XIX - AS FACETAS DA VISÃO
E as ondas de dúvidas que vêm como um turbilhão
na quebra das ondas de encontro aos rochedos do meu coração
Atirei a flecha em direção à árvore, uma, duas, três, quatro, cinco vezes. A ponta dos meus dedos já possuía calos pequenos e grossos de treinos passados; eu nem sentia mais tanta dor. A cada disparo, o som seco da madeira sendo perfurada reverberava na clareira silenciosa. Muriel chegou minutos depois que Levi desapareceu na floresta. De alguma forma, mesmo sem ele, eu não me senti desprotegida. Dentro de mim, criei uma certa confiança.
Relaxei os ombros e finalmente entendi o que me assombrava de verdade: eu estava sozinha. Minha família morreu. Eu havia colocado na minha cabeça que eles ficariam melhor sem mim, mas eles morreram mesmo que eu não estivesse por perto. Guardei o arco e voltei a sentar no chão, cruzando as pernas. Se isso ajudava Levi, talvez me ajudasse também, e eu tinha algo que precisava muito fazer. A diferença foi que não fechei os olhos, procurei focar nas flechas que ficaram fincadas no tronco da árvore, e não demorou muito para que eu conseguisse o que queria. Eu finalmente sabia usar o meu dom.
Eu quis falar com ele, quis mostrar que já sabia que era manipulador, e que eu estava do lado certo dessa vez.
— Não pense por um instante que você está aqui simplesmente porque quer. Eu permiti a sua entrada. — A voz ressoou de dentro do vácuo, fria e cortante.
Entendi de imediato o que ele quis dizer. Não foi somente a visão que fez com que eu me comunicasse com ele, até porque eu sequer pude imaginar um rosto. Quando a visão ativou, pensei que gostaria de estar na consciência daquele que fizera com que eu sentisse o maior medo de toda a minha vida, meu dom me levou até ele e ele deixou.
— Eu serei breve. — Falei, fazendo de tudo para que minha voz não tremesse. — Nunca mais irei querer nada que tenha a ver com você.
— Isso é por causa dos seus pais? Não foi minha culpa, — A voz vinha de trás de uma neblina densa e escura. — foi sua culpa. Você achou que eu não perceberia caso quisesse me enganar?
— Não importa o que você faça, já está derrotado e o meu dom nunca será seu.
De dentro da neblina pude ouvir passos apressados, cada vez mais próximos, cada vez mais ameaçadores. Um calafrio percorreu minha espinha, e meus olhos se arregalaram quando uma mão pálida surgiu da escuridão, estendendo-se na minha direção com dedos longos. O ar ao meu redor ficou gélido, e o cheiro de putrefação invadiu minhas narinas, fazendo meu estômago revirar.
Meu coração disparou e a adrenalina tomou conta do meu corpo. Quis gritar, mas minha voz ficou presa na garganta. Recuei, mas a mão continuava a se aproximar, agora quase tocando meu rosto. A sensação de desespero era sufocante. Olhei ao redor, tentando encontrar uma saída, mas a neblina parecia ter me envolvido por completo.
Quando a mão agarrou meu pescoço, a pressão era tão real que quase me tirou o fôlego. O aperto era firme e implacável, e senti as unhas afundarem na minha pele. Meu corpo foi erguido do chão, meus pés balançando no ar. Em meio ao pânico, olhei para o colar em meu pescoço e, em um último esforço, invoquei novamente a luz para dentro dele. O colar se encheu de um brilho intenso, e a mão começou a soltar meu pescoço. Com um grito de desespero e dor, a criatura recuou para dentro da neblina, que começou a se dissipar lentamente.
Quando a névoa se desfez, não vi ninguém. Estava novamente na floresta, caída no chão, ofegante e trêmula. Abracei os joelhos, respirando fundo, nunca mais queria estar diante daquele ser e o pior é que eu tinha certeza de que aquele que falava comigo não era Kahav. Ouvi Levi chegar e levantei rapidamente.
— Não demore mais assim. — Pedi.
Um medo havia surgido de dentro de mim, o medo de que quando eu tivesse uma visão eu ficasse presa dentro dela. Levi já havia conseguido me tirar de uma.
— Olha só, não é porque a gente conversou algumas vezes que agora você pode... — Levi parou de repente me analisando. — Você tá bem? Está pálida.
— Me diga somente que conseguiu falar com os tais Orions.
Ele me lançou um olhar desconfiado, mas por fim desistiu de me analisar.
— Estarão aqui pela manhã. Neste momento estão escoltando os neshers que conseguiram escapar do incêndio, eles ainda não sabem qual foi a causa.
Levi andou até mim, os olhos focados em um único ponto enquanto franzia a sobrancelha, dei um passo para trás recuando.
— O que é isso? — Perguntou. — No seu pescoço.
— Ah, droga. — Toquei o meu pescoço, o local ardia, no local onde a mão apertou durante a visão.
— Está vermelho... — Seu olhar se encheu de compreensão. — Outra visão?
— É, mas dessa vez, fui eu mesma que a ativei. — Fiz uma pausa, refletindo se contava ou não. — Eu queria falar com Kahav.
— E você achou que conseguiria? — Ele riu nasalado, debochando. — Eu acredito fielmente que Olam o vencerá, mas não subestimo nosso inimigo, não mexe assim com o desconhecido. Inclusive acho muito difícil que tenha conseguido falar com Kahav.
— Eu não sou tão burra assim, eu percebi. — Rebati, irritada.
— Não mexa com o mundo espiritual mais, na verdade, o melhor para você é impedir que nunca mais algum dos enviados de Kahav cheguem até a sua mente. Eles possuem o poder de nos enlouquecer.
A preocupação de Levi não era sutil, portanto, não retruquei mais. Entre os neshers eu com certeza era a menos experiente.
— Vou precisar deixar você sozinha novamente, acha que é capaz? Não vai fazer nenhuma besteira? — Ele perguntou como se falasse com uma criança de 10 anos.
— Sim. — Cerrei os dentes, céus, como era irritante ouvi-lo dar ordens.
— Nós precisamos comer, ficaremos aqui até o amanhecer, vou providenciar isso. — Ele falou para si mesmo e depois olhou para mim. — . É sério, Helene, sem usar a visão para acessar o Kahav, estamos entendidos?
— Quer que eu diga: Sim, senhor?
De onde tinha surgido a Helene respondona eu não sabia, talvez ela sempre estivesse dentro de mim, mas tinha medo de sair.
— Na verdade seria bom ouvir. — Pisquei sem acreditar no que ele dizia.
— Vai sonhando. — Respondi enquanto vi o rapaz se afastar.
Ficar sozinha fez com que eu vislumbrasse o meu passado, um passado em que eu passava horas trancada no meu quarto esperando que alguém me chamasse para sair, mas eu não tinha amigos e por mais que às vezes dissesse que não me importava, doía. Meus pais, até que eu conhecesse Celine, costumavam fazer a noite do filme nas sextas, eu era adolescente, e amava aqueles momentos, eu esquecia que era sozinha, porque eu os tinha. Mas quando eu fiz amigos, mesmo que falsos, eu os esqueci tão rapidamente... como alguns filhos podem ser tão ingratos? Respirei fundo, revendo eles mortos na cama.
Eu precisava me distrair e não tinha o que fazer enquanto esperava pelo retorno de Levi, portanto, em dado momento me peguei encarando Isaac, sabia que ele não merecia aquilo e era inevitável o senso de responsabilidade, repassei em minha cabeça os acontecimentos passados me perguntando quando tinha dado errado, com certeza quando a minha covardia aflorou. Peguei a mochila que o ancião havia me dado, retirei as adagas, as enfiei em meu cinto, coloquei minha meia luva e vi uma carta, que não vi antes, a peguei cuidadosamente.
"Ária, se você ler isso eu provavelmente já devo estar morto, mas era assim que deveria ser.
O meu propósito era proteger você e quando eu entendi o que estava acontecendo me certifiquei de que você estivesse longe quando fomos atacados. O meu poder se esvai a cada dia juntamente com a minha idade, e quando você nasceu eu senti e soube, eu soube que ele seria seu, eu tive sonhos, Ária, mas as visões são para você, minha jovem. Não deixe o passado moldá-la, você nasceu de novo, é hora de utilizar o seu dom para levar a esperança ao mundo. Você tem as pessoas certas ao seu lado nesse momento.
Mas, deixo claro, que nem todas são tão boas.
Há tempos sinto algo diferente no meu chá, desde que Amaya começou a se tornar responsável pelas minhas refeições, e você pode me perguntar: "Por que esse velho não tomou as devidas providências?'', mas eu não podia fazer alarde, não é assim que se prova ao inimigo que é mais inteligente do que ele. As coisas precisavam fluir e se não acontecesse agora, aconteceria mais para a frente, se eu tivesse a confrontado, talvez não tivessemos chegado até você. Na noite em que senti você perto da floresta, mandei um sinal até você, pedi que o Levi esperasse, e você ouviu o chamado e veio até nós, foi a resposta que eu precisava para saber que estava no caminho certo.
A água do rio que está com você, ela poderá ajudar nas dificuldades, caso seja preciso, mas saiba que o poder não está nela, está em você, basta você acreditar. Porém, antes que pudessem ver coloquei nela as minhas lágrimas com essência celestial na noite anterior a sua partida, então use para o que mais for importante, lembre que é o rio da vida.
Quanto a Amaya, sei que ela enfrentará as consequências de seus atos, peço apenas que você não a odeie, não guarde ódio no seu coração de ninguém, pois o coração é enganoso, portanto procure enchê-lo de coisas boas.
Peço perdão por não ter conseguido instruí-la como deveria durante esses três meses em que passamos juntos, e para me redimir coloco abaixo as formas que a visão me manifestou em mim:
1. Percepção Aprimorada: Habilidade de enxergar através de paredes, névoa, ou até barreiras mágicas.2. Conexão Temporal: Reviver eventos históricos em detalhes ao visitar um local ou tocar um objeto.3. Inteligência Estratégica: Prever as ações de outras pessoas com base em seus movimentos ou comportamento. Saber detalhes do ambiente ao redor, como um radar visual.4. Interação Psíquica: Transmitir visões ou imagens para outra pessoa como um método de comunicação ou aviso.
Aqui eu me despeço de você, lembre-se que os que esperam renovarão as suas forças e subirão com asas como águias; correrão, e não se cansarão; caminharão, e não se fatigarão. Use a visão para ver através da dificuldade.
Com esperança, Kohen
Respirei fundo. Morto. O ancião estava morto. Parei por um momento, encarei o papel em minhas mãos e pensei... Tentei imaginar para qual futuro tudo isso nos levaria, e tudo ocorrendo com sangue derramado, de pessoas inocentes como os meus pais e de pessoas bondosas como o ancião. Uma sombra fria passou pelo meu coração, uma sensação amarga de impotência.
Eu não pedi para nascer com a visão, Olam me escolheu, eu me senti honrada e perdida, porque não conseguia me ver como alguém forte o suficiente, mas percebi que havia uma Ária antes de ver os pais mortos e uma depois disso.
Peguei o frasco em minhas mãos, fechei os olhos com força, eu não tinha poderes de cura como Amaya, apenas acreditei que aquela era a minha esperança. O vidro frio contra a minha pele me trouxe de volta ao presente. Eu não sabia se o que continha ali poderia realmente ajudar, mas era tudo o que eu tinha. Minha fé foi a única coisa que me restou naquele momento. Não pude salvar meus pais, mas talvez eu pudesse salvar Isaac.
Fiz uma prece silenciosa e me inclinei, despejei algumas gotas do líquido na boca do rapaz e esperei. Meu coração, que tantas vezes pulsou desesperadamente em momentos de medo, estava agora estranhamente calmo, como se aceitasse qualquer que fosse o resultado. Meu coração não batia descontroladamente como sempre, pelo contrário, senti uma calma o inundando, e quando Isaac abriu os olhos eu chorei mais uma vez, sem me importar com mais nada. Meus ombros relaxaram, mesmo que eu soubesse que dentro do meu peito algo estava realmente dilacerado, eu de alguma forma entendi que se eu acreditasse, a cura para mim também viria. Senti meus músculos relaxarem, como se uma enorme tensão tivesse finalmente sido liberada. Mas, ao mesmo tempo, algo permanecia quebrado dentro de mim, uma dor profunda que ainda não tinha solução. Contudo, ao ver a vida voltar aos olhos de Isaac, uma pequena chama de esperança acendeu dentro de mim.
— Como você se sente? — Questionei enquanto eu o ajudava a sentar.
— Como se eu tivesse sido atacado e ferido por um celeste negro. — Ele falou o óbvio, riu e fez uma careta quando olhou e percebeu que o seu ferimento tinha desaparecido. — Por acaso foi algum tipo de sonho?
— Tava mais para pesadelo. — Suspirei.
— Cadê o Levi? Você não aguentou a chatice dele e o matou, por acaso? Juro que eu ajudo a esconder o corpo se você quiser. — Ele brincou mais uma vez.
— Eu senti a sua falta. — Encostei minha cabeça no seu ombro enquanto ria também. — Eu nunca mais vou deixar você na mão de novo.
Isaac ficou em silêncio e eu soube do que ele estava lembrando.
— Helene, eu... realmente sinto muito. — Disse por fim.
— Eu também. — Me afastei. — Vou esperar Levi voltar, ele provavelmente vai saber explicar melhor do que eu, precisa de alguma coisa? Ainda temos um pouco de água.
— Na verdade, pode parecer meio estranho, mas eu gostaria de dormir, me sinto exausto.
🦅
Eu não consegui dormir a noite inteira, sequer comi o hambúrguer que Levi trouxe. As horas se arrastavam, e o sono me escapava como areia entre os dedos. Minha mente vagava incessantemente, presa em um ciclo de pensamentos que me levavam de volta a Amaya, Ian, e ao que os vulpes poderiam estar tramando. Era como se um nó invisível estivesse apertando meu peito, me impedindo de respirar plenamente.
Pensei no que Amaya poderia estar fazendo agora e no que custou a ela trair a todos os que conheciam, o que também me levou a pensar em Ian, a pessoa em quem eu tinha feito de tudo para não pensar nos últimos dias. A imagem de Amaya me perseguia, a decisão que ela tomou não era algo que eu conseguia compreender completamente. Como ela pôde trair aqueles que a amavam?
A floresta parecia estranhamente familiar para mim, comecei pela primeira vez a pensar em como tudo ligado à natureza sempre tinha me atraído. A sensação de familiaridade na floresta era quase reconfortante, como se eu pertencesse àquele lugar de alguma forma. As árvores, o farfalhar das folhas, o som dos grilos—tudo parecia me envolver em um abraço silencioso. Através da escuridão lembrei de que tinha dificuldade para dormir quando criança, de como sentia calafrios. A escuridão, que antes era minha inimiga, agora era uma companheira estranha.
— Você não consegue dormir também? Posso ouvir sua respiração descontrolada daqui. — A voz de Levi quebrou o silêncio, trazendo-me de volta ao presente. Havia algo na forma como ele falava, uma suavidade que eu não estava acostumada a ouvir dele.
A barraca era grande o suficiente para três pessoas, de forma que o saco de dormir de Isaac ficou entre Levi e eu. O espaço entre nós parecia maior do que realmente era, como se Isaac, mesmo inconsciente, fosse uma barreira entre nós. Lá fora, a fogueira apagada deixava o ambiente ainda mais escuro, mas de alguma forma, eu me sentia mais segura ao lado de Levi, apesar de nossas diferenças.
— Uhum... — Murmurei, concordando com a pergunta de Levi.
— Vamos lá fora. — Levi se levantou com uma decisão que me surpreendeu. Não me deu tempo para questionar, simplesmente abriu o zíper da barraca e saiu. Segui-o sem hesitação.
— O que houve? — Perguntei, minha voz baixa.
— Observei você e gostaria de falar uma coisa. — Suas palavras eram diretas, mas havia uma gentileza subjacente que eu não esperava. Sentei-me ao seu lado no chão frio e úmido, sentindo as folhas amortecerem um pouco da dureza do solo. — Eu sei como é perder a minha família, Helene, vi meus pais morrerem diante dos meus olhos quando eu tinha quatro anos de idade. — Suas palavras foram como um golpe, inesperadas e dolorosas. Não esperava que ele fosse compartilhar algo tão pessoal. Ele havia carregado essa dor por tanto tempo, e agora estava me contando, como se quisesse me alertar de algo. — Não tive muito tempo para sofrer por isso, não quero que seja assim com você também. — A sinceridade em sua voz me desarmou completamente. Ele não estava tentando me consolar de forma superficial. — Mas quando você diz que está tudo bem, mas não dorme e mal come... esse tipo de dor deve ser sentida. Se você não sentir agora, ela pode se tornar escuridão dentro de você.
— Por que você faz isso? — Franzi o cenho, não conseguia compreendê-lo. Não conseguia entender essa dualidade em Levi. Um momento ele era cruel e distante, no outro, gentil e preocupado.
— Isso o quê? — Sua resposta foi calma, quase indiferente, como se ele realmente não entendesse minha pergunta.
— Me chama de fraca e agora... é gentil. — As palavras saíram com dificuldade.
— Eu não gostei de você. Você andava com os ombros curvados, tentava sorrir como se quisesse agradar a todos para ser aceita. — Suas palavras eram duras, mas de alguma forma, eu sabia que ele não estava tentando me magoar, estava apenas sendo honesto. — Quando puxou o arco pela primeira vez, logo se deu por vencida... Nós não fomos feitos para sermos assim, tão frágeis e manipuláveis. Levanta, pega o seu arco, já consegue ativar a visão, não é? — Sua ordem foi clara e direta. Não havia espaço para dúvidas ou hesitação.
— Sim. — Respondi, me levantando e fazendo o que ele pediu. Minha resposta foi firme, decidida. O arco em minhas mãos parecia mais leve desta vez, como se eu estivesse finalmente começando a entender como usá-lo, como canalizar minha visão.
Agora já parecia natural, sentir a sensação de preenchimento no coração e então levar para os olhos. A ativação da visão veio como uma onda suave, preenchendo-me com uma sensação de poder e clareza. Eu podia ver Levi claramente, cada detalhe de sua expressão, cada movimento calculado.
Ajeitei a postura, puxei a corda, respirei fundo. Cada movimento era cuidadoso, deliberado. Pude ver uma linha dourada, uma conexão invisível que guiava minha flecha. Quando soltei a respiração, também soltei a flecha, como se estivesse liberando parte da dor que havia acumulado. Agora já parecia natural, sentir a sensação de preenchimento no coração e então levar para os olhos. A sensação era como uma onda quente que irradiava do meu peito, espalhando-se pelos meus sentidos, até chegar aos meus olhos. O formigamento suave me fazia sentir viva de uma forma que eu não conseguia explicar..
Consegui enxergar Levi mais nitidamente. Cada detalhe dele estava acentuado—os fios negros de cabelo, o brilho sutil em seus olhos. Ele era uma presença forte, mas havia algo vulnerável nele naquela noite, algo que me fez sentir que não estávamos tão diferentes. Ele andou até uma árvore e colocou o dedo em uma parte alta. A confiança nos movimentos de Levi era reconfortante, como se ele soubesse exatamente o que eu precisava naquele momento. Não havia dúvida ou hesitação, apenas uma certeza calma e constante que me guiava.
— Aqui. Acerte aqui. — Sua voz era baixa, mas carregava uma autoridade que me fez querer obedecer.
Ajeitei a postura, puxei a corda, respirei fundo. Cada movimento era feito com uma precisão que eu nunca tinha sentido antes. O arco parecia uma extensão do meu corpo, e a corda, quando esticada, carregava não apenas a flecha, mas todas as minhas emoções—o medo, a dor, a esperança. Pude ver uma linha, como um fio dourado que envolvia desde a ponta da flecha até o local que Levi apontou, como uma mira invisível. Era como se o mundo ao meu redor desaparecesse, deixando apenas aquela linha dourada conectando meu coração ao alvo. Quando soltei a respiração também soltei a flecha, ela pousou exatamente onde precisava. O som da flecha acertando a árvore ecoou na noite, um som quase imperceptível, mas para mim, foi ensurdecedor. Foi como se toda a tensão acumulada em meu corpo se dissipasse de uma vez, deixando-me com uma sensação de alívio e realização.
Deixei que o arco caísse no chão, o gosto salgado chegou até os meus lábios. Não foi um choro descontrolado, mas as lágrimas vieram, silenciosas e constantes, como se estivessem lavando algo dentro de mim. O gosto salgado em meus lábios era um lembrete da dor que eu ainda carregava, mas também da força que estava começando a emergir.
Levi andou até mim, devagar, parecia inseguro sobre o que fazer. Vi em seus olhos uma hesitação que eu não esperava. Levi, sempre tão seguro de si, parecia incerto, como se estivesse pisando em um terreno desconhecido. Cada passo dele em minha direção parecia carregado de significado, como se estivesse atravessando uma barreira invisível.
Quando me envolveu em seus braços, não movi um músculo sequer. O toque dele foi suave, quase hesitante no início, como se ele estivesse com medo de se aproximar demais. Mas quando finalmente me abraçou, senti a firmeza de seus braços ao meu redor, uma proteção silenciosa que me envolvia completamente. Me deixei ser abraçada por ele, era como se nós dois precisássemos disso. Talvez fosse o abraço que Levi nunca recebeu quando criança, ou talvez fosse a resposta às noites solitárias que passei tentando ser forte. Seja o que fosse, naquele instante, era tudo o que eu precisava.
— Obrigada. — Sussurrei. Não era apenas um agradecimento por ele estar ali, mas por me ver, por reconhecer minha dor e me ajudar a enfrentá-la.
Quando Levi me soltou, nos encaramos, meus olhos tinham voltado ao normal, mas somente com a luz da lua pude ver que ele estava prestes a fazer algo que nunca pensei que presenciaria.
— Descu... — Ele começou a falar, mas rapidamente coloquei minha mão em frente a sua boca.
— Aqui não gostamos de pedidos de desculpas, lembra? — Sorri ao vê-lo balançar a cabeça para cima e para baixo como se dissesse que sim, então tirei a minha mão. — Parece que estou me tornando uma boa aluna.
— Não posso ter boas alunas, tenho que ter as melhores. — Levi já tinha voltado ao seu jeito sério e relaxado.
— Sim senhor.
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