64 - Thiago
Faltava pouco para as dez horas da noite quando Felipe, acompanhado por Gabriela, cruzou as portas da sala de espera do Hospital e Maternidade São Luiz, na região do Itaim. Sem perda de tempo, aproximaram-se do balcão de atendimento para registrarem a visita.
— Ela vai subir comigo — Felipe informou à atendente, trazendo Gabi para perto de si. Minutos depois, a jovem passou duas pulseiras de identificação ao casal, que, concentrados na função de colocá-las nos pulsos, não perceberam a aproximação de alguém.
— Lipe, o que ela faz aqui? — A voz altiva de Graça De Santis fez com que os cabelos da nuca de Gabriela se eriçassem.
Felipe fechou os olhos e soltou um longo suspiro, como quem se prepara para enfrentar algo muito exaustivo. Lentamente, voltou-se para ficar de frente para a mãe.
— Boa noite pra você também, mãe.
Gabi abriu a boca para cumprimentar a mulher, mas desistiu logo em seguida. Era óbvio que não havia espaço para cortesia ali, dada a forma como a matriarca a ignorou ao se dirigir ao filho, como se ela não passasse de um vira-lata sarnento resgatado na rua.
— Responda à pergunta, Lipe! O que esta garota faz aqui? — Graça cruzou os braços, mas seu olhar hesitou por um breve instante. Havia algo em sua postura que sugeria menos raiva e mais cansaço – uma fadiga acumulada de anos de ressentimento mal resolvido.
Gabi lutou contra a vontade de se afastar, e Felipe, percebendo seu recolhimento, estendeu o braço e envolveu-a pelos ombros, numa postura protetora. Ao ver a cena, Graça não escondeu o desdém.
— Ela está comigo — a voz firme do filho não deixava espaço para interpretações errôneas. A forma como ele abraçava Gabriela, bem como a nota possessiva que ele usou para pronunciar a palavra "comigo", eliminavam a necessidade de perguntas; mesmo assim, Graça escolheu ignorar os sinais.
— Com você, Lipe? Como assim, está com você? Quer dizer que, depois de ela ter tentado seduzir o Pablo e perceber que não conseguiria nada com ele, agora resolveu apelar para o plano B? Mas que descaramento...
— Mãe! Que coisa horrível de se dizer sobre alguém que a senhora nem conhece direito!
— Ora, não me venha você com moralismos! Esse é um momento de família, não é hora para trazer suas peguetes...
— Por favor, mãe... — Felipe fazia um grande esforço para manter a conversa num tom controlado. — Justamente por ser um momento em família, não é hora pra cavar encrenca, certo? Gabriela está comigo, num relacionamento.
— Relacionamento? E desde quando você sabe o que é isso? Olha, eu não dou a mínima para o nome que você quer dar! Você pode se engraçar com quem bem entender, só acho falta de respeito desfilar com suas aventuras diante de todos, principalmente do seu irmão, depois de tudo o que ele passou e tem passado...
— Minha senhora, peço que pare por aí — Gabi deu um passo à frente, colocando-se entre Felipe e a mãe. — Não estou aqui como "peguete", amante, aventura ou qualquer outro adjetivo que queira me atribuir, mesmo porque eu estou presente nesta conversa e a senhora pode falar diretamente comigo o que tem a dizer.
Graça deu um passo atrás, surpresa por mais uma vez Gabriela encontrar coragem para enfrentá-la.
— Certo, garota, então vai me dizer que veio aqui como "assistente do patrão?" — O tom sarcástico chegava a ser ridículo, e Felipe perdeu a pouca paciência que lhe restava, puxando Gabriela para o seu lado novamente.
— Chega, mãe! Mas que porra dos infernos! Para de implicar comigo, com tudo o que eu faço! Será que não dá pra me dar um tempo? Eu e a Gabriela estamos juntos, e não é de hoje! Isto vem rolando há um bom tempo e eu tenho certeza de que você percebeu, tanto que implica com ela desde o início!
— É... eu percebi. Não tinha como não notar, já que essa garota apareceu na agência como uma mera faxineira e chegou ao cargo de assistente dando muita atenção aos dois sócios.
Gabriela se afastou, caso contrário, teria avançado no pescoço da mulher. A raiva que sentiu foi tão intensa que seus olhos nublaram com lágrimas que ela segurou bravamente. Sentiu o dedos de Felipe contendo-a com firmeza, e o aperto comprovava que ele também se esforçava muito para não provocar uma briga num ambiente tão impróprio.
— Você ainda vai engolir essas palavras, mãe — ele sibilou, sombrio. — Gabriela me aceitou como sou, e tem me ajudado a entender que eu mereço ser amado; diferente de você, com todo esse ressentimento que tem por mim, seja pelo fato de eu ter sobrevivido no lugar do seu filho favorito, seja por eu ser um drogado, um esquisito com um distúrbio mental ou qualquer outro motivo que te cause repulsa ou vergonha.
A mulher empalideceu e pareceu perder o rumo da conversa. Por um momento efêmero, Gabi notou algo diferente na postura dela, algo maquiado, como se ela sustentasse uma capa espessa e cintilante para esconder um interior muito sombrio, doloroso ou vergonhoso.
— Quer saber, Lipe...? — com uma expressão abatida, Graça articulou, friamente: — faça o que quiser. É o que você sempre faz, não é mesmo? Acha que amor é quando alguém concorda com o seu jeito excêntrico, com suas péssimas decisões; por isso, você sempre trocou sua família por um bando de vagabundos e putas. Mas fique sabendo que nenhum deles teve qualquer sentimento decente por você; nem por um segundo algum deles sentiu qualquer coisa por você! E quanto a mim? — suspirou longamente antes de concluir: — Eu já não me esforço mais. Aliás, tem muito tempo que você nem parece ser meu filho, e eu nem sei se ainda me importo.
As palavras reverberaram no vazio silente da sala de espera. Não fosse o som do dedilhar frenético da recepcionista num teclado de computador, algo que ela aparentemente fazia para manter-se alheia à discussão que se desenrolava à sua frente, nenhum outro som podia ser percebido, mesmo porque a crueza do que foi dito ensurdeceu todas as vozes e ruídos ao redor, como se o universo mutasse as demais frequências para que aquelas palavras soassem muito mais estridentes.
O clima ficou tão pesado que Gabi sentiu dificuldades para respirar. Ela nem sabia se era pelas duras palavras da mãe direcionadas ao próprio filho, pelo descaso declarado, ou pela tão conhecida sensação de abandono. Foi então que ela entendeu o motivo de Felipe protelar em colocá-las cara a cara. Ela só não podia determinar se ele tentava protegê-la ou a si mesmo desse embate sem sentido.
Felipe enfiou as mãos nos bolsos e alinhou os ombros. Foi como se ele vestisse uma armadura antiga e confortável, como se há muito tempo estivesse blindado contra tais ataques. Não havia mais nenhum resquício de emoção em seu semblante, e aquela máscara indiferente que Gabriela conhecia tão bem, de repente, não lhe pareceu tão ofensiva como antes. Aquele semblante fechado, o jeito arredio e o comportamento indolente fizeram todo o sentido, afinal.
Ele costumava se comportar como um demônio, porque ser um demônio era tudo o que esperavam dele.
Tal percepção a muniu de coragem para voltar a se manifestar. Não ia permanecer calada enquanto via essa família se despedaçando diante dos seus olhos. Talvez não pudesse fazer nada para mudar tal realidade, mas também não ia ficar ali assistindo de camarote.
— Sabe... — murmurou —, eu realmente não espero que a senhora me aceite ou me entenda, visto que não consegue compreender nem seu próprio filho, mas isso é o que menos importa aqui. Viemos pra cá por causa do Pablo e do Thiago, e já estamos há um tempo considerável trocando ofensas sem nenhuma razão. Independente do que a senhora sente por mim ou seja qual for o seu problema com o Felipe, isso pode ficar para depois, não acha?
— Gabriela está certa, mãe — Felipe afirmou —, vamos esquecer esse assunto por ora. Pablo está esperando, então, que tal a gente subir para ver o Thiago? Depois a gente se ofende, se ataca, faz a porra toda, mas não agora.
A mulher levou os dedos até a orelha para ajeitar uma mecha dos cabelos claros. Havia um leve tremular nos dedos, e quando os olhos pálidos se desviaram para algum ponto a esmo, aquela essência sombria espiou por cima da carapaça altiva, e foi tão fugaz que ninguém teria notado.
Mas Gabriela percebeu.
— Eu vou esperar aqui. — Graça concluiu.
Felipe travou os lábios numa linha fina, como se estivesse fazendo um esforço sobre-humano para não se manifestar a respeito da recusa da mãe. Sem mais discussão, pegou a mão de Gabriela e se dirigiu aos elevadores.
Subiram em silêncio, cada qual remoendo as duras palavras daquela mulher. Quando desembarcaram no andar de destino, Pablo os aguardava com um semblante cansado, porém tranquilo.
— Achei que você não viria! — exclamou, aproximando-se de Felipe para um abraço. Quando se soltaram, havia lágrimas nos olhos do mais velho, que ele disfarçou virando-se de costas para todos enquanto Pablo se dirigia a Gabriela.
Ela se perguntava se as lágrimas de Felipe tinham relação com a discussão no saguão. Era uma possibilidade, embora não fosse o momento de especular, já que Pablo a encarava com evidente curiosidade.
— Oi, Pablo. Eu vim com o Felipe porque...
— Porque estão juntos. Eu sei, Gabi.
Havia serenidade em suas palavras. Felipe ainda encarava o fim do corredor, absorto, e Gabi imaginou que talvez ele tivesse avisado o irmão sobre sua presença.
— Estamos sim, ahn... tudo bem pra você?
— Tudo bem — ele afirmou, calmamente.
— Tem certeza? — Não fazia nenhum sentido ela desejar a aprovação do mais novo; ainda assim, ela se viu ansiando por isso.
— Sabe, talvez se fosse há alguns meses, eu teria ficado bem chateado com isso. Hoje não. Na realidade, quando o Felipe me mandou uma mensagem dizendo que você estaria aqui, eu fiquei bem ansioso por isso. Eu nunca escondi que sempre admirei você, Gabi, desde o primeiro instante. Talvez eu não soubesse interpretar o que sentia na época, mas hoje eu consigo perceber que sempre amei você, porém de uma forma muito fraternal.
Gabi sentiu o rosto esquentar, constrangida, e olhou para Felipe. Agora ele a encarava, e parecia confortável com o rumo daquela conversa. Se para ele estava tudo bem, então ela se sentiu mais segura.
— Eu também sempre gostei muito de você, Pablo. Me desculpa por não ter sido sincera desde o início.
— Nenhum dos dois foi, e já falamos sobre isso. Agora que está tudo claro e encaminhado, acha que podemos reconsiderar uma possível amizade?
Uma chama gostosa aqueceu o peito de Gabi. Era um sentimento específico, parecido com amor, porém mais leve e aconchegante. Gabi não teve irmãos, mas imaginou que se tivesse um, esse seria o sentimento que nutriria por ele.
— Ao menos você me aceita, diferente da sua mãe... — assim que as palavras soaram, Gabi fechou os olhos, desconcertada pela insensibilidade de voltar nesse assunto.
Ai, por Deus! Será que um dia você vai aprender a calar essa boca enorme?
— E então? Que horas a gente vai poder ver o pequeno? — Felipe dispersou o climão com maestria.
— Eu só estou esperando a pediatra me chamar — respondeu Pablo —, tô bem ansioso.
O brilho nos olhos de Pablo, em contraste com seu semblante horas antes, durante a Missa de Sétimo Dia, era quase um presente dos deuses.
— Fica calmo. Ao menos dessa vez você sabe que tudo pode dar certo — Felipe o tranquilizou.
— Ao menos isso.
Alguns minutos se passaram, em que nenhum dos três conseguiu falar qualquer coisa, dada a expectativa que nutriam pelo encontro com o bebê. Sem constrangimento, Gabriela se aproximou de Felipe e o abraçou, tentando com esse gesto transmitir algo bom que o fizesse se desligar da discussão com Graça. Finalmente, uma médica sorridente apareceu e os conduziu até a entrada da unidade neonatal.
— Papai, pode colocar a paramentação — ela entregou ao Pablo um pacote lacrado com a vestimenta, depois dirigiu-se ao casal. — Quanto a vocês, se forem entrar para ver o bebê, também precisarão usar o avental, touca, luvas e o protetor de pé. Só peço que não se aproximem muito, tudo bem?
— A gente só quer dividir a alegria e registrar o momento — Felipe respondeu.
— É justo — a pediatra sorriu e, depois que todos estavam devidamente paramentados, ela abriu a porta da unidade onde Thiago se encontrava isolado.
Lentamente, Pablo caminhou ao lado da médica, que abriu a incubadora. Dessa vez, a criança tinha os olhos muito claros bem abertos e reativos; não havia nenhum tubo em sua boca e, salvo um acesso em uma das perninhas, ele parecia um bebê como qualquer outro, porém com a metade do tamanho.
— Os exames demonstram que ele não teve nenhuma dificuldade de adaptação após a retirada do tubo respiratório — explicou a pediatra. — Os pulmõezinhos estão se comportando muito bem, a oxigenação está boa, e o desenvolvimento geral do Thiago ocorre de modo bem mais acelerado. Acredito que, nesse ritmo, no máximo em duas semanas você poderá levá-lo para casa.
Gabi sentiu os olhos se encherem de lágrimas ao ver o rosto de Pablo se contorcer na tentativa de suprimir o pranto de alívio. Era de fato emocionante presenciar tal momento, pois quando Pablo ligara para informar Felipe que os médicos pretendiam extubar o bebê para estimular a independência respiratória, não havia garantia de um resultado positivo. O misto de esperança e apreensão que envolvia o procedimento fez com que Pablo desejasse o irmão mais velho por perto.
— Agora — a médica pegou a criança com extrema leveza e voltou-se para Pablo —, o momento que todos estavam esperando. Peço que se sente, papai. Você vai segurar seu filho pela primeira vez.
Então Pablo se acomodou em uma poltrona ao lado do bercinho e recebeu nos braços Thiago, tão pequeno que que cabia na palma de sua mão. Os bracinhos e pezinhos minúsculos se moviam sem parar, e sem mais se preocupar em esconder as emoções, Pablo levou os dedos enluvados até a pequena mão do bebê, que se fechou em torno do seu polegar num reflexo rápido e firme.
— Ei, garotão... aqui é o papai.
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