63 - Escolha
Gabriela encarava os olhos cinzentos de Felipe, sondando, tentando perceber seu estado de humor ou qualquer farpa de emoção. Para ela, sempre fora desafiador entender como a cabeça dele funcionava; suas reações eram imprevisíveis, e o que estava prestes a contar poderia deixá-lo nervoso — algo que ela buscava evitar a todo custo.
— Fala logo, Gabriela. Descobriu quem tá ligando pra você? Conseguiu falar com alguém?
— Sim. Consegui atender uma ligação e finalmente tive uma resposta. Tratava-se de uma mulher, quero dizer, era uma voz feminina, abafada, como se a pessoa falasse baixo para não ser ouvida.
— E o que ela disse? — Ele parecia impaciente.
— Pediu ajuda. Disse que estava presa em casa e não podia sair. Eu pedi sua localização para tentar ajudar, mas ela respondeu que não sabia onde estava. Perguntei seu nome, mas ela respondeu que precisava desligar. Insisti que tentasse descrever o local e, logicamente, perguntei como conseguiu meu número, mas ela pareceu apavorada e desligou. Como sempre faço, tentei ligar de volta, mas caiu na caixa postal. Desconfio que o número dela não pode receber chamadas.
— E ela não te deu um nome, nem qualquer outra informação? — Ele soou cético.
— Não da primeira vez, mas ela voltou a ligar dois dias depois. Dessa vez, disse que se chamava Laura e que não aguentava mais. Contou que morava no interior de São Paulo e que encontrou meu número por acaso, num papel abandonado no chão da casa onde estava. Achei tudo muito esquisito. Eu disse a ela que aquilo não fazia sentido e insisti que me passasse o nome das pessoas que moravam com ela, mas ela parecia apavorada. Explicou-me que por semanas vinha ligando para descobrir quem eu era e pedir ajuda, mas desistia antes de falar qualquer coisa por medo de piorar sua situação.
— Medo do quê? Ela especificou?
— Pelo que entendi, medo de quem a mantinha presa. Disse que tentaria descobrir a cidade onde estava e me ligaria de volta, mas não retornou.
— Você não acha estranho essa pessoa não saber nem a cidade onde está? — Felipe mantinha um olhar impassível.
— Achei, a princípio, mas ela parecia tão autêntica, tão desesperada...
— Eu não sei, Gabriela. Tem muita coisa estranha nessa história, e eu tenho minhas próprias teorias.
— Já? Acabei de te contar e você já tem teorias?
— Na verdade... em relação aos telefonemas e a isso, tem algo que preciso te contar.
Chocada, para dizer o mínimo, Gabi ouviu o relato de Felipe sobre suas descobertas. Ele falou sobre a origem da ligação, a possível conexão com seu pai, e sobre a viagem que havia feito à cidade onde ela vivera. Por fim, narrou o encontro com a mulher que o recebera e depois o expulsara. Enquanto Gabi ouvia, sua consternação se transformava em ressentimento ao compreender que ele deliberadamente ocultara informações dela.
Felipe a havia excluído de tudo. Mais uma vez, escolhera deixá-la no escuro, como sempre fazia.
Resignada, levantou-se e caminhou até a janela. Permaneceu ali, calada, contemplando o movimento dos automóveis, cujas lanternas riscavam o espaço acima do asfalto. Seus olhos vaguearam distraídos, ignorando o som das buzinas e motores, tão comuns que ela já nem mais se dava conta de como aquela cidade era barulhenta.
Sentiu as mãos quentes de Felipe cobrirem seus braços. Ele a puxou contra o peito, sem virá-la. Silencioso, apoiou o queixo no topo de sua cabeça e soltou o ar, devagar, antes de falar:
— Eu não queria esconder nada de você. Não foi minha intenção fazer algo pelas suas costas. Só queria ter certeza antes de te contar.
— Poderíamos ter descoberto juntos — murmurou, magoada.
— Eu sei. Eu não tinha esse direito, mas ser errado é tudo o que sei fazer, Gabriela. Quando vejo, já agi errado, já fiz merda e... tem sido assim minha vida toda.
— Isso não é desculpa pra continuar errando. Tá na hora de começar a melhorar.
O silêncio se prolongou enquanto ele absorvia a verdade do que ela dissera. Quando Gabi pensou que o assunto morreria ali, ele inclinou-se, colou o rosto no pescoço dela e murmurou:
— Me perdoa. Só queria te proteger. Só de pensar em te colocar novamente diante daquele homem... — ela sentiu as mãos dele apertarem seus braços, um aperto forte, mas não incômodo —, eu não suporto nem pensar nisso.
Ele não precisou concluir. Gabi sabia. Sabia desde aquele dia no saguão do prédio, quando ele concluiu seus traumas com um único olhar.
— Talvez, no passado, eu fugisse dessa situação, mas não agora. Não sou a mesma garota que aquele homem destruía a cada dia. Você sabe disso, Felipe. Tá na hora de me tratar como alguém capaz de pensar.
Foi meio cruel, mas refletia o que ela sentia. Depois de dias no escuro sobre o que ele fazia, para onde tinha ido, o que eram um para o outro...
Tudo o que ela precisava era saber se o que pensava, sentia e esperava tinha alguma relevância para ele.
Estava farta de ser irrelevante.
Ele a girou para que ficassem de frente um para o outro, e os olhos cuja matiz lembrava o aço gélido capturaram os seus. Contudo, não havia nada de gelado naquele olhar.
— Eu jamais pensaria isso de você! De onde você tira essas ideias?
— Se pensa, então vamos conversar como adultos pra tentar entender do que se trata essa história! Para de ficar agindo como se eu fosse uma bonequinha frágil, eu não sou nada disso! Me fala o que você pensa sobre essa situação e vamos entender, se tiver que ir atrás do meu pai, eu vou! Se for uma armadilha pra me atrair, vamos resolver isso, mas não me trata como se eu fosse incapaz de solucionar um problema, pôxa, eu já superei tanta coisa...
Ele desviou os olhos por um tempo, conjecturando, depois baixou a cabeça, constrangido.
— Você está certa... caralho, eu... — ele levou as mãos aos cabelos, jogando-os para trás num gesto de impaciência consigo mesmo. — Eu tenho muito a aprender ainda, Gabriela. Me perdoa, por favor.
— Promete que não vai mais me isolar?
— Eu prometo!
— Que não vai esconder coisas de mim?
— Prometo! Por Deus, eu prometo, Gabriela!
Ela, que tentava bancar a durona, sentiu suas fortalezas ruírem quando aquela voz, ao mesmo tempo exasperada e sincera, atravessou suas barreiras e tocou seu âmago. Num instante, todos os seus sentidos estavam voltados para ele: o cheiro, o calor, aquele rosto lindo como o de um deus, a barba macia, os olhos cristalinos, a ruga entre as sobrancelhas, os lábios convidativos...
— Certo. Eu até posso ser paciente pois sei que também tenho muito a aprender, mas a gente precisa fazer isso juntos daqui pra frente. Quero que fale com sua mãe, com o Pablo, com quem tiver que falar sobre nosso envolvimento. Não vou esconder o que temos de ninguém na agência, e se tiver que fazer isso, eu prefiro sair de lá. Eu não quero ter que fingir, nem me esconder. Eu fiz isso a vida toda... — sua voz quebrou no final.
Sem conseguir se conter, ele a puxou para si num abraço apertado. Os dedos longos enroscaram-se nos cabelos loiros dela, enquanto ele parecia tentar fundir os dois em um só corpo, como se buscasse algo nela de que precisava, ou quisesse entregar a ela o que tinha de si mesmo.
— Tudo o que eu tento fazer, é pensando no que seria melhor para você, entende? Porque... merda, falar sobre a gente lá no escritório só vai levantar aquelas questões éticas sobre suas capacidades, e eu queria te livrar disso. Quanto à minha família, eu só não queria que você tivesse que lidar com a minha mãe. Ela pode ser bem... insuportável.
— É a sua família, portanto, faz parte de você. Acho que você não tem que fazer essa escolha por mim. E se acha que minha carreira ficaria prejudicada por estar com você, como eu disse, eu posso sair da agência. Acho que já tenho experiência suficiente e um bom portfólio para tentar um cargo de assistente em outro lugar.
— Eu não quero... — Ele a agarrou com mais afinco e, por um instante, pareceu uma criança agarrada à perna da mãe na porta da escola. — Não quero que fique longe, não quero nada disso... eu não sei o que fazer, Gabriela.
Eles permaneceram abraçados por mais algum tempo, sentindo o calor um do outro, transferindo anseios sem palavras. Por fim, ela o empurrou com delicadeza e o encarou.
— Você vai ter que fazer uma escolha. Eu já fiz a minha.
— E qual é a sua escolha? — A apreensão era clara na voz dele.
— Eu vou até o inferno com você. Enfrento sua mãe, o julgamento de todos, aguento o que tiver que aguentar, mas não vou me esconder por sua causa. Nunca mais eu vou me esconder, entendeu? Eu vim para essa cidade com uma mão na frente e outra atrás, fugindo de um homem que abusava de mim. Eu me submeti ao trabalho que me ofereceram, me esforcei muito, e cheguei até aqui por mérito! Ninguém vai diminuir minhas conquistas, nem me fazer desistir dos meus sonhos... nem mesmo você.
— Ah, Gabriela... É por isso que eu te amo tanto, cacete... — Ele sussurrou, e, sem cerimônia, capturou os lábios dela com uma intensidade que a fez perder o equilíbrio e uma doçura que a derreteu em seus braços. Quando respirar se tornou indispensável, ele se afastou apenas o suficiente para concluir: — Eu te amo porque, mesmo eu sendo quem eu sou e como sou, isso não muda quem você é. Sua força é muito maior que a minha, você é melhor em tudo e eu... porra! Eu não passo de um vassalo seu. Saber que você escolheu ficar comigo, mesmo sendo tão incrível... é loucura! E o mais doido é perceber que eu nunca seria capaz de te quebrar, como costumo quebrar tudo o que pego nas mãos. Isso é o que mais me faz querer ser seu, ser uma escolha sua... eu te amo pra caralho...
Depois disso, as bocas se conectaram mais uma vez, e as palavras se calaram. A reconciliação estava implícita na intensidade dos toques, na troca de almas e no entrelaçar dos corpos que se desejavam. Ali, eles se pertenciam sem que um possuísse outro. Sua entrega era uma escolha, não uma dependência, e isso os libertava para se completassem sem medo ou culpa.
Abraçados, se moveram cegos em direção a qualquer lugar que os acomodasse, derrubando enfeites e outros objetos pelo caminho. Enquanto as roupas eram retiradas às pressas, o Apple Watch de Felipe começou a apitar. Ele cogitou ignorar, mas, ao olhar para a tela e ver que se tratava de Pablo, interrompeu as carícias para atender.
— Pablo? — Sua voz soou arfante, como se tivesse acabado de correr uma maratona. Ele não podia descrever como seu corpo reagiu à interrupção.
— Lipe? Será que dá pra vir até o hospital? É sobre o Thiago...
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