só conseguia pensar no que poderia acontecer se tivessem continuado. Por isso tinha dado um soco nele. Queria se impedir de fazer o que seu corpo gritava desesperadamente que fizesse. O tinha beijado como forma de punição por tantas palavras arrogantes, por agir como se fosse simples limpar a existência dela da sua vida, mas o ato foi muito além do que ela imaginava.
Assim, diante da nova situação, outras questões martelaram em sua cabeça. Ele havia dito que não descartava a possibilidade de repetir o que tinham compartilhado. E ela descobriu que era exatamente o que necessitava ouvir. Não ia desperdiçar a chance de provar algo, que pelo que pode perceber naqueles minutos de beijos e carícias, seria uma experiência pela qual ela certamente gostaria de passar antes de... Enfim. E não parecia nada mal cair fora daquela vidinha bem mais ou menos que ela levava, fazendo do seu avô uma piada entre seus colegas esnobes, e saciando vontades que despertava sua curiosidade com um príncipe árabe lindo de morrer, que era capaz de derretê-la apenas com o olhar. Não que ela fosse admitir isso a ele. Mas era isso, só se Angel já estivesse morta para recusar uma proposta dessas. Sexo, diversão e vingança?
― Eu topo.
Alexis que levava um copo com suco a boca, parou o gesto no ar.
― Mesmo?
― Sim. Imagino que tenha alguns limites que eu devo tomar o cuidado de não ultrapassar.
Ele pareceu realmente surpreso.
― Na verdade tem sim. Apenas um. – Alexis colocou o copo sobre a mesa e a encarou seriamente. – Nada de ações perigosas que possam por em risco principalmente a você mesma. Isso inclui armas, drogas e qualquer outra coisa semelhante que possa vir a pensar. – Ela fez que sim com a cabeça, parecendo meio entediada. – Se eu ouvir falar que foi vista em situação que se enquadre na categoria "perigosa", nosso acordo estará desfeito.
Angel bufou.
― Poxa, como poderei me divertir se conseguiu, em poucas palavras, acabar com as melhores opções da minha lista de "coisas legais para fazer na Alpha quando se tem um Príncipe todo poderoso para limpar a sua barra". Agora tenho que riscar "ser uma incendiária", "traficante de armas e drogas" e a minha favorita "a louca das facas". – Ela viu que ele continuava com a mesma expressão severa. – Certo, estou brincando. Sou criativa, posso pensar em outras coisas bacanas, talvez não tanto quanto as "proibidas", mas... – Alexis franziu as sobrancelhas. – Meu Deus! Eu não sou tão maluca assim, ok?
― Você já foi expulsa por porte de drogas e por um incidente com arma de fogo.
A garota se levantou bruscamente, derrubando os talheres. Em sua expressão não havia mais qualquer traço de descontração. Havia confusão. Raiva. E muita mágoa. Indo até onde a mochila estava começou a dizer palavras rápidas e desconexas:
― Não foi assim! Aquele velho cretino não queria merda alguma além de esconder tudo e só piorou as coisas! Eu nunca mexeria com isso! Por ela! Por ELA! Eu prometi! Aquele canalha não podia acreditar, não depois do que... – Angel pegou a mochila e foi em direção a porta. – Eu concordo com tudo. Aceito o acordo e farei do seu jeito. Mas eu tenho um único limite. Se você ultrapassar, mesmo que levemente, eu saio daqui na mesma hora. Do meu jeito. – Ela finalmente o encarou nos olhos e disse muito claramente: – Não se meta na minha vida. Nunca tente determinar, fora das suas regrinhas, o que devo ou não fazer. Não seja o meu avô.
Alexis a observou por algum tempo antes de responder:
― Nunca serei. - assegurou-a.
Sem dizer mais nada ela saiu da sala.
***
{Payre}
― Majestade, a filha do Rei Tack de Nagtar foi sequestrada pelos Meiruus.
Erak voltou-se para o informante que lhe trazia a má notícia. Apesar das implicações terríveis de tal relato, procurou manter sua compostura de frieza. Afinal, era isso que se esperava do soberano de Sylesth. Controle absoluto.
― Quando isso aconteceu?
― Há poucas horas. A informação nos foi passada pelo Duque de Horn.
― O que o Rei Oberoh fez até agora sobre isso? - Erak não podia acreditar em tanta má sorte, aquele Rei incompetente seria sem dúvida sua maldição. Não bastavam suas constantes discussões com o Duque de Horn, a segunda principal em poder do reino de Nagtar tinha sido levada, muito provavelmente pelos inimigos.
O Alicano hesitou, mas diante do olhar duro de seu Rei, disse em tom de desalento:
― Mandou uma tropa atrás dos sequestradores. Ele foi informado que a princesa Tarany está a caminho de Narty, provavelmente será negociada pelos Miruus com os Deiroons.
― Esses malditos Deiroons! – Erak bateu com o punho fechado na lateral do corpo, virando-se para as telas que exibiam as florestas ao redor do palácio. Não queria expor ao soldado a expressão de frustração que não foi capaz de controlar.
Essa era uma situação muito delicada, já tinha problemas constantes com os Duques de Nagtar, especialmente com o Duque de Horn. O sequestro da princesa só iria agravar ainda mais as coisas. Não podia arriscar perder aliados que seu pai havia levado séculos para conquistar. Seria uma desonra para a memória dele e poderia levá-los a derrota. Por mais que aquela aliança fosse problemática nos últimos tempos, seu maior desejo era a paz de Payre. E a paz só viria com a união de todos. E a extinção dos Deiroons.
― Chame os Duques e Duquesas do Reino. Enviarei Esan, o Duque de Huur e a Duquesa de Cahi para resgatar a princesa Oberoh.
O outro ficou absolutamente surpreso, tanto que não conseguiu conter suas palavras:
― Mas Majestade, são três dos guerreiros mais fortes do Reino! E Esan é um dos Guardiões!
O Rei olhou o homem com raiva. Seu temperamento explosivo despontando finalmente, reforçado pelas circunstâncias em que estava.
― Está questionando as minhas ordens?!
― C-claro que não, Majestade!
Erak deu-lhe as costas e se preparou para enfrentar um grupo de pessoas muito indignadas. Sabia que os governantes dos Ducados de Sylesth seriam totalmente contrários ao seu plano. Não achariam prudente arriscar a vida de três poderosos guerreiros, e importantes figuras naquela longa batalha, para resgatar uma princesa raptada. Em qualquer outra situação ele também acharia a ideia absurda, mas não era o caso. Se Khor conseguisse de alguma forma usar a filha do Rei Tack para conseguir vantagens naquela disputa, estariam em grandes problemas. Não que Erak duvidasse do ódio dos Oberohs pelos seus inimigos em comum, mas filhos, em Payre, eram muito sagrados para seus pais. Crianças não nasciam facilmente e desde a morte da Rainha, o Rei Tack, embora poderoso, como eram todos os governantes supremos dos Reinos, já não exercia suas funções como deveria. Talvez fosse mais por sua própria incompetência que tantos Oberohs vinham morrendo do que por astúcia dos inimigos. E isso era algo que o maldito Duque de Horn jamais admitiria.
Em meio a isso tudo, só lhe restava confiar na capacidade de seu primo e amigo, Esan, em trazer a princesa a salvo. Ou a tal paz estaria ainda mais distante de suas mãos.
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