XIV - O NOVO DESPERTAR
Amaya enfaixava meu pé com cuidado enquanto cantarolava algo, calma. Eu já havia tomado banho. O quarto estava iluminado por uma luz suave que vinha de uma pequena lâmpada ao lado da cama, e o ar cheirava a lavanda e remédios. Olhando para ela, percebi o quanto era linda. O cabelo liso e acobreado era longo, passando da cintura, e seus olhos eram gentis ao olhar para a careta que fiz quando ela precisou fazer um nó. O meu pé latejava menos; Amaya já havia me enchido de analgésicos. Ela levantou e ajeitou o travesseiro atrás da minha cabeça.
— Você está mesmo bem? — Ela perguntou, segurando minha mão.
Olhei para ela, analisando se devia entregar meus sentimentos para uma estranha, mas eu já havia falado sobre mim para alguém por bem menos.
— Eu só não esperava que fosse acontecer assim. Mas fico feliz por ter conhecido vocês. Sou grata por terem me acolhido e por Levi ter me salvado duas vezes.
— Ele gosta disso, de ser o herói. — O sorriso dela se alargou, e parecia que falar de Levi era algo que trazia boas lembranças. — Talvez ele tenha tentado reconfortá-la no caminho até aqui. Ele não sabe muito bem como fazer isso, mas sempre tenta, com um sorriso meio falso no rosto. Na verdade, Ária, todos nós aqui estamos cansados de precisar ficar correndo, ou melhor, voando, como no caso de Muriel, por aí caçando aquelas raposas e tentando deixar a paz reinar. Então, se puder se juntar a nós, não estamos pedindo que mate os vulpes. Nós só precisamos impedir que os planos dele se cumpram.
— Tudo bem, eu já estou começando a compreender.
O ambiente ao nosso redor parecia mais tranquilo, como se as paredes do quarto estivessem absorvendo a nossa conversa e a transformando em um abrigo seguro.
— O ancião mandou dizer que a proposta ainda está de pé. Assim que se sentir pronta, e se quiser, pode procurá-lo.
A menção do ancião trouxe uma nova onda de curiosidade e um pouco de ansiedade. Será que eu estava pronta para isso? Olhei para Amaya, buscando algum sinal de certeza.
— Eu vou pensar sobre isso, Amaya. Obrigada por cuidar de mim.
Ela apertou minha mão gentilmente antes de se levantar.
🦅
É interessante perceber que meses atrás se algo assim acontecesse comigo eu me trancaria no quarto para chorar, mas depois de ficar sozinha e encarar mais uma vez o céu estrelado pela janela do quarto eu só entendo uma coisa: Viver é se arriscar. A manhã seguinte não me faz pensar tanto nos acontecimentos anteriores, é como se de alguma forma eu tivesse apenas aceitado que preciso ir em frente em prol de um bem maior, algo dentro de mim avisava que eu encontraria Ian novamente e que eu precisava estar pronta para esse reencontro. Acordei cedo, tratei de trançar meu cabelo e vestir roupas de treinamento, que eram mais simples do que a roupa dos vulpes. As vestes dos neshers se concentravam em praticidade e funcionalidade.
Calcei minhas calças leggings, feitas de um tecido elástico, porém resistente, que se moldava ao corpo sem restringir os movimentos. A cor era um verde escuro, quase camuflado, que ajudava a mesclar-se com a natureza ao redor. As blusas compridas eram de um tom marrom terroso, com mangas ajustáveis. Elas possuíam bolsos estratégicos nas laterais, perfeitos para guardar pequenos itens essenciais. Nos pés, as botas de couro eram reforçadas nas solas para proporcionar uma melhor aderência em terrenos irregulares. O couro macio, mas robusto, assegurava a proteção sem sacrificar o conforto. Amarradas até o meio da canela, as botas também tinham pequenos ganchos para prender cordões e outros equipamentos. As meias luvas, feitas do mesmo couro das botas, deixavam os dedos livres para manipular objetos com precisão enquanto protegiam as palmas e o dorso das mãos. O cinto tático, de cor preta, tinha diversos compartimentos e fivelas, permitindo que eu carregasse ferramentas, uma pequena faca e outros utensílios necessários para o treinamento.
Amaya havia deixado uma lista de como a clareira funcionava. Eu saí do quarto e me deparei com a clareira, ela era dividida em cabanas, dispostas em um círculo perfeito, criando uma sensação de comunidade e proteção. Cada cabana possuía uma quantidade específica de quartos, proporcionando espaço suficiente para cada habitante. A arquitetura das cabanas era fascinante, com telhados feitos de folhas trançadas e paredes de madeira, enfeitadas com símbolos antigos que, segundo me contaram, serviam para proteção e boa sorte.
Mais adiante, no centro da clareira, erguia-se um grande refeitório. Sua estrutura era a mais imponente de todas, construída com troncos de árvores enormes e pedras cuidadosamente encaixadas. O telhado alto permitia que a luz natural inundasse o interior, criando um ambiente acolhedor. Alguns neshers já estavam sentados fazendo a primeira refeição do dia. Eles conversavam alegremente, a energia no ar era quase palpável. Ao entrar, me senti como se estivesse no meu primeiro dia de aula em algum lugar novo, com uma mistura de nervosismo e curiosidade. Enquanto tentava entender como tudo funcionava, senti alguém passar os braços pelos meus ombros.
— Bom dia, bom dia! — A voz de Isaac chegou aos meus ouvidos. — A boa filha voltou para casa. Você me deixou preocupado, sabia?
— Desc... — Estava pronta para me desculpar quando lembrei que Levi dissera que era muito mais útil mudar. — Isso não vai se repetir.
Isaac me encarou e abriu um largo sorriso, como se acreditasse fielmente em minhas palavras.
— Espero que goste de comer, a comida aqui é a melhor.
A manhã transcorreu de forma quase familiar. Comer foi fácil, conversar foi fácil. No entanto, algo em mim estava em alerta, como se a qualquer momento alguém pudesse me apunhalar nas costas. Após o café da manhã, Amaya se aproximou e me fez a pergunta que eu estava esperando.
— O ancião perguntou se gostaria de vê-lo.
— Estou pronta para ir até o ancião.
Amaya me guiou pela trilha sinuosa, por onde eu já tinha passado antes, mas já não lembrava. As árvores ao nosso redor eram antigas e majestosas, com troncos grossos e copas que se entrelaçavam formando um dossel verde sobre nossas cabeças. O ar estava impregnado com o cheiro de terra úmida e folhas, e a luz do sol filtrava-se pelas folhas, criando padrões de sombra no chão. Chegamos à cabana do ancião que ficava mais isolada, mais simples do que as outras, mas ainda assim imponente. Era feita de madeira escura, envelhecida pelo tempo, e estava parcialmente coberta por musgo e trepadeiras.
O interior da cabana era simples, mas cheio de personalidade, por estar mais aberta a experiência do que estivera na última vez, consegui observar mais o ambiente, havia prateleiras repletas de pergaminhos e livros antigos, ervas secas pendiam do teto, e uma fogueira crepitava suavemente no centro do espaço, emanando um calor acolhedor. O ancião estava sentado em uma cadeira de madeira esculpida à mão, coberta com peles de animais. Ele tinha uma aparência venerável, com longos cabelos e barba brancos, seus olhos azul profundos pareciam ver através de mim.
— Seja bem-vinda, Ária. — Sua voz era suave, mas carregava uma autoridade inegável. — Sente-se, temos muito o que conversar.
— Eu deveria ter vindo antes, não é?
— O que acontece agora, deveria acontecer agora. — começou ele, olhando-me com curiosidade. — Inclusive, receio que tenha encontrado algumas respostas recentemente.
Contei-lhe sobre as visões e as revelações, sobre meu encontro com os vulpes e os neshers, e sobre minha crescente curiosidade em entender o dom que possuía. O ancião escutou atentamente, assentindo de vez em quando, seus olhos nunca deixando os meus.
— O dom que você carrega é raro e poderoso — disse ele finalmente. — Não é apenas uma habilidade, mas uma responsabilidade. Suas visões são fragmentos de uma verdade maior, e cabe a você decifrá-las e agir de acordo com elas. — Ele fez uma pausa, estava tão sério que o meu corpo se enrijeceu. — Para que consiga dominá-lo, é preciso fazer uma escolha, Helene, precisa decidir se quer realmente morrer para o passado e viver para o que está por vir.
— Eu já passei por experiências que jamais imaginei que passaria, ao fazer escolhas até tive o meu corpo marcado. Como vou saber que agora será diferente?
— Escolhas boas trazem paz, mesmo que estejam carregadas de um futuro difícil.
Escolhas boas trazem paz. Tentei imaginar se sentia paz quando estava com os vulpes, e só percebi que as coisas aconteciam tão rapidamente que eu nem parava para pensar em como me sentia. Lembrei da dor que senti quando a marca da raposa apareceu em meu braço e de como me senti cansada quando assinei meu nome no livro. Nunca tinha imaginado que poderia ser algo tão ruim agora.
Ainda estava indecisa, mas as palavras que vieram a seguir vieram carregadas de grande tranquilidade.
— Não queremos marcá-la, pelo contrário. Você está aqui para se livrar de tudo o que lhe causa dor.
As palavras do ancião soaram como uma promessa de libertação. Sentada ali, cercada pelo calor da fogueira e pela sabedoria do ancião, senti um alívio profundo. Era como se um peso invisível estivesse sendo retirado dos meus ombros. A dor e o cansaço que haviam se tornado uma constante em minha vida começaram a se dissipar lentamente. A esperança verdadeira que as palavras dele traziam me fazia querer chorar, não por estar com medo, mas por estar aliviada.
Foi nesse momento que percebi o quão conflitantes eram meus sentimentos. Havia uma parte de mim que ainda se sentia ligada aos vulpes, talvez por causa da intensidade das experiências que vivi com eles. No entanto, essa ligação parecia mais uma prisão do que um vínculo verdadeiro. A marca em meu braço era um lembrete constante. A clareza dessas emoções foi se assentando, e pela primeira vez em muito tempo, me permiti respirar fundo, sem o peso da culpa ou do medo. As palavras do ancião eram um bálsamo para minha alma, oferecendo-me a chance de recomeçar, de curar as feridas e de encontrar meu verdadeiro caminho. Simplesmente ser eu.
— Estarei livre para ir se eu quiser?
— Ária, não estamos aqui para fazer seu caminho por você, — Ele me olhou com preocupação genuina. — Eu aconselho, você trilha a jornada que quiser. Mas, se me permite dizer, uma vez que se experimenta o que é estar com Olam, em outro lugar não se saberá viver. Mais vale um dia com Ele do que muitos outros em qualquer outro canto da terra.
— Eu quero ser livre. — Escolhi com firmeza.
— O seu treinamento começará com algo pelo qual todos nós passamos quando viemos para cá, é um ritual de passagem. Eu creio que Amaya já deve ter preparado tudo. — Ele tentou se levantar, e Amaya correu para sustentá-lo. — Vamos lá?
— O senhor não precisa ir junto. — Amaya sugeriu. — Eu juro que farei tudo certinho, descanse, por favor.
— Impossível! Eu irei junto com ela. É sempre lindo ver alguém nascendo de novo.
Franzi a testa tentando entender o que significavam aquelas últimas palavras, mas seja lá o que quisesse dizer, parecia algo bonito de se testemunhar. E aconteceria comigo. Eu costumava ficar ansiosa com tudo o que estava por vir, porém, dessa vez a ansiedade não fazia com que eu quisesse estalar os dedos ou morder a parte interna da bochecha. Era algo bom, uma excitação diferente.
Não andamos muito. Logo paramos em frente a um grande lago, cercado por uma paisagem deslumbrante. O rio de águas cristalinas refletia o céu azul e as árvores ao redor como um espelho perfeito. Em volta dele, muitas flores haviam sido cuidadosamente depositadas, suas pétalas brancas e vermelhas formando um contraste vibrante com o verde da vegetação. O aroma das flores se misturava com o frescor da água, criando um ambiente confortável e acolhedor.
A trilha que rodeava o rio estava forrada com pequenas pedras lisas que brilhavam suavemente sob a luz do sol, como se contivessem uma magia própria. À medida que caminhávamos, senti uma brisa suave acariciar meu rosto, trazendo consigo o cheiro doce das flores e o som relaxante da água correndo lentamente. No centro dessa serenidade, havia uma mesinha simples, feita de madeira rústica. Sobre ela, repousavam um anel delicado, sandálias brancas de tiras finas e uma toalha de linho macio.
Ele sabia que eu aceitaria, pensei, gostaria de conhecer o ancião ainda mais e entender de onde vinha a sabedoria que tinha.
— Você está pronta? — Ele perguntou, e eu assenti. — Então vamos entrar.
— Na água? De roupa e tudo?
— Esse é o rivus vita — começou a explicar. — O rio que dá a vida. Olam nos deixou como prova de que reconhece quando queremos viver. Vamos juntos.
Amaya não discutiu com o ancião dessa vez. Ela apenas passou a mão dele para a minha, indicando que ele iria entrar no rio comigo, então apenas concordei. Entramos juntos até que, em determinado momento, ele me pediu para que parasse.
— Agora mergulhe, minha jovem, e deixe que as águas levem embora aquilo que você jamais pensou que sairia da sua mente. Deixe que a água flua e que você se sinta renovada.
Quando o ancião pediu para eu mergulhar, senti um frio na espinha, uma mistura de expectativa e nervosismo. As águas do rivus vita, cristalinas e serenas, pareciam chamar por mim, prometendo algo além da compreensão imediata. Respirei fundo, sentindo o ar entrar em meus pulmões, e fechei os olhos antes de me inclinar para a frente e mergulhar. No instante em que meu corpo rompeu a superfície da água, fui envolvida por uma sensação de frescor absoluto. A água estava fria, mas não de uma forma desagradável; era revigorante, como se estivesse lavando todas as impurezas da minha pele e da minha alma. A leve correnteza me abraçou, e senti uma leveza imediata, como se todos os meus fardos e preocupações tivessem sido arrancados de mim.
Enquanto submergia, o mundo exterior parecia se dissolver, deixando apenas o som suave da água ao meu redor. A sensação de flutuar, sem peso, era quase mágica. Abri os olhos debaixo d'água e vi os raios de sol penetrando a superfície, criando padrões ondulantes de luz que dançavam ao meu redor. A serenidade do momento era completa. Pensei em toda a minha vida até aquele ponto – as influências, as pressões, as decisões que tomei sem pensar. Tudo parecia tão distante, como se estivesse vendo outra pessoa em um filme. Senti a água tocar cada parte do meu corpo, e cada toque parecia levar embora um pouco mais da dor, do cansaço, da confusão.
A sensação era de ser abraçada por algo muito maior e mais antigo do que eu. Era como se o rio tivesse uma sabedoria própria, uma compreensão silenciosa e profunda de todas as minhas lutas e arrependimentos. E, ao mesmo tempo, ele estava ali para me ajudar a deixar tudo isso para trás. Quando finalmente emergi, o ar fresco encheu meus pulmões novamente, e senti como se estivesse respirando pela primeira vez. A luz do sol parecia mais brilhante, as cores ao meu redor mais vívidas. A sensação era de renascimento.
— Foi... incrível — consegui dizer, com um sorriso que veio direto do meu coração.
O ancião sorriu de volta, seus olhos cheios de sabedoria e compaixão.
— Sempre é. Agora podemos voltar.
Conduzi o ancião novamente para fora das águas. Ele não se importava com o fato de que estávamos encharcados. Me inclinei para pegar a toalha que estava em cima da mesa com o intuito de dar a ele.
— Não, não, isso é para você. — Ele então pegou o anel em cima da mesa e pediu a minha mão. Eu a levantei, e ele colocou o anel em meu dedo. Então olhou para Amaya, que concordou, e começou a falar.
— Este anel simboliza a aliança de Olam com os homens. A partir de agora, não somente você estará com ele, como ele estará com você, em todos os dias, em todas as horas.
O ancião se apressou em pegar as sandálias, com um pouco de dificuldade, mas dispensando minha ajuda. Amaya mantinha uma postura impecável, esperando que eu tirasse as botas para que ele colocasse as sandálias em meus pés.
— Esta sandália significa que Olam guiará os seus passos por onde você for — Amaya continuou. — Mas, de forma que saiba, que é livre para andar por onde quiser.
Então, no momento em que o ancião pegou a toalha, percebi que não era uma toalha, mas sim um manto, bonito. Era feito de um material que parecia ao mesmo tempo delicado e resistente, brilhando suavemente à luz do sol como se houvesse fios de prata entrelaçados em sua trama. O tecido tinha uma textura suave ao toque, quase como seda, mas com uma robustez que sugeria durabilidade e proteção. Quando o ancião o passou em volta do meu pescoço, senti o tecido acariciar minha pele com uma suavidade reconfortante. O manto caiu graciosamente sobre meus ombros, envolvendo-me em um abraço caloroso e protetor. Era como se o próprio Olam estivesse ali, me abençoando com sua presença e sua força.
— Ária, você não é e jamais será escrava do passado. Através de roupas novas, poderá reescrever o seu futuro. — E então ela sorriu para mim.
Amaya tirou um lenço do bolso e entregou ao ancião, que sorria também.
— Estou velho, mas sempre me emociono.
Então caminhamos juntos de volta. O ancião voltou para a cabana e eu para a clareira, esta estava iluminada pelo sol da manhã, suas cores pareciam mais vibrantes. As cabanas em círculo pareciam estar em perfeita harmonia com a natureza ao redor. As árvores, altas e antigas, formavam uma muralha verde que nos envolvia, dando a sensação de estarmos protegidos e isolados do mundo exterior.
Ao chegarmos de volta no local das cabanas, Amaya levantou meu braço, virando-o para que todos pudessem ver o anel em minha mão. Os neshers, ficaram de pé e aplaudiram, tinham sorrisos calorosos e olhares de aprovação. Era como se eu tivesse sido aceita em uma família maior e mais acolhedora do que jamais poderia imaginar. A sensação de pertencimento e aceitação era avassaladora, preenchendo meu coração com uma alegria indescritível.
O anel em meu dedo parecia pulsar suavemente, como se estivesse vivo, um lembrete constante da conexão profunda que agora tinha com Olam e com aqueles ao meu redor. A leveza das sandálias nos meus pés e o calor do manto ao redor do meu pescoço me faziam sentir protegida e guiada. Então, foi no momento em que tive a oportunidade de olhar para o meu braço, enquanto abria um sorriso, percebi que a marca da raposa havia sumido
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro