71 - Outra Garota na Janela
Felipe conversava com uma auxiliar de enfermagem quando o médico retornou à baia de atendimento, acompanhado por um policial.
— Felipe, boa noite. Sou o Dr. Sérgio, e estou aqui com os resultados da ressonância que você fez assim que deu entrada no hospital.
— Boa noite, doutor — Felipe respondeu, sem tirar os olhos da bandeja de medicação que a mulher insistia em administrar; ele, porém, negava terminantemente.
— Bem, fora o corte na região parietal... — o médico continuou, intrigado com o clima tenso entre o paciente e a auxiliar de enfermagem —, não foi detectado nenhum outro dano. No entanto, será preciso que você permaneça algumas horas internado, em observação.
— Sem problemas. Não me importo de esperar, mas não quero ser medicado.
— Doutor — a profissional se voltou para o médico —, o paciente recusa a medicação. Diz que não tem alergia a nada, mas não quer ser medicado.
— A medicação é para evitar que o seu corte infeccione — o médico esclareceu. — Posso saber a razão de não aceitar os remédios?
— Sou dependente químico.
Felipe não costumava dizer isso em voz alta, mas agora, não parecia algo tão importante. Depois da última recaída, a mais severa de todas, ele simplesmente aceitou que aquilo era parte dele, e seria enquanto vivesse. Longe de ser motivo de orgulho, também não precisava ser sua vergonha. Estava farto de se envergonhar por estar vivo.
O médico ergueu as sobrancelhas, então acessou o tablet em suas mãos. Passou os olhos pelo prontuário, e, após alguns minutos, pronunciou-se:
— Felipe, nós já sabíamos do quadro de dependência, pois esse dado consta nas suas informações de saúde. Fique tranquilo pois nenhuma das medicações receitadas atua no sistema nervoso central, e não oferecem qualquer risco. Peço que reconsidere e aceite a medicação.
Felipe pareceu bem nervoso, mas depois de alguns minutos tensos, apenas assentiu. Após um aceno do médico, a auxiliar administrou os medicamentos através do acesso intravenoso.
— Não é que eu não queira, entende? Na verdade, eu daria qualquer coisa para... — com um suspiro pesado, Felipe desistiu de completar a frase.
Não seria necessário. O médico entendia a situação.
— Você parece estar indo bem, Felipe. Continue assim. Sei que às vezes você deve achar que não vai dar conta, mas você já passou da pior fase.
Felipe aquiesceu, então ergueu os olhos para o policial ao lado do médico, intrigado.
— Tem mais coisa, não tem? — arguiu, apreensivo. Ele não fazia ideia do que havia acontecido na casa após ele ter sido "nocauteado", e isso o corroía.
— Bem... sim, sim — o médico sorriu brevemente na tentativa de tranquilizar o paciente —, estou aqui com o policial Medeiros, e ele gostaria de lhe fazer algumas perguntas. Você se importaria de conversar com ele agora?
— Boa noite, policial — Felipe cumprimentou, educadamente.
— Boa noite, Sr. Felipe. Eu espero que o senhor compreenda minha necessidade de esclarecer alguns detalhes, dada a urgência desse caso, pois se trata de um caso de invasão, seguido de agressão e mariticídio. Gostaríamos de não ter que esperar muito para colher os depoimentos dos envolvidos.
— Mariticídio...? Então, ele está mesmo morto? — Felipe ficou ainda mais confuso, mas também aliviado por aquele traste ter morrido, e aparentemente, não pelas mãos de quem ele imaginava.
— Está. É uma situação delicada, havia muita gente na cena do crime, então precisamos eliminar as pontas soltas.
— Eu entendo. Precisa mesmo esclarecer, pois o buraco é bem mais embaixo... — Felipe respondeu, soturno.
— Certamente que sim. Posso fazer as perguntas?
— Antes, me diga como elas estão.
— Elas...?
— Gabriela e a garota, a adolescente.
— Ah sim... Bem, a garota, Natália, está sob os cuidados do Conselho Tutelar, e está aqui no hospital, sendo devidamente acompanhada dada a complexidade de seu quadro. Gabriela também está aqui, em observação, mas precisará fazer o exame de corpo delito.
— Ela está ferida? Aconteceu alguma coisa com ela? — havia alarme na voz de Felipe.
— Ela está bem. Em choque, mas bem. Não foi ferida, contrário a isso, foi uma das agressoras. Inclusive, eu preciso saber se o senhor vai prestar queixa.
— Prestar queixa?
— Sim. Contra Gabriela.
— Por que eu prestaria queixa contra ela?
Medeiros cruzou os braços e encarou Felipe por alguns segundos antes de perguntar:
— Qual a natureza da relação de vocês?
— Ela é minha namorada — Felipe respondeu, dando-se conta nesse momento que nunca antes havia pronunciado tais palavras.
— Pelo que consta nos depoimentos, sua namorada agrediu você.
— Ela... — Felipe franziu o cenho, tentando se lembrar. A última imagem que tinha registrada na memória era do rosto arroxeado de Jorge.
Tudo veio de uma vez: os sons, o cheiro rançoso da casa misturado ao suor do homem, os ruídos que o sujeito fazia na tentativa de respirar, o prazer desmesurado por ter a vida daquele monstro entre os dedos... e a dor aguda na lateral da cabeça. Involuntariamente, seus dedos tocaram a região coberta por uma bandagem.
Foi Gabriela, então?
— Vai prestar queixa contra ela? — Medeiros insistiu.
— Não! É óbvio que não...
— Entendo... Tudo bem, agora eu preciso que o senhor me relate tudo o que puder se lembrar sobre os acontecimentos depois que vocês chegaram à casa da vítima.
— Aquele homem não era uma vítima! — exclamou, contrariado.
— Não cabe ao senhor determinar isso.
— O cacet... — em tempo, Felipe segurou a língua. — Me desculpa. Eu vou contar tudo o que vi e ouvi. Mas antes, eu quero falar com ela.
— Com ela, quem?
— Com a Gabriela! Eu preciso falar com ela.
— Senhor...
— Mas que p... — após um suspiro exasperado, Felipe girou o corpo sobre o leito na intenção de se levantar. — Olha só, policial Medeiros, o lance é o seguinte: você vai ter o meu depoimento, e vai ser tão detalhado que você vai ficar com preguiça de transcrever, mas antes de qualquer coisa, eu preciso conversar com ela. Por favor, poderia fazer isso por mim?
O policial pareceu ponderar, então chamou alguém pelo rádio. De costas para Felipe, tentava manter a privacidade da conversa, sem muito sucesso, já que o quarto era pequeno e Felipe muito antenado. Quando o homem finalizou a ligação, Felipe foi logo perguntando:
— O que o delegado disse? Eu já esclareci que não vou prestar queixa contra Gabriela, só quero olhar para ela pra ter certeza de que está bem.
— Certo. Ele deixou eu te acompanhar até onde ela está, mas você não poderá falar sozinho com ela.
— Claro, claro. Eu faço o que for preciso.
Com isso, ambos deixaram o quarto, de onde Felipe saiu andando sem qualquer dificuldade, ainda que o médico instruísse que o fizesse com cautela a fim de evitar vertigens ou tonturas. Caminharam pelo corredor bem movimentado — apesar de ser uma UPA em uma região com poucos habitantes, claramente havia superlotação, já que, graças ao constante descaso dos governos e gestão local, tais centros médicos nunca eram suficientes para atender a população.
Médico e policial pararam em frente a um quarto onde outro policial permanecia guardando o local. Felipe odiou o cenário, mas não se pronunciou. O médico abriu a porta lentamente, então ele a viu.
Gabriela estava sentada numa cadeira, de costas para a porta, em frente a uma janela. Seus cabelos estavam presos num coque pequeno, de onde vários fios rebeldes se soltavam; sua postura era introspectiva, e permanecia imóvel como uma boneca.
O quadro era exatamente o mesmo de anos atrás, com diferenças sutis, porém infinitamente relevantes.
Ela não usava um avental hospitalar, mas trajava uma camisa branca respingada de sangue. Seu corpo não era esguio como no passado, mas curvilíneo e saudável. Sua pele antes pálida, agora reluzia, levemente bronzeada. Ela não era mais uma criança, e sim uma mulher.
Foram tantas as vezes que ele a retratara nesta mesma posição, que ele nem podia contar. Ele a havia ilustrado, pintado, emoldurado e tatuado, e se isso não fosse suficiente para eternizá-la, sua mente agora traçava o paralelo entre passado e presente, amalgamando todas as versões dela.
Vítima, órfã, ferida e traumatizada, mas também artista, amiga, resiliente, sonhadora, criativa, aventureira, empática, determinada, corajosa, honesta, batalhadora, íntegra, alegre, amorosa, companheira, sensual, linda, absurdamente linda...
Gabriela era todas elas.
Contudo, ela não era mais uma vítima ali. Era alguém que havia vencido o monstro, e aguardava corajosamente sua sentença. Certamente não seria condenada a nada, mesmo assim, a forma como era mantida... era como se ela houvesse praticado um crime.
Era uma incongruência grotesca. Vítima por anos, Gabriela jamais deveria ser condenada, ainda que tivesse exterminado aquele monstro. Deveriam comemorar o fato de Jorge estar morto, já que mesmo tendo sido destruído, deixara um legado de dor e sofrimento. Felipe esperava que, assim com Gabriela, Natália pudesse superar e vencer os traumas. Se lhe permitissem, ele faria de tudo para ajudar.
Em silêncio, ele deu um passo para dentro do quarto. Sua vontade de correr e tomá-la nos braços arrefeceu com a lufada de memórias que o atingiu de uma vez, mas dessa vez, olhando para as costas de Gabriela, ele não se acovardou. No passado, dera a volta e tentara se livrar da situação, mas nunca conseguira, pois ela o acompanhara por todos aqueles anos, e uma tatuagem em seu peito era uma prova solene disso.
Sem mais nenhuma réstia de incerteza, ele adentrou o quarto, e a garota que olhava pela janela, dessa vez, virou completamente o rosto e o encarou.
Sua expressão era serena. O vazio de antes não existia ali. Era como se ela pudesse finalmente respirar, e isso fez com que os olhos de Felipe se enchessem de lágrimas. Ignorando a instrução do policial pedindo para não a tocar, ele avançou e a envolveu nos braços.
Alguém chorava. Ele não sabia se era ela ou ele, mas havia lágrimas, muitas. Ele não ouvia nada além da voz doce e delicada que o aquecia, bem na altura do coração, através do ar quente que saía dos lábios rosados.
— Me perdoa, Felipe. Eu precisei te machucar.
—Não tem importância, Gabriela.
— Tem sim. E-eu... nunca feri ninguém.
— Não pensa nisso agora. — Ele a beijava no topo da cabeça, apertando-a contra si como se quisesse se fundir a ela.
— Mas você entendeu? Eu tentei te proteger! Eu não queria que você tivesse o retrato de alguém morto na sua cabeça, te atormentando pro resto da vida...
— Acredita em mim quando te digo isso: ver aquele homem morrendo todos os dias não me assombraria em nada, Gabriela. De modo bizarro, acho que isso me daria um imenso prazer enquanto eu existisse.
— Você diz isso agora. Daqui a alguns anos, isso poderia te destruir.
Felipe sentiu uma lágrima quente correndo pelo rosto até perder-se nos fios loiros abaixo do seu queixo. Thiago fora o único que levara em conta as implicâncias de sua hipersensibilidade memorial, e agora, Gabriela fazia o mesmo.
Você tinha razão, pai. Um dia, alguém me enxergaria outra vez.
— Eu entendo sua preocupação — ele murmurou com a voz embargada. — Obrigado por se importar. Mesmo assim, eu queria ter matado o cara.
— Não fala isso! Você iria responder a um processo, e eu fiz o que fiz pois não queria que você passasse por isso.
— Muito menos eu, meu amor. Mas eu mataria qualquer um que fizesse mal a você. Eu prometo, enquanto estiver aqui, que vou fazer de tudo pra que você esteja segura. Você tá bem?
— No geral, sim. Vão colher amostras de mim, nem sei direito o que pretendem fazer.
— Inclusive — um policial interrompeu, após fazer um ruído discreto com a garganta — o senhor está contaminando as evidências.
— Que evidências? — Felipe questionou, incrédulo. — A gente tava junto o tempo todo, ela me bateu com algo, então qual a diferença?
— Procedimento, senhor. Peço que se afaste dela.
Contrariado, Felipe terminou por soltá-la.
— Ok. Quanto tempo isso vai demorar? Eu quero tirar ela daqui o quanto antes, e também preciso avisar a minha família do que aconteceu.
— Eles já sabem — foi Gabi quem respondeu — eu liguei pro Pablo. Eles estão vindo pra cá.
— Eles?
— Sim. Ele e... sua mãe.
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