Ameaças e promessas
NAS SEMANAS SEGUINTES, MERGULHEI EM UMA MARATONA DE PESQUISAS EXAUSTIVAS. Cada artigo científico, cada conversa com especialistas em desenvolvimento infantil, representava um passo crucial para entender como poderia apoiar Lorena da melhor maneira possível.
Naquela manhã, cheguei cedo ao hospital, meu refúgio habitual quando precisava processar informações complexas. O ritual era sempre o mesmo: primeiro o café, depois organizar os pensamentos. O aroma intenso de café preencheu a cafeteria assim que entrei.
— O de sempre, doutor? — A voz da barista me trouxe de volta ao momento.
— Sim, preto. Sem açúcar — respondi, já automaticamente.
Poucos minutos depois, peguei o copo quente e me sentei próximo à janela, de onde podia observar o movimento matinal. O primeiro gole estava escaldante, quase me fazendo arrepender. Foi quando notei Marina entrando.
Nossos olhares se cruzaram, um segundo de hesitação, antes que ela se aproximasse.
— Bom dia — disse ela, num tom que misturava cansaço e cautela.
— Bom dia.
Seu cabelo solto emoldurava um rosto marcado por noites mal dormidas. Mas sei que ela era forte o suficiente para resistir às sombras do passado.
— Café? — perguntei, indicando a máquina.
— Preciso — respondeu, quase num murmúrio que revelava mais do que as palavras.
Quando voltou, sentou-se sem cerimônia. Girava a colher no copo, como se cada movimento pudesse adiar uma conversa inevitável.
— Não dormiu bem? — A pergunta saiu mais como uma constatação.
Ela suspirou.
— Muitas memórias. Doze anos se passaram desde o sequestro da minha filha, e algumas cicatrizes ainda sangram. — Fez uma pausa. — Sair de um relacionamento abusivo não é como fechar uma porta. É como tentar apagar uma sombra.
Reconheci o peso por trás daquelas palavras. Não precisava de muitas explicações.
— Sei como é.
Ela me observou por um momento.
— E você? Como tá?
Sorri de canto. Marina ainda me conhece mesmo depois de tantos anos. Suspirei.
— Resolvendo algumas coisas importantes — disse, propositalmente vago.
Ela ergueu as sobrancelhas, esperando mais.
— Isso tem a ver com Lorena?
Minhas mãos apertaram o copo.
— O que te faz pensar isso?
Ela me olhou com atenção, sem pressa.
— Você hesitou. E eu conheço você. — Falou com a calma de quem sabe ler até o que eu não digo.
Suspirei. Mais cedo ou mais tarde, teria que contar.
— Ontem descobri uma coisa... Lorena é autista.
O silêncio se instalou entre nós. Marina me olhava, absorvendo a informação.
Desviei o olhar, sentindo o peso da notícia.
— Ainda tô processando. Passei a noite lendo sobre isso, tentando entender como posso ajudar.
Ela deixou o copo sobre a mesa, os lábios tremendo um pouco, como se buscasse as palavras certas.
— Guilherme...
Respirei fundo.
— Não quero que sintam pena dela — nem de mim. Isso não muda nada. Ela é minha afilhada e eu vou fazer o que for preciso por ela.
Ela inclinou a cabeça, os olhos brilhando com algo entre empatia e admiração.
— Eu nunca sentiria pena. Como você tá com tudo isso?
Dei um suspiro profundo.
— Nada muda, ela continua sendo a minha Lorena. Mas preciso aprender a ver o mundo pelos olhos dela. E, pra ser sincero, isso me assusta. Mesmo sendo médico, parece que não sei nada.
Marina sorriu. Um sorriso cheio de ternura.
— Conheci uma criança autista na faculdade, e uma amiga minha tem um filho autista também. Sei que não é fácil, mas também sei que eles são incríveis. — Ela me olhou nos olhos. — E você vai conseguir. Se tem alguém capaz de fazer isso, é você.
Pela primeira vez desde o diagnóstico, um peso começou a se dissipar. Talvez eu realmente pudesse fazer isso.
Mas então, o celular de Marina vibrou sobre a mesa. O rosto dela empalideceu. Virou a tela para baixo, mas eu já tinha visto a mensagem.
"Você sabe que não pode fugir de mim, Marina... Nem da última vez, nem agora."
O ambiente mudou. A cafeteria, antes acolhedora, pareceu ficar fria, distante. Marina me olhou, a voz quase inaudível.
— É o Leon.
Meu maxilar travou. Leon. O fantasma do passado dela. O pesadelo que ela tentava deixar para trás, mas que insistia em voltar.
— O que ele quer?
Ela encarou o celular por um instante, antes de soltar um suspiro, passando a mão pelos cabelos.
— Não faço ideia de como, mas ele conseguiu meu número. Tenho medo de que já saiba onde estou, Guilherme...
Sem pensar, coloquei a mão sobre a dela. Ela se assustou um pouco, mas não recuou.
— Você não tá sozinha. — Minha voz saiu firme.
Os olhos dela brilharam, a respiração vacilou, como se segurasse as lágrimas. Apertei sua mão levemente, tentando oferecer segurança.
— Eu não sei como, mas ele sempre dá um jeito de me achar. Só queria seguir minha vida sem esse pesadelo me perseguindo.
Meu maxilar se prendeu. Eu entendia. Mas também sabia que certas sombras do passado não desaparecem facilmente.
— Ele não vai estragar sua vida de novo. Eu não vou deixar.
Marina assentiu devagar, apertando minha mão antes de soltá-la. O medo ainda estava lá, mas algo mudou. Talvez um pouco de esperança.
E eu faria de tudo para transformar essa esperança em realidade.
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