A noite estava clara, iluminada pela lua cheia, cujo brilho era amplificado pela ausência de lâmpadas naquele rancho remoto e esquecido pelo resto do mundo. No minúsculo quarto, além da luz que entrava pela janela aberta, apenas um feixe tímido se insinuava pelo vão da porta de madeira carcomida por cupins, umidade e descaso. 

Não havia sons na casa. Nenhum ruído podia ser ouvido além do coaxar de sapos e do farfalhar da vegetação que dançava ao sabor da brisa da noite quente. O silêncio perdurou, até que um timbre infantil se projetou pelos corredores da humilde residência. 

Era a voz de uma garota, cuja idade transitava entre a inocência da infância e o drama da adolescência. No espaço de paredes desbotadas e piso desgastado, ela mantinha metade do corpo oculto sob o lençol amarelado e cheirando a mofo, contudo, isso não a incomodava.

A lua banhava de prata a pequena cama tubular, onde a garota espalhava sobre o colchão folhas e mais folhas de um bloco de desenho que sua mãe lhe dera. Tratava-se de um presente muito especial, pois dessa vez, ela também ganhara uma caixa nova de lápis de cor. Empolgada, a menina preenchia as páginas com ilustrações coloridas e vibrantes.

"Um príncipe... Não! Dois príncipes! Eles se odeiam e vão lutar até a morte pelo direito à mão da Princesa Perdida" ela murmurava enquanto criava o cenário, os personagens e a trama; os lápis de cor deslizavam sobre o bloco, dando forma a duas figuras antagônicas: uma de azul, outra de verde.

"Oh não! A princesa está guardada por um ser muuuuuito feroz! Ele não vai deixar ninguém se aproximar!" Por trás dos príncipes, um imenso dragão vermelho ganhava forma e cor, e por cima do monstro, surgia uma princesa de cabelos dourados. 

"Fique longe dela, seu monstro!" a voz infantil imitava a voz do príncipe de azul, ecoando num timbre grave e empostado. "Oh, Príncipe Azul, salve-me do dragão antes que o herdeiro da Floresta Sombria faça isso!" — agora, sua voz aguda soava enquanto um chifre era desenhado na cabeça do personagem vestido de verde. 

Dos rabiscos, um redemoinho ganhava forma, ocupando uma grande área do papel e, numa nova página, o ser de verde parecia bem maior.

"O Príncipe Azul jamais enfrentará o Dragão Vermelho!" com a voz grave, ela imitava o Príncipe Verde, depois simulava a resposta numa voz aguda: "Príncipe Verde, se me salvar do domínio do Dragão Vermelho, viverei com você para sempre na Floresta Sombria!"

Mais uma folha era arrancada do bloco, e o novo espaço em branco, palco perfeito para sua fértil imaginação, ganhava cores e formas difusas.

"Lápis vermelho, um pouco de roxo... hm... Muito bem..." murmurava enquanto traçava os contornos fugazes do dragão, mais imponente e raivoso, muito maior do que os dois príncipes rivais. 

Com mais alguns traços, o Príncipe Verde ganhava uma lança e uma armadura, e era representado numa postura de combate contra o Dragão Vermelho.

"Princesa, o dragão é muito forte! Ele nunca deixará que você seja livre!" A espada ganhava um tom de vermelho."Não desistam! Eu preciso ser livre!"  

A voz aguda foi ecoando no silêncio noturno enquanto a garota mergulhava em seu mundo de fantasia, compenetrada na última cena do combate. "Amarelo e laranja para o fogo, e agora o preto..." 

Então, um som real paralisou o movimento do lápis. O rangido das dobradiças enferrujadas da porta sobrepujou os sons da noite, e uma luz tênue vinda do corredor invadiu o quarto. Prendendo a respiração, a garota se escondeu sob o lençol, deixando as imagens escorregarem até o chão. 

Por baixo do lençol, ela viu quando a ponta de uma bota cheia de barro pisou e enlameou sua última ilustração. O lençol foi puxado de uma vez, fazendo voar várias folhas, e o som dos lápis de cor atingindo o piso fez uma lágrima brotar nos olhos amendoados e aflitos da menina. 

Os desenhos saíram da ordem. Só permaneceu no lugar uma única figura suja de terra: um dragão lançando fogo sobre dois príncipes, agora representados como duas pilhas de pó negro.