Capítulo 9- disponha
"A implicância é uma declaração de amor".
🍃Ludmilla Oliveira🍃
Estava ansiosa e nervosa. Droga, onde diabos Pêssegos estava? Eu aguardava sentada em uma sala melhor do que as que costumava frequentar, ao lado de Harry e de meu advogado com cara de rato. Giovanna, a avaliadora do meu caso, chegaria em 15 minutos e Pêssegos ainda não tinha chegado. Ela com certeza estava no prédio, Harry tinha me contado quando perguntei casualmente por onde ela andava. E não consegui ignorar o jeito como ele me olhou. Aquilo me deixou nervosa.
A porta se abriu e minha perna parou de tremer quando Brunna entrou. Ela estava deslumbrante com uma blusa azul-clara e uma saia-lápis preta. Seu cabelo estava preso em um coque frouxo e imediatamente quis soltá-lo e agarrá-lo, só para ver se ainda tinha o cheiro de pêssegos doces de que me lembrava.
- Desculpem meu atraso - falou ela dando uma olhada em minha direção.
Seu olhar demorou em mim e sorri de lado para ela. Harry pigarreou e a minha alegria sumiu na hora. Merda... Ele tinha noção de que estava rolando "alguma coisa" entre nós duas. E, desde que tinha desmaiado, só falava sobre Pêssegos. Era só uma questão de tempo até que Harry descobrisse tudo.
Teria que ser mais cautelosa. Sabia que ficava muito mais calma perto dela. Quando se tratava de Pêssegos, o meu temperamento tinha ficado sob controle e, por mais positivo que isso fosse, poderia se mostrar muito perigoso.
Com esse pensamento, me larguei na cadeira, afastando os olhos de Brunna, e comecei a batucar com os dedos na mesa à minha frente, uma maneira de me distrair. Naquele exato momento, Ward entrou na sala, seguido por Giovanna. Era uma mulher notável na casa dos 35 anos, com grandes olhos escuros e cabelos castanhos que escorriam até pouco abaixo dos ombros em ondas profundas.
Ward começou apresentando Brunna, que corou lindamente quando Giovanna elogiou seu trabalho. A avaliadora foi até minha mesa, sem dizer uma palavra, pegou todos os papéis de que precisava, se sentou na cadeira à minha frente e começou a escrever no topo do formulário de requerimento.
- Como você está? - perguntou ela - Você parece bem.
- É porque sou elegante - respondi em tom blasé e arrogante de sempre.
Ela apenas ignorou.
- A banca avaliadora da liberdade condicional vai se reunir daqui a seis semanas. É quando vai ser sua audiência. Mas tenho algumas preocupações com relação a certas questões que podem afetar seu requerimento - os meus pelos se arrepiaram - Tenho evidências aqui - afirmou ela enquanto pegava outro formulário - De que você demonstrou comportamento agressivo com outros detentos, funcionários, incluindo a Srta. Gonçalves e o Sr. Ward, e agrediu guardas quando estava sob a vigilância deles.
- Isso aconteceu porque um deles me agrediu - respondi com raiva - Quase quebrou a porcaria do meu pulso!
- Ludmilla - avisou Harry com um aceno imperceptível de cabeça.
- Vou averiguar essa questão - Giovanna garantiu, fazendo uma anotação em sua agenda - Mas, mesmo assim - continuou ela, erguendo a cabeça - Você tem muito mais pontos negativos do que positivos a essa altura. A questão é: O que você está fazendo para compensar esses incidentes?
- Como você sabe - disse Harry após um momento tenso de silêncio durante o qual fingi que meu sapato direito era a coisa mais fascinante do planeta - Oliveira tem trabalhando com a Srta. Gonçalves três vezes por semana, estudando literatura inglesa.
- Sim, estou sabendo disso - respondeu - Como têm sido as aulas, Srta. Gonçalves?
Pêssegos sorriu. Aquele maldito sorriso que me matava aos poucos, que atormentava meus pensamentos.
- Excelentes. Oliveira está trabalhado bem. Ela é empenhada e tem boas ideias a respeito dos tópicos que discutimos.
Giovanna fez uma anotação rápida.
- Fiquei sabendo que você e Oliveira tiveram alguns, digamos, desentendimentos logo que começaram.
Brunna cruzou as pernas e meus olhos automaticamente percorreram elas, cada centímetro daquela parte deliciosa que desejava apertar.
- É verdade.
- Mas não mais?
- Não. Oliveira e eu chegámos a um entendimento com relação à conduta dela durante as aulas. Sua atitude tem sido positiva e cooperativa. É evidente que ela quer aprender e ir bem.
- Isso é ótimo, mas... - disse Giovanna com um aceno de cabeça.
- Mas? - perguntei em uníssono com Harry.
- Mas os membros da banca não são idiotas. Têm noção de que o fato de você estar tendo essas aulas pode ser uma maneira de simplesmente ganhar pontos com eles.
- Com todo o respeito - interrompeu Harry - Não é essa a intenção?
- Sim, é claro - concordou - Mas Oliveira precisa mostrar que está fazendo isso porque quer e que percebe tudo o que aprende como útil a longo prazo - ela se virou para mim - É disso que se trata a liberdade condicional, Oliveira: do longo prazo - me fitou com olhos severos - Preciso ser honesta. Apesar de você se qualificar, a banca pode enxergar sua conduta passada como uma demonstração de que não observa as regras desta instituição.
Os meus olhos se viraram, indecisos, para Pêssegos, a decepção estampada em seu rosto.
- Qual seria o período desse longo prazo de que estamos falando? - perguntou meu advogado, enquanto fazia anotações em um bloco amarelo - Quanto tempo vai durar a condicional de Oliveira?
Giovanna se recostou na cadeira.
- Pela elegibilidade dela, se o examinador da audiência conceder a condicional, isso significa que ela seria libertada com quinze meses de antecedência.
- Doze meses, então - o advogado concluiu para ela.
- Creio que sim. Eu ficaria surpresa se eles concordassem com qualquer período mais curto. Os primeiros nove meses devem ser monitorados de perto por mim, como oficial de condicional designada, e por Harry, se quiserem continuar os encontros depois da condicional.
- Então, nós continuaremos as aulas particulares depois da soltura? - perguntou Pêssegos.
- Isso com certeza seria algo a se pensar - respondeu Giovanna - Mostraria à banca que Ludmilla está dedicada e levando a sério a reabilitação. Precisam discutir entre vocês e decidir antes da audiência. Há algo mais que você gostaria de perguntar ou acrescentar, Oliveira?
Limpei a garganta.
- Se, hum, se eu continuar com as aulas particulares depois que for solta, teremos que fazer isso por quanto tempo? Quero dizer, seria para sempre?
Giovanna meneou a cabeça.
- Ao final dos seus nove meses iniciais de monitoramento, você vai se encontrar mais uma vez com a banca e a situação será reavaliada. Se a Srta. Gonçalves realmente concordar, ela vai ter que fazer anotações minuciosas, detalhando o que você estudou e quais são os resultados, bem como se encontrar com a banca para explicá-los.
- Isso não será um problema - disse Pêssegos com firmeza.
- Fico feliz em ouvir isso - Giovanna se voltou para mim de novo - Mas você sabe que haverá outras condições a cumprir, incluindo testes antidoping regulares e toques de recolher.
É, a condicional seria só brincadeira e diversão.
(...)
Parecia prestes a fumar o meu próprio macacão quando Brunna entrou.
- Por favor, pelo amor de tudo o que é sagrado, me diga que você tem...
- Cigarros - ela sorriu, erguendo um maço de Marlboro - Aqui estão - disse ela, jogando-os para mim.
Abri o maço e peguei um. Ela ficou me observando enquanto tragava a fumaça e fechava os olhos. Fiz isso duas vezes antes de olhar para ela novamente.
- Obrigada - murmurei em meio a uma névoa fumacenta.
Brunna deu a volta na mesa, para ficar ao meu lado, e notei que o guarda parecia não se preocupar mais com a proximidade entre ela e eu. Pêssegos colocou o texto de "O mercador de Veneza" na minha frente e se sentou com seu próprio exemplar.
- Eu queria dar uma olhada neste monólogo em particular - ela apontou para a página - Estou interessada em ouvir sua interpretação dele.
- Este monólogo? Que previsível.
Ela bufou.
- Previsível ou não, é uma parte importante da peça e quero saber o que você pensa a respeito dele. Mas talvez sua resposta seja simplesmente tão previsível quanto minha escolha de monólogo.
🌻Brunna Gonçalves🌻
Ela arqueou uma sobrancelha. Havia começado a gostar de provocá-la.
- Tudo bem, Pêssegos - disse ela, recostando-se na cadeira. - Vou morder a isca. O que você quer saber?
- Surpreenda-me.
Ela bufou e apagou o que restava do cigarro.
- Este monólogo é feito por Shylock.
- Uau - respondi com os olhos arregalados - Isso é incrível! Os estudiosos de Shakespeare ao redor do mundo vão mijar nas calças de animação com esse seu insight fantástico!
Ela riu.
- Ok, Pêssegos - falou ela - "Por eu ser judeu..."
Fiquei boquiaberta. Ela havia recitado o monólogo inteiro sem olhar uma vez sequer para a página à sua frente. Em vez disso, os olhos dela se fixaram nos meus, castanhos e brilhantes. Ouvi-la recitar Shakespeare era indescritivelmente erótico. Os olhos dela queimavam com a paixão que Shylock com certeza transmitiria nos tribunais enquanto expressava sua raiva perante a injustiça que tinha sido cometida contra ele.
Tentando ao máximo manter a compostura, comentei:
- Impressionante. Mas você ainda não respondeu minha pergunta.
Ela ergueu as sobrancelhas.
- É sobre vingança. Ele está compreensivelmente puto com a maneira como foi tratado por causa de sua religião e jura parar aquela "vilania" com uma canalhice própria. Só que a "vilania" dele vai ser bem pior. Shylock é malvadão.
- Então isso justifica o tratamento que Solanio e Salarino deram a ele? Ele é "malvadão", certamente merece o que está acontecendo com ele?
Oliveira zombou.
- Eles só estão tratando o cara assim porque são uns panacas de mente limitada que não veem nada a não ser um rótulo em Shylock. Para eles, "judeu" é sinônimo de "mau". Mas o antissemitismo ostensivo não é o aspecto mais importante da peça ou do monólogo.
- Não é?
- Não - respondeu, se inclinando para a frente, decidida - Shylock diz: "Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos?" Ele está querendo dizer que não importa a religião dele, ou o rótulo que lhe deram, ele é humano assim como aqueles desgraçados que o trataram como merda. As pessoas em todos os lugares, todos os dias, julgam as outras por causa de sua cor, sua religião, seu passado, sua raça, sua orientação sexual... sua ficha criminal - ergui os olhos para ela - O mundo é um lugar horrível e Shylock é o único, em toda a peça, que tem colhões para falar a real sobre aquilo. A ironia de que um judeu supostamente não inteligente, mau e pouco educado tenha tamanha coragem é que torna a coisa toda importante. O fato de ele ser judeu é apenas um recurso da trama.
Eu estava pasma. Seu fervor fazia com que pensasse que tipo de intolerância ela tinha encontrado para levá-la a se identificar tanto com a personagem. Será que fora tratada de forma parecida por causa do período na prisão?
Ela se largou na cadeira, roçando o dorso da mão no meu joelho. Prendi a respiração com o contato.
- As pessoas acham que ele é um bárbaro porque promete vingança, mas quem é que pode culpar o cara? Se colocaram esse rótulo nele, por que ele não deveria fazer valer o título?
- Ele poderia ter surpreendido as pessoas - respondi, notando uma mudança definitiva no tom da discussão - Poderia ter se comportado de maneira diferente, calma, e mostrado que era uma boa pessoa.
Ela meneou a cabeça.
- Não é assim que funciona quando a carapuça, ou o rótulo, serve - ela apontou para si mesma - Para criminosos não existe bondade suficiente que apague isso. É mais fácil corresponder às expectativas das pessoas do que tentar mudá-las. Evita a decepção de todos os envolvidos.
Franzi a testa.
- Então por que você está aqui e por que eu disse que ajudaria você a conseguir sua condicional e toleraria essa sua cara rabugenta por, possivelmente, mais doze meses?
Ela sorriu.
- Não sei, Pêssegos. Por que você fez isso?
Mantive os olhos nela por um longo momento antes de abaixá-los para a peça.
- Tenho meus motivos.
- Sua própria libra de carne - a minha cabeça se ergueu rapidamente depois daquelas palavras, mas ela estava ocupada brincando com o maço de cigarros - E eu estou aqui porque... tinha que estar - confusa, abri a boca para falar, mas ela me interrompeu - Você estava mesmo falando sério?
- Falando sério quanto a quê?
- Que você vai continuar com nossas aulas.
- Sim - respondi - Quero ajudar você de todas as maneiras que puder.
A boca de Ludmilla se contorceu.
- Por quê?
Sorri, mesmo que nem eu saiba exatamente ao certo porquê. Perto de Oliveira me sinto diferente, talvez segura e... completa.
- Porque adoro me castigar.
Ela tossiu para disfarçar sua risada de surpresa.
- Justo. Por um momento, achei que fosse só porque você queria ficar perto do meu corpinho sarado sem os guardas e as câmeras por perto. Mas tudo bem.
O seu rosto não indicava nenhuma emoção. Coloquei as mãos no rosto.
- Sou tão transparente - ri quando ela bufou, surpresa - Agora cale a boca e faça esta atividade.
Empurrei uma folha e uma caneta para ela.
- Sim, senhora - respondeu com uma piscadinha que deixou partes do meu corpo em um pequeno frenesi.
Nada de guardas ou câmeras, foi o que fiquei pensando enquanto assistia Ludmilla escrever. Permiti que meus olhos a explorassem, desde seu cabelo desarrumado e completamente sexy aos seus seios marcados pela roupa laranja. Senti o sangue ferver de excitação quando minha mente começou a divagar.
(....)
🍃Ludmilla Oliveira🍃
- Filha da puta!
- Otário!
- Mané!
- Monte de merda!
- Puta!
Parei de me mover e levantei lentamente da minha posição curvada, parando a bola de basquete e segurando-a com uma única mão. Arqueei uma sobrancelha confusa para Riley, que estava ofegando entre dentes cerrados e bochechas vermelhas. O observei por pelo menos vinte segundos.
- Que diabos você está esperando? - rosnou Riley, endireitando-se de leve.
- Você acabou de me chamar de puta? - perguntei com a sobrancelha arqueada.
Riley ficou totalmente ereto e me encarou de volta. Ele fungou e deu uma olhada para os outros dois detentos que vinham jogando aquela partida de basquete quase violentamente pelos últimos quarenta minutos. Ambos começaram a se mexer desconfortavelmente, mudando o peso do corpo de um pé para outro. Riley voltou a me encarar.
- Sim - respondeu ele, erguendo o queixo, desafiador - Chamei. E daí?
Franzi a testa e dei um sorriso malicioso.
- Só para confirmar - respondi antes de lançar a bola por cima da cabeça de Riley para meu parceiro, Greg, que a pegou e arremessou, como um verdadeiro profissional, pelo aro, vencendo o jogo por dois pontos.
- ISSO AÍ! - rugi com os punhos fechados. Corri até Greg e o agarrei com brutalidade pelo pescoço, esfregando os dedos com força até demais em sua cabeça - ISSO, MOLEQUE!
- Sua trapaceira! - berrou Riley, apontando o dedo para mim - Você... você roubou!
Ri e meneei a cabeça depois de soltar Greg, que parecia aliviado.
- Perder sem dignidade ou elegância não é bonito, Moore - comentei enquanto caminhava de maneira despreocupada em direção a Riley.
- Ah é? - questionou - Bom, Oliveira, posso não ter dignidade ou elegância, mas com toda a certeza tenho um punho para acertar a sua cara e um pé para dar no seu traseiro trapaceiro.
Parei no meio do caminho e percebi o brilho nos olhos de Riley, e, em poucos segundos, estava correndo como o diabo foge da cruz pela quadra, enquanto ele corria em minha direção.
- Volte aqui, sua cagona! - gritou Riley, me perseguindo em meio aos detentos e guardas, que pareciam incrédulos.
Eu ofegava enquanto me desvencilhava dos braços do gorila vulgo Riley, incapaz de tirar o sorriso largo do meu rosto. Minha felicidade extrema e satisfação presunçosa foram interrompidas quando percebi que não tinha mais para onde fugir e estava de frente para um paredão de tijolos com um homem igualmente grande se aproximando de mim. Virei-me para encarar meu perseguidor e implorar por rendição mas antes, ouvi um grunhido alto e estrangulado sair da sua boca quando chegou com tudo em mim.
Riley me segurou e foi me arrastado de volta. Os guardas estavam rindo e tirando sarro dos palavrões de baixíssimo calão que soltava por minha traqueia quase estrangulada.
- Riley - ofeguei, agarrando o antebraço que mais parecia um tronco de árvore em volta do meu pescoço.
- Desculpe, o que você disse? - perguntou Riley em voz alta - Não falo "filha da putês". Você vai ter que falar com mais clareza.
Não consegui não soltar uma risada sufocada.
- Riley! - agarrei o pulso dele com os dedos - Cara, por favor! Eu... cacete! Riley, me desculpe! - ele sorriu e piscou para a grande e entretida plateia que tinha se aglomerado e soltou o meu pescoço que estava repousando confortavelmente na dobra do seu braço - Babaca - murmurei rindo.
A multidão se dispersou decepcionada quando percebeu que era tudo brincadeira e que ninguém ia ser atirado aos tubarões. Riley bufou.
- Trapaceira
- Touché! - reconheci com um sorriso torto.
- Ei, Srta. G! - berrou Riley, me assustando.
Virei-me e vi Pêssegos saindo do carro, meio escondida atrás de uma bolsa enorme, indo em direção à entrada principal, dando um aceno discreto para Riley. Permiti que o canto direito da minha boca se erguesse em um pequeno sorriso e franzi a testa quando ela abaixou a cabeça e apressou o passo. Esfreguei a mão na barriga ao sentir um desconforto no estômago. Aquilo estava me incomodando havia dias.
Riley abaixou os braços.
- O que foi aquilo? - ele ficou olhando para mim, esperando uma explicação.
Coçei o rosto antes de caminhar até meu banco de costume e puxar um cigarro. Acendi, traguei e expirei, sacudindo a cabeça.
- Ela anda esquisita há umas duas semanas - confessei, apontando para o estacionamento com a cabeça.
- A Srta. Gonçalves? - quis saber Riley.
Confirmei e passei o cigarro para ele.
Tentei ignorar o comportamento de Pêssegos, mas a situação foi ficando cada vez mais difícil. Aquilo tinha começado logo após a primeira reunião da condicional com Giovanna. Ela mal me olhava durante todo o tempo de aula. Não tinha forçado a barra, sentindo que era algo que talvez não quisesse saber. Mas depois de duas semanas, a minha paciência estava no limite.
- Você acha que tem algo a ver com a sua condicional? - Riley me devolveu o cigarro.
Fingi indiferença, apesar de morrer de medo de que aquela fosse a razão por trás da distância repentina dela. Talvez Brunna estivesse arrependida de ter concordado em me dar aulas particulares para fora da prisão. Talvez quisesse pular fora, mas não soubesse como.
Estava acostumada a ser desapontada, mas, diabos, será que Pêssegos podia mesmo ser assim? Odiava a sensação de impotência que ela causava em mim. Não era sequer a ideia de não ter a condicional concedida, embora, claro, isso fosse uma merda. Tinha mais a ver com o fato de que não teria uma razão legítima para ver minha Pêssegos fora da Arthur Kill.
Soltei a fumaça pelo nariz com irritação, ciente de que o circo que estava armado dentro da minha cabeça não iria mudar em nada até que dissesse algo a ela.
- Ora, pergunte a ela, Oliveira - sugeriu Riley, olhando na direção dos campos nos fundos da penitenciária.
Bufei.
- Claro, Riley.
Ele estalou a língua no céu da boca.
- Cagona.
- Tanto faz - respondi, tragando o máximo do cigarro antes de soprar tudo no rosto de Riley - Perdedor
A gargalhada estrondosa dele e o tapinha zombeteiro que deu nas minhas costas reforçaram a determinação de confrontá-la aquela tarde. Mas, santo Deus, quando Pêssegos entrou na sala de aula cinco horas depois, ela estava usando uma saia cinza absolutamente deliciosa e uma blusa de seda rosa-pálido que fizeram todos os meus pensamentos coerentes e todo o sangue de minha cabeça correrem em uma direção bem específica.
Droga. Suspirei e murmurei algo profano quando ela largou o material e os cigarros na mesa entre nós.
- Algum problema? - perguntou ela, dando uma olhada rápida na minha direção.
Dei uma risadinha entre as mãos e meneei a cabeça.
- Não, nenhum. Prossiga - aquela mulher seria a minha morte. Segurei o rosto com as mãos e observei ela quase se enterrando dentro daquela bolsa de Mary Poppins que tinha trazido - Pêssegos - murmurei por trás do filtro do cigarro que repousava em meus lábios.
O apelido que tinha dado a ela pegara bem e o usava livremente. No fundo, tinha ficado animada por ela ter aceitado aquilo sem questionar como ou por quê.
- Hum? - veio a resposta resmungada das profundezas escuras.
- Que diabo você está fazendo aí?
Brunna congelou antes de sair lentamente daquela monstruosidade cavernosa e deu um sorriso leve e envergonhado.
- Só estou... hum... procurando uma coisa.
Sorri.
- O quê? As botas que Judas perdeu?
Ela ergueu as sobrancelhas para o guarda, que escondeu o riso atrás da mão direita e revirou os olhos para nós.
- Não, sabichona
Gonçalves posicionou sua cadeira ao meu lado, como fazia em todas as aulas, e colocou o meu trabalho em cima da mesa. Explicou os comentários que tinha feito e fez perguntas motivadas pelas minhas resposta. Nós ainda estávamos bem envolvidas com "O mercador de Veneza".
- Você diz aqui que Pórcia é a personagem mais inteligente da peça, mas não explica por quê - disse ela, dando uma olhada no meu trabalho. Observei-a colocar o cabelo atrás da orelha - Poderia explicar?
Ela se recostou na cadeira, distanciando-se de mim e desviando o olhar.
- Por que você fez isso? - reclamei.
- Como?
- Isso - repeti, apontando para a maneira como ela estava sentada - Por que se afastou desse jeito? - os meus olhos se arregalaram quando, após alguns segundos, ela ainda não tinha respondido - Esqueça - murmurei, puxando o trabalho para perto de mim.
- Não - disse Pêssegos com firmeza, colocando a mão em cima da mesma folha de papel. Os meus olhos encontraram os dela - O que você quis dizer com isso, Oliveira?
Resmunguei de novo, pegando o maço de cigarros para ficar remexendo. Ela esperou pacientemente.
- Você está pirando por causa da minha condicional? - questionei ela. A pergunta pareceu tê-la assustado pra caramba, mas não lhe dei tempo de responder - Sinceramente, eu prefiro que você seja honesta comigo e me diga agora. Porque não vou ficar na frente daqueles idiotas presunçosos toda cheia de esperança e tal para você chegar e dizer que não vai até ao fim com isso por causa de... sei lá o quê.
Ela piscou. Abriu a boca para falar, mas nenhuma palavra veio. Como podia pensar que ela iria largar minha mão?
🌻Brunna Gonçalves🌻
Sim, eu estava me comportando de um jeito diferente com ela, mas não podia lhe explicar o porquê. Preferiria morrer antes. A verdade é que, há duas semanas, os meus pesadelo tinham parado. Teria ficado eternamente grata se eles não tivessem sido substituídos pelos sonhos mais eróticos que já tive.
Eles começaram bem ingênuos, mas nas últimas quatorze noites vinham se tornando cada vez mais intensos. Geralmente, isso não seria um problema, havia tido sonhos picantes antes, é claro, contudo, a mulher que andava protagonizando meu showzinho pornô particular era ninguém menos que Ludmilla Oliveira.
Desde que comecei a ter esses sonhos, estava vivendo um inferno. Como podia ter sonhos tão arrebatadores com uma mulher que mal conhecia? E como conseguiria continuar a vê-la por pelo menos mais doze meses do lado de fora do ambiente protegido, bem monitorado e mantenha-as-mãos-perto-do-próprio-corpo-e-não-teremos-problemas da Arthur Kill?
Não que um dia sonhasse em colocar a mim mesma ou Ludmilla naquela situação. De jeito nenhum. Ainda era sua tutora e ela era minha aluna. Ocupava uma posição de confiança e não iria prejudicar aquilo que batalhei tanto para construir. A política de não confraternização com certeza seria reforçada durante a condicional também.
- O que deu a você a impressão de que eu não queria ajudá-la a conseguir a sua condicional? - perguntei a ela por fim.
- Sei lá. Você está diferente. Como se andasse preocupada com alguma coisa, ou nervosa. Eu não sabia se era a ideia de continuar com as nossas aulas que estava apavorando você.
Ela escondeu bem a mágoa na voz, mas seus olhos a traíram quando se abaixaram para fitar a mesa. Ela tinha reparado que estava distante. De repente, não sabia se era para sentir-me lisonjeada ou apavorada por ela ter notado. Engoli o pânico e me aproximei dela, lutando contra a vontade esmagadora de tocar em seu rosto.
- Não pretendo desistir. Realmente quero ajudá-la a conseguir sua condicional e quero continuar com nossas aulas - permiti que seus olhos encontrassem os meus - Desculpe se fiz você duvidar disso. Não vou decepcioná-la. Pode contar cem por cento comigo.
Surpreendi-me com minhas próprias palavras, mas sabia, que no fundo, que elas eram de coração. Libra de carne ou não, iria ajudar Ludmilla e ninguém poderia mudar isso.
- Ok.
Nós permanecemos em silêncio por uns instantes, mas nenhuma das duas se sentiu desconfortável.
- Você está muito nervosa com relação ao pedido de condicional? - perguntei, após assistir ela apagar o cigarro.
Ela negou com a cabeça.
- Shylock - murmurei - Corajoso como sempre
- É o que Pórcia diz - retrucou com um sorriso.
- A personagem mais inteligente de "O mercador de Veneza" - acrescentei em um tom mais baixo, galanteador.
- Bem, foi ela que salvou Shylock - respondeu.
A metáfora não passou batida por mim. Sabia que Oliveira se via como inferior por causa de suas escolhas de vida, assim como as pessoas viam Shylock como inferior por causa de sua religião.
- Salvou mesmo - meus olhos pararam no trabalho de Ludmilla - Mas se vamos falar de personagens literários, não acho que Pórcia seja a certa a quem me comparar.
- Ah, não? - perguntou - Em quem você estava pensando? A Rainha de Copas, de Alice no País das Maravilhas? Hécate, de Macbeth? - ela estalou os dedos ao ter uma inspiração - A Feiticeira Branca, de "O leão, a feiticeira e o guarda-roupa"?
Entrando na brincadeira dela, peguei a caneta e comecei a fazer uma lista de compras.
- Não - respondi, com indiferença - Mas obrigada por me lembrar do que preciso comprar: machado, caldeirão, manjar turco.
- Está bem - disse ela com um riso - Sério, quem você escolheria?
- Essa é fácil - respondi. - Eu gostaria de ser o Walter, o ratinho de Walter, the Lazy Mouse, aquele clássico da literatura infantil americana.
Ela pareceu confusa.
- Não o coelho de "O coelho de veludo" ou a aranha de "A teia de Charlotte", já que estamos falando de literatura infantil americana?
Meneei a cabeça.
- Não. As meninas do colégio costumavam ler isso. Mas, para mim, sempre foi o Walter - me virei para ela - Você conhece a história?
- Me conte.
- Walter é um ratinho bem preguiçoso - comecei - É tão preguiçoso que nunca se levanta para ir à escola, sair com a família ou brincar com os amigos, e logo todos esquecem que ele existe. Um dia, sua família vai embora enquanto ele está dormindo - ela se afundou na cadeira, ouvindo atentamente - Ele decide ir procurar pela família - continuei - Conhece muitas criaturas em suas viagens, incluindo sapos que Walter tenta ensiná-los, mas, como tinha perdido muitas aulas no colégio porque ficava dormindo, não consegue se lembrar de como fazer aquilo.
Por um momento desolador, podia ouvir meu pai lendo para mim.
- Pêssegos - sussurrou Ludmilla.
A tristeza pesou nos meus ombros.
- Meu pai costumava ler essa história para mim quando eu era pequena. Ele fazia todas as vozes.
Ela cruzou os braços em cima da mesa.
- Ele parece... Ele parece ser um cara legal.
Um leve sorriso repuxou nos meus labios.
- Ele era. Ele dizia que não importavam os obstáculos, se eu fosse determinada como Walter, poderia fazer qualquer coisa a que me dedicasse.
- E você conseguiu? - perguntou, pegando-me de surpresa.
- Consegui o quê?
- Fazer aquilo que estava determinada a fazer, sem se importar com os obstáculos.
Sorri, constrangida.
- Estou aqui, não estou?
- Sim, está.
Desviei os olhos para a parede. O tempo tinha acabado. Ludmilla me observou enquanto começava a pegar minhas coisas.
- Talvez eu tenha que dar uma procurada nesse livro na biblioteca da penitenciária, sabe? - disse casualmente - Você acha que a biblioteca da Arthur Kill teria livros infantis ou isso não estaria de acordo com a norma aqui?
Ela não conseguiu conter um sorriso.
- Ah, Riley deve ter um exemplar escondido debaixo do travesseiro para ler em noites frias e solitárias. Vou pedir a ele - falou rindo.
- Falando muito sério. Se você encontrar um exemplar, me avisa?
- Aviso - respondeu com sinceridade.
- Ei, Lud - chamei enquanto o guarda destrancava a porta - Obrigada por hoje.
- Disponha, Pêssegos - sussurrou ela - Disponha.
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