Capítulo 21 - Eu salvei você.
"Lamentar uma dor passada, no presente, é criar outra dor e sofrer novamente".
🐍▫️Antoinette▫️🐍
Não fazia ideia para onde levar Pêssegos, mas ela parecia tranquila com relação a isso, o que era um alívio enorme. Eu não sabia o que era um gesto romântico ou íntimo, só queria devolver o sorriso ao seu rosto. Teria que me virar ao longo do caminho e rezar para o que quer que achasse legal e perfeito fosse perfeito para ela também.
Dirigi por horas, voando pela Ponte de Brookly ao lado de um Porsche irado que tentou me ultrapassar. Girei a mão direita para trás e acelerei Kala para passar à frente do idiota. Gostei quando Pêssegos riu animadamente atrás de mim. Nós dirigimos até o East New York, atravessamos o Cypress Hills, passeando pelo parque e pela Broadway, até retornamos a Manhattan. Era a primeira vez que realmente esticava as pernas de Kala desde que fui solta, e aquilo era demais. Estava achando radiante ter Pêssegos atrás de mim, segurando meu corpo, em especial quando o vento nos acoitava ao passarmos por cima da água, de volta à ilha. Não podiamos conversar, mas sabia que aquilo era provavelmente o que ela queria, mas apesar disso, ela ria alto enquanto eu acelerava pela Rua 47, entre o enorme tráfego.
Podia sentir suas mãos em minha jaqueta e em duas ocasiões, coloquei a mão na dela, acariciando e apertando. Queria reconfortá-la, certificar-me de que estava bem e, em ambas as vezes, ela havia segurado os meus dedos em resposta.
Eram quase seis da tarde quando entrei na Quinta Avenida, perto do Central Park. Tinha começado a chuviscar, mas não parecia ser relevante. Se aquilo significava que haveria menos pessoas em volta, então estava achando ótimo. Fiquei sentada por um momento com Pêssegos ainda agarrada a mim, ouvindo o motor de Kala pipocar enquanto esfriava.
- Tudo bem aí atrás? - perguntei, destravando o capacete.
- Sim - murmurou ela - Estou tão relaxada que quase peguei no sono.
Esfreguei suas mãos, que ainda estavam segurando meu tronco, e virei a cabeça em sua direção.
- Quer que eu leve você para casa?
Para meu alívio, ela balançou a cabeça.
- Não. Não estou pronta para ir para casa ainda.
- Ótimo - respondi com um leve sorriso - Nem eu.
Ajudei-a a descer da moto, segurando sua mão. Fiz menção de soltá-la, mas Pêssegos continuou segurando, deslizando os dedos por entre os meus. Arregalei os olhos surpresa e ela olhou em minha direção, apertando o lábio entre os dentes.
- Tudo bem?
Sorri. Aquilo estava mais do que bem.
Caminhar despreocupadamente pelo Central Park, de mãos dadas com Cheryl, era uma experiência estranha. Sentia-me com três metros de altura e, ao mesmo tempo, pequenina e vulnerável. O caos em que meu corpo se encontrava fazia-me sentir radiante e extremamente assustada. Era intenso.
- Você ainda está aqui comigo? - perguntou Pêssegos enquanto caminhávamos até à estátua de Alice no País das Maravilhas.
- Sim - respondi - Por quê?
- Você parece, sei lá, nervosa.
Ri em um ruído estranho, estrangulado.
- Hum, estou bem.
Ela fitou-me, em dúvida, mas não me pressionou. A chuva começou a abrandar. Nós tiramos as jaquetas e nos sentamos sobre elas. Observei a estátua de Alice no País das Maravilhas por um instante. Era assombrosamente linda.
- Aqui.
O ar no meu peito explodiu para fora de meu corpo quando Pêssegos bateu um livro com força contra meu corpo.
- Mas que...
- Não ouço você ler há uma semana - disse ela com a mão no quadril - Então, leia.
Reconhecendo o exemplar de Adeus às armas, ri.
- Sim, senhora.
Enquanto procurávamos a página onde tinham parado na última aula, Pêssegos se acomodou apoiando-se em mim, com a cabeça em meu ombro e o braço repousando em minha coxa. Encorajada, passei o braço pela cintura dela e a mantive próxima. À medida que as palavras de Hemingway rolavam de minha boca, ela se aproximava ainda mais, relaxando-me. Cheryl era quente em oposição ao ar gelado. Encostei o rosto no cabelo dela enquanto acariciava seu braço.
- Adoro ouvir você ler - sussurrou ela quando terminei o capítulo - Sua voz é...
Larguei o livro na grama úmida.
- O quê?
- É familiar para mim, como se eu a conhecesse melhor do que a minha própria.
O meu coração disparou. É claro que ela conhecia a minha voz. Foi tudo o que tinha pensado em usar para mantê-la calma na noite em que o pai dela havia morrido.
- E isso é bom?
- Sim. É bom - o sorriso dela era largo e sincero. Deixei que meus braços circundassem sua cintura e repousei o queixo em seu ombro, inspirando o cheiro dela - Me conta mais sobre os seus pais?
Mexi-me desconfortável, soltando um grunhido.
- Eu, hum, não sei...
- Tudo bem se você não quiser - disse ela - Só estava curiosa.
Olhei para a estátua à minha frente de novo. Queria compartilhar com ela. A única maneira possível de seguirmos adiante com o que quer que estivesse acontecendo entre nós seria se ambas conhecêssemos coisas a respeito uma da outra. É, a minha família seria um bom tópico para começar.
Mantive os olhos fixos nela, a ansiedade subindo por minha espinha, mas tudo o que via era encorajamento e afeição. Não havia julgamento algum, nenhuma condescendência, nenhum truque.
- Meu pai conheceu minha mãe quando eles tinham 18 anos - falei com um longo suspiro - Eles eram jovens, estúpidos e de mundos muito diferentes. Minha mãe, Agnes era de uma família muito rica. O pai dela, meu avô, William era dono de uma das primeiras empresas de comunicação do país, a WCS, juntamente com os Cooper's. Renato Topázio, meu pai, por outro lado, não tinha um tostão furado e o pouco que ganhava era de tocar em boates e pintar.
Revirei os olhos com a conotação romântica daquilo tudo.
- Foi assim que ele conheceu minha mãe. Ela o ouviu tocar piano uma noite e foi até ele. - estalei os dedos - Foi isso.
Pêssegos brincava distraidamente com a bainha da minha camiseta, seu silêncio me encorajou a contar mais, a contar tudo.
- Para a família da minha mãe, meu pai nunca foi bom o bastante. Ele era encrenca, um vagabundo, um inútil, mas minha mãe se rebelou e eles ficaram juntos. Se instalaram em um apartamento barato e nojento depois que meu avô cortou a mesada da minha mãe e, passado um ano, ela estava grávida de mim - massageei entre as sobrancelhas para amenizar a dor de cabeça, provocada pela tensão, atrás de meus olhos - Ela escondeu a gravidez por um bom tempo - ri sem graça - Ela me escondeu.
A mão de Cher segurou cuidadosamente meu queixo e lentamente ergueu meu rosto.
- Ei, está tudo bem.
Exausta com o tumulto de emoções que me assolavam, pressionei minha testa na dela e ela pressionou de volta, forte e estável.
- Minha mãe voltou para a família dela - continuei - Como meu pai não tinha dinheiro, ela retornou correndo como uma covarde. Meu avô disse para ela abortar e ela chegou a considerar a possibilidade. Foi só porque meu pai apareceu na casa da família, berrando e exigindo seus direitos, que eles cederam. Meu avô não queria um escândalo. Para resumir, minha avó, mãe da minha mãe, ficou enojada com o comportamento da filha. Ela lutou por mim e disse que minha mãe tinha que assumir suas responsabilidades. Um fundo fiduciário foi criado para mim e o pátrio poder foi conferido ao meu pai - zombei com uma voz baixinha - A vaca da minha mãe nem sequer lutou por mim.
Após uma pausa, prossegui.
- Sem o conhecimento do meu avô - disse com um sorriso satisfeito - Minha avó colocou as ações dela da WCS no meu nome no dia em que nasci. Ela fez os advogados redigirem um contrato secreto e inviolável, que eles nunca conseguiriam reverter. Os Cooper's ainda estão tentando revertê-lo para me tirar da empresa - sentir Cheryl ficar tensa - Eles só ficaram sabendo do contrato no dia em que ela morreu. Foi há dezasseis anos e, mesmo naquela época, as ações dela valiam pouco menos de... 50 milhões de dólares.
Pêssegos piscou.
- Cinquenta?
Assenti com a cabeça.
- Milhões? Caramba - ela sacudiu a cabeça, abismada - Topaz por que você está aqui? Você tem tantas coisas ao seu dispor. Com esse dinheiro todo, poderia ir a qualquer lugar, fazer qualquer coisa que quisesse, e recomeçar.
Dei de ombros.
- Não tenho acesso à grana. Está atrelada às ações e... Eu não ligo. Não tem importância alguma. Não preciso do dinheiro deles.
Os Cooper's, leia-se Wynonna, tinham conseguido congelar as minhas posses quando fui presa pela primeira vez.
- Você costuma ver sua mãe?
Balancei a cabeça.
- Ela morreu de câncer quando eu tinha 8 anos.
- Meu Deus, Toni, sinto...
- Não sinta pena - censurei - Ela não merece.
- Você não está falando sério.
- Não estou? - respirei fundo - Tudo o que ela fez foi me rejeitar. Ela não me queria. O único motivo de ficar comigo a cada duas semanas era o fato de minha avó ter exigido, em seu testamento, que o fizesse. Exigido. Ela só gostava de irritar o pai. Passou por uma fase rebelde e acabou engravidando.
- E seu pai?
Contraí o maxilar.
- Ele mora em Connecticut com a nova mulher. Não falo com ele. Podemos... Podemos falar sobre outra coisa? - movi o pescoço rapidamente para o outro lado, de modo que minha orelha tocasse meu ombro - Preciso me mexer.
Levantei-me, sacudindo os braços. Estava com um monte de energia acumulada que precisava ser extravasada. Peguei o maço de cigarros e acendi um, tragando fundo. Virei-me e vi Cheryl sentada, segurando as canelas e com o queixo apoiado nos joelhos, me observando.
Precisava mudar o foco de atenção. Não sentia-me confortável sendo analisada e, apesar de saber que ela não perguntava com a intenção de se intrometer, contar coisas pessoais a Pêssegos ainda era difícil para mim.
- Então, você vai me contar o que aconteceu nessa última semana em que você esteve longe?
Olho por olho e aquela coisa toda. Cheryl retorceu as mãos, constrangida, e apertou os lábios. Esperei por sua resposta, enquanto começava a chuver de novo.
- Minha mãe é uma mulher difícil - sussurrou ela.
Perguntei-me o que a mãe de Pêssegos achava do trabalho da filha e em como ela reagiria caso eu e Cheryl um dia talvez pudéssemos vir a namorar.
- Ela ainda me vê como uma criança de 9 anos em vez de uma mulher de 25. Ela pensa que qualquer um com uma ficha criminal é cruel como aqueles homens que mataram meu pai - recostei-me em uma árvore, fumando em silêncio. Bem, aquilo esclarecia as minhas duas dúvidas - Ela não concorda com as escolhas que fiz na vida. Acha que não posso tomar minhas próprias decisões, e, se as tomo, nunca são as certas, mesmo minha profissão.
- Você é uma professora incrível, Pêssegos.
- Obrigada. - ela abaixou a cabeça - Bom, era isso que meu pai queria para mim.
Não conseguia tirar os olhos de minha garota, tranquila e deslumbrante sob o crepúsculo. Nós tínhamos compartilhado tantas coisas nas últimas poucas horas, mas sabia que ainda havia muito para contar a ela. Só não fazia ideia de como tocar no assunto. Nós precisávamos se reconectar de alguma forma, encontrar o que tínhamos deixado no apartamento dela enquanto fazíamos omeletes. Decidida, joguei fora o cigarro, me afastei da árvore e fui até Cheryl, estendendo a mão em sua direção.
- O quê? - perguntou, inclinando a cabeça.
- Venha cá.
Sem hesitar, ela colocou a mão na minha. Seu toque fez meu sangue ferver e meu coração disparar. A levantei, guiando-a até ficarmos ao lado da estátua de Alice. Puxei Cheryl para perto de mim e ergui a mão esquerda dela na minha direita, observando a confusão se instalar em seu rosto.
- O que está fazendo?
Ergui o braço e a girei lentamente por debaixo dele.
- Estou dançando com você.
Apertei sua cintura um pouco mais forte e a inclinei tanto para trás que ela gritou e se agarrou aos meus ombros. Ambas rimos quando a trouxe de volta e fiquei feliz quando ela pressionou o rosto contra o meu.
- Isso é... Isso que você está cantarolando é Abba?
A vergonha cutucou o meu rosto.
- Hum... sim, acho que sim. "Mamma Mia", acho. Não sei. Por quê?
Pêssegos riu.
- Eu nunca imaginaria você como uma fã dos Abba.
Seus olhos foram diretamente para a camiseta dos Metallica que eu estava usando.
- Pare com isso - reprimi, pressionando o rosto dela contra meu peito, sorrindo da risada abafada dela.
Enquanto continuava a cantarolar, nós nos moviamos juntas lentamente e elegantemente, de um pé para o outro, em um círculo completo, abraçadas sob a chuva leve
- Meu pai adorava Abba - sussurrou ela - Ele costumava tocar "Dancing queen" no último volume na época. Deixava minha mãe e eu malucas.
- Ele tinha bom gosto.
- Ele tocou essa música no carro, no caminho... Na noite em que... - os meus braços a apertaram ainda mais, instintivamente - Como são estranhas as coisas de que a gente se lembra, né?
O meu estômago doeu. Será que este era o momento pelo qual tinha esperado? Será que esta era a hora certa de contar quem eu era, o que tinha feito? Será que este era o instante em que devia colocar na beira de um penhasco tudo o que tínhamos construído juntas e ficar esperando pela queda inevitável?
Fechando os olhos, deixei as palavras fluírem.
- Você se lembra da noite em que ele... Você sabe... Quando ele faleceu?
Ela ergueu os olhos para o céu noturno.
- Me lembro de tudo.
O meu estômago foi parar em meus pés.
- Lembra?
- Sim, tudinho - murmurou ela - Me lembro da viagem de Washington. Do hotel, de visitar o centro de reabilitação dele, a caminhada até a lanchonete, do momento em que eles o atingiram com o taco de beisebol.
Pressionei os lábios no cabelo dela.
- Eu lamento muito.
Eu odiava o fato de que ela estava sofrendo. Odiava não ser, na época, forte o suficiente para impedir aqueles idiotas de matarem o pai dela. E odiava saber, no fundo de minha alma, que Pêssegos também me odiaria por isso.
- Não lamente - disse ela - Ninguém poderia ter salvado meu pai. Nem mesmo eu, apesar de eu ter tentado ao máximo.
- Você tinha 9 anos.
Sabia que ela teria tentado, se pudesse. Ela teria lutado com todas as forças para impedi-los de machucar seu pai.
- Eu corri - sussurrou - Fugi quando ele precisava de mim.
O meu rosto desabou.
- Não faça isso consigo mesma - respirei fundo - Ele disse para você... correr, Cher.
Ela congelou nos meus braços. Fechei os olhos e entrelacei as mãos nas costas dela, com um medo repentino de que ela fosse fugir correndo. Não podia deixá-la escapar de novo. Não podia perdê-la.
- O quê?
Prendi a respiração.
- Ele disse para você correr.
Ela jogou a cabeça para trás. Seus olhos mostravam que as peças estavam se encaixando, lenta mas assertivamente, e tudo o que podia fazer era torcer para que ela esperasse, ouvisse e tentasse entender.
- Topaz. - a voz dela era trêmula - Como... Como você sabe disso?
Fiquei olhando para Cheryl, rezando para não precisar dizer aquilo em voz alta, mas sabendo, com cada centímetro de meu corpo, que precisava dizer. Tentei falar.
- Você me disse noite passada.
Ela não pareceu convencida. Pêssegos ergueu o queixo, analisando o meu rosto. Sua mente fervilhava por trás dos olhos castanhos. Eles brilharam de dor e choque ao mesmo tempo que ela ofegou alto, empurrando-me e interrompendo o abraço. Ela cambaleou para trás. O meu coração se despedaçou.
- Eu... Eu quero saber do que você se lembra.
Os meus braços ficaram parados ao lado do corpo. Eram inúteis sem ela neles.
- Por quê? - pressionou com raiva em sua voz - Por que quer saber? Por que Topaz?
Dei um passo para a frente e ela, instintivamente, um para trás. Apertei os dentes.
- Porque - comecei, esfregando as mãos no gorro, apavorada - eu estava... Porque... Pêssegos.
- Puta que pariu - gritou ela - PORQUÊ?
O grito dela ricocheteou em torno de nós enquanto a chuva começava a desabar e os céus se abriam acima de nós. Mas não importava. Estava amortecida. Fiquei olhando para Cheryl e ergui os braços por um instante antes de deixá-los cair, derrotada. Abaixei o rosto e me recompus, o medo martelando em minha cabeça.
- Porque eu estava lá.
A expressão no rosto dela me destruiu, deixando minhas pernas bambas. Meu Deus, ela parecia doente. Pêssegos começou a tremer e a ofegar enquanto resmungava palavras que não conseguia decifrar. Ela fechou os olhos enquanto sua boca continuava a balbuciar incoerentemente.
- Não. Não. Não - repetia - Não foi... Não dá.
- Era eu - sussurrei - Era eu, Cher. - ela emudeceu. Chegou a abrir a boca, mas não a deixei falar - Eu estava na região do centro de reabilitação de seu pai. Eu estava com Zack, mas tínhamos brigado e eu... eu o deixei na casa de um amigo. Eu estava fumando um cigarro e ouvi um grito, então fui ver o que estava acontecendo e... e os vi. Vi você. Vi quando eles bateram nele com o taco.
- Pare - rosnou Cheryl.
- Vi o cara bater em você...
- Pare, Topaz.
- Seu pai gritou para você correr e você não correu. Por que você não correu?
- Pare, porra!
- NÃO!
Dei três passos em sua direção e a segurei em meus braços. Ela começou a lutar contra mim. Sua pele estava escorregadia por causa da chuva, tornando difícil para segurá-la. Pêssegos bateu no meu peito e nos meus braços enquanto gritava para que a soltasse. Mas não soltei. Não podia soltar.
- Eu agarrei você - gritei sob os protestos dela - Agarrei e corri com você. Eu nunca tinha ficado tão assustada, Cheryl. Eu tinha que arrastá-la dali, você lutou pra caralho contra mim. Lutou como está lutando agora, como lutou ontem à noite. Mas eu não podia deixar você ir. Não podia. Eles teriam matado você, assim como o mataram.
Ela soluçava nos meus braços, seus joelhos estavam cedendo.
- Caímos no chão, e o seu cabelo, Cher. Meu Deus. Cabelo com cheiro de pêssegos. Minha Pêssegos.
A cabeça dela se ergueu de repente.
- ME LARGUE!
Com a fúria da voz dela, acabei a soltando e dei um passo para trás, só para receber um tapa quente no rosto. Por alguns segundos, o único barulho em torno de nós era o da chuva caindo nas árvores. Não aguentava olhar para ela e ver o ódio em seus olhos. Estava paralisada, desolada, mas não conseguia parar de contar tudo para Cheryl. Tinha que contar.
- Eu segurei você - murmurei - Por duas malditas horas, à porta de um edifício abandonado, sob um frio congelante, e conversei com você.
- Você - acusou - Você me impediu de... - ela mal conseguia falar em meio aos soluços - Eu podia ter... Eu podia ter... Ele era meu pai!
Voltei para ela, suas lágrimas magoadas e raivosas se misturando silenciosamente à chuva que escorria por seu rosto.
- Ele disse para você correr. Eu não podia ficar observando eles matarem você.
- Você não tinha o direito!
- Não tinha o direito? - argumentei, meu tom de voz aumentando, igualando-se ao dela - Seu pai queria você em segurança, Cheryl. Eu... Eu salvei você!
- Não, não salvou, Topaz! - gritou ela de volta - Não salvou porque eu morri naquela noite também, porra! - fiquei olhando boquiaberta para ela. Era como se tivesse dado um soco em meu estômago. Como ela podia pensar aquilo? - Eu... Eu preciso... Eu.
Ela me afastou e foi pegar a jaqueta e a bolsa, seus pés afundando nas enormes poças que tinham se formado por causa da chuva.
- Cheryl. - implorei - Não... Por favor!
Tentei segurar seu braço, mas ela se desvencilhou e me empurrou para longe.
- Não! - gritou com o dedo no meu rosto - Sua mentirosa! Você é exatamente como todos eles!
Pesquei os olhos, perplexa.
- Eu nunca menti! - berrei, a raiva se espalhando por meu corpo - Do que é que você está falando?
- Você nunca me contou! - ela me empurrou de novo - Há quanto tempo você sabia e nunca me contou? Isso faz de você o quê? A porcaria de uma mentirosa! - a devastação arqueou os meus ombros e levei as mãos à cabeça - Eu... Eu não posso ficar... não... em nenhum lugar perto de você. Preciso...
Pêssegos virou as costas para mim, pegou a bolsa e saiu correndo. Disparei atrás dela, pedindo que ela parasse, gritando que ela pensasse no que estava fazendo, no escuro, no meio do Central Park, mas apenas me ignorou. Eu poderia tê-la alcançado facilmente. Poderia tê-la derrubado no chão assim como tinha feito dezasseis anos antes, mas qual seria o sentido? Ela me odiava e não queria ficar perto de mim. Cheryl me chamara de mentirosa. Será que eu era?
Congelei com aquele pensamento e assisti impotente enquanto ela corria de mim. Sem ar, todo meu corpo parecia esfolado. Coloquei a mão no peito em uma tentativa fútil de parar o coração dilacerado que se contorcia ali dentro. Sem conseguir respirar, inclinei a cabeça para trás e rugi alto para o céu, liberando a frustração e a raiva que se agitavam em meu corpo.
Chutei o tronco de uma árvore próxima algumas vezes , berrando palavras e ruídos que eu mesma nunca tinha usado enquantorezava ao inferno para que a dor parasse. Exausta, apoiei as mãos nos joelhos,enquanto meus olhos seguiam o caminho que ela havia tomado. Quando já não conseguia mais vê-la e minha voz estava completamente rouca, cambaleei de voltaaté à jaqueta e os capacetes, voltando aos tropeços até Kala.
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