Sons e Silêncios
MINHAS MÃOS ESTAVAM FIRMES NO VOLANTE, MAS POR DENTRO EU ERA SÓ ANSIEDADE. Após meses observando os comportamentos da Lorena, tinha finalmente criado coragem para levá-la a uma especialista. Como padrinho dela, eu me sentia na obrigação de fazer algo.
O acidente já fazia seis meses, aquela maldita noite que mudou tudo. Lorena perdeu parte das memórias e seus pais também. E eu perdi grandes amigos. Ela balançava as pernas inquietas no banco do carro, olhando pela janela. De repente, se virou para mim.
— Tio, tô com fome...
Olhei rapidinho para o relógio do painel.
— Lorena, a gente acabou de tomar café, mocinha.
— Mas tô com fome de novo! — ela insistiu, se debruçando um pouco para frente, com aqueles olhos grandes me encarando pelo retrovisor. Era aquela carinha, aquela mesma que sempre me derretia.
Dei uma risadinha, pensando numa solução. A consulta era em menos de meia hora, e ela sempre ficava mais tranquila quando tinha algo para esperar depois.
— Tá, que tal a gente fazer um trato? — sugeri, pegando uma curva suave. — Se você se comportar direitinho na consulta, a gente para pra tomar sorvete depois. Pode ser?
Os olhinhos dela brilharam na hora, e um sorriso enorme apareceu naquele rostinho pidão. Era incrível como a palavra "sorvete" tinha esse poder mágico de transformar qualquer situação.
— Promete? — ela perguntou, com aquele tom que era metade desafio, metade certeza de que eu diria sim.
— Prometo. Palavra de escoteiro. — Fiz até um gesto dramático com a mão, como se jurasse solenemente.
Ela arqueou uma sobrancelha, nada convencida, e caiu na risada.
— Tio, você nunca foi escoteiro.
— Como sabe? — brinquei, fingindo indignação. — Vai ver, eu era um escoteiro misterioso.
Ela riu ainda mais, balançando a cabeça.
— Claro, claro. Só que não, né?
Não resisti e entrei na onda dela, rindo junto. Era incrível como ela conseguia fazer tudo parecer tão simples e leve, mesmo quando meu mundo parecia virar de cabeça para baixo.
No consultório, a doutora Helena nos recebeu com um sorriso tranquilo. Diferente de outros médicos, ela não tentou forçar uma aproximação imediata com Lorena.
— Pode ficar com os fones, se quiser — ela disse para Lorena. — Só vamos conversar um pouco.
Lorena deu de ombros, quietinha. A médica não insistiu. Em vez disso, colocou alguns papéis e lápis coloridos na mesa.
— Quer desenhar um pouco comigo?
Aos poucos, Lorena foi se soltando. Seus desenhos eram impressionantes — cheios de detalhes que crianças de doze anos geralmente não percebem. Enquanto isso, a médica ia conversando, fazendo perguntas sutis, observando.
Depois de um tempo, ela pediu para conversar comigo em particular. Lorena ficou na sala ao lado, feliz por poder usar o seu fone de novo.
— Guilherme, você já suspeitava do autismo, não é?
Assenti.
— Eu também sou médico, mas eu vinha pesquisando há uns meses. Depois do acidente, ficou mais evidente. Ou talvez eu só tenha começado a prestar mais atenção.
— Os sinais são bem claros. A hipersensibilidade sensorial, o interesse intenso por assuntos específicos, a dificuldade com mudanças e interações sociais...
— Ela é brilhante — falei, defensivo.
Conversamos por um bom tempo. Sobre avaliações complementares, sobre adaptações na escola, sobre como ajudar Lorena a lidar melhor com as mudanças sem tentar mudá-la.
Na volta para casa, paramos na sorveteria. Era nossa tradição.
— E aí? — Lorena perguntou, afundando a colher no sorvete de chocolate. — Qual o veredicto?
Às vezes, ela me surpreendia com esse vocabulário todo.
— Não é bem um veredicto, Lo, mas a doutora acredita que você pode estar no espectro autista.
Ela continuou comendo seu sorvete, pensativa.
— Tipo aquela serie da advogada da Netflix?
— Mais ou menos. Cada pessoa no espectro é única.
— Faz sentido — ela disse depois de um tempo. — Explica por que acho todo mundo tão... confuso.
Não pude deixar de sorrir.
— Como assim?
— As pessoas nunca dizem o que realmente querem dizer, e isso me confunde a cabeça, não sei quando as pessoas estão sendo irônicas, quando estão brincando.
Ri de verdade dessa vez.
— Você tem razão.
— Isso muda alguma coisa? — ela perguntou, mais séria.
— Só muda que agora a gente pode entender melhor como fazer as coisas funcionarem pra você. Na escola, em casa...
— Posso continuar usando meus fones?
— Claro que pode.
Ela sorriu, daquele jeito discreto dela, e olhou em minha direção novamente.
— Tio... — ela começou, lambendo a colher — Você vai continuar gostando de mim mesmo se eu não lembrar das coisas?
Senti meu peito apertar. Me inclinei na mesa, mais perto dela.
— Ô sua boba, claro que sim. Você é minha princesinha, esqueceu?
Ela abriu um sorriso cheio de chocolate nos dentes, daquele jeito que só ela sabia fazer. Ali, naquela sorveteria barulhenta, percebi que não importava o que viesse pela frente... a gente ia dar um jeito.
Em casa, mal chegamos e ela já disparou para o banho e eu segui em direção ao meu quarto para tentar colocar a cabeça no lugar. Não demorou muito e minha mãe apareceu na porta, com aquela cara de quem já sabia que eu estava preocupado.
— E aí, filho?
— Ela realmente é autista, mãe. Amanhã vou à escola conversar com a coordenação. A gente vai precisar fazer alguns ajustes.
Minha mãe encostou no batente da porta, cruzando os braços.
— Ela é forte. Igualzinha à Amelie.
Fiquei quieto, sentindo aquele nó na garganta. Era verdade, às vezes Lorena fazia uns gestos, umas caras, que era como ver Amelie na minha frente.
[...]
No dia seguinte, cheguei à escola um pouco mais cedo que o normal e deixei Lorena em sua sala. Marta, a diretora, estava na recepção conversando com uma das professoras quando me viu. Ela ajeitou os óculos e veio até mim.
— Guilherme, que surpresa te ver por aqui logo cedo. Aconteceu alguma coisa? — perguntou ela, franzindo a testa.
Respirei fundo, escolhendo as palavras com cuidado.
— Nada grave, mas precisava conversar com você. Tem um tempinho?
O sorriso de Marta diminuiu um pouco, dando lugar a uma expressão mais atenta.
— Claro, vem comigo. — Ela fez um gesto em direção ao corredor. — Quer um café?
— Não, não, tô bem, obrigado.
A sala dela era pequena, mas aconchegante, com aquele cheiro típico de escola. Uma mistura de café com papel e giz. Nas paredes, um monte de desenhos coloridos dos alunos.
— Então, me conta. É sobre a Lorena? — Marta perguntou, se ajeitando na cadeira.
Respirei fundo.
— É sim. Ontem levei ela numa consulta e... bom, a médica identificou que ela tá no espectro autista.
Marta ficou em silêncio por alguns segundos, como se estivesse processando a informação.
— Sabe que isso explica muita coisa? Principalmente depois do acidente...
— Pois é. Na verdade, vim aqui pra gente pensar junto como fazer para ajudá-la. Ela é super esperta, só tem um jeito diferente de ver as coisas.
— Com certeza. — Marta pegou um bloco de notas. — Olha, vou marcar uma reunião com a professora dela ainda hoje. A gente pode começar adaptando algumas coisas na rotina, ver o que funciona melhor.
— Isso seria ótimo. Geralmente, ela fica meio perdida com barulho, muita gente.
— É normal, cada criança é diferente. A gente pode, por exemplo, deixá-la sentar num lugar mais tranquilo da sala, longe da janela. E nas atividades em grupo, ir incluindo ela aos poucos, sem forçar.
Senti um alívio enorme.
— Nossa, nem sei como agradecer.
Marta sorriu e balançou a cabeça.
— Que isso, Guilherme. É nosso trabalho. E a Lorena é uma criança incrível. Vamos fazer dar certo.
Quando saí da escola, o dia parecia mais leve. Claro que ainda tinha muita coisa pela frente, mas era bom saber que não estava sozinho nessa.
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