62 - Ornamento
Gabi deixou o olhar se perder nos vitrais coloridos que filtravam a luz do fim da tarde, tingindo de dourado o interior da Paróquia Santa Teresinha do Menino Jesus. A grandiosidade do teto abobadado e os adornos intricados pareciam esmagadoramente belos, mas não conseguiam desviar sua mente do vazio que a acompanhava naquela tarde.
A igreja, situada em Higianópolis, região central de São Paulo, era famosa pelos casamentos que ali ocorriam. Quem dera ela estivesse ali por uma boa razão ou um motivo de celebração; infelizmente, não era o caso.
Ao seu lado, Rob, Cíntia e Léo mantinham um silêncio respeitoso. No ar, o cheiro da cera derretida de velas e flores não tão frescas tornava o ar sufocante, pesado, soturno. Dos bancos mais distantes, contemplavam os De Santis ao lado dos Lucassi, sentados nas primeiras fileiras, enquanto o padre dizia coisas que entravam por um ouvido e saíam pelo outro.
Gabi não entendia muito bem por que as pessoas insistiam em manter tradições desse tipo. Qual o sentido de falar e falar sem parar, depois que nada mais podia ser feito? Era para trazer conforto às famílias? Haveria algo capaz de arrancar o vazio que uma pessoa deixava ao partir?
Engoliu, mais uma vez, as lágrimas que subiram aos olhos. Perdera a conta de quantas vezes desabara em um pranto sem sentido, provocado por algo que nem sabia explicar.
Talvez fosse a dor de Pablo que a sufocava, ou a preocupação com o bebê que ainda lutava pela vida. Mas, para sua surpresa, havia também algo de Jackie. Alguém que ela mal conhecia, mas contra quem guardara tantas mágoas. Talvez fosse a ironia disso — sentir tristeza por alguém que havia despertado nela emoções tão contraditórias — que a fazia se perguntar se o problema não estava em si mesma.
Questionava-se sobre o motivo de ter aceitado acompanhar Felipe à Missa de Sétimo Dia de Jackie, sendo que não haviam conversado, sequer se visto desde o triste ocorrido. Ninguém, além de Rob e Cíntia, sabia que eles haviam reatado.
Por mais que Felipe precisasse dela, Gabi não conseguia se livrar da sensação de ser uma peça deslocada naquele cenário. Ao contrário de seus colegas, que tinham laços de anos com os De Santis, sua presença parecia fora de lugar, como se ela estivesse invadindo um espaço que não lhe pertencia.
Mas lá estava, porque Felipe enviara um áudio quase implorando para que ela comparecesse, dizendo que precisava de seu apoio. Ele não saíra do lado de Pablo, o que era totalmente compreensível. Então, qual seria o lugar dela ali?
Quando as pessoas começaram a se levantar, ela percebeu que a missa havia terminado. Nem acompanhara o padre nas orações, nem absorvera nada do que ocorrera. Sentiu-se tão imóvel e irrelevante quanto os santos de madeira que adornavam a igreja. Ali, eles permaneciam eternos, testemunhando gerações de súplicas e perdas, mas incapazes de consolar ou mudar qualquer destino. Era assim que ela se via: um ornamento, presente, mas impotente.
Repreendeu-se pela falta de respeito. O fato de não ser religiosa não lhe dava o direito de banalizar a fé de ninguém. Pediu perdão às entidades presentes, reais ou imaginárias, e ficou de pé para deixar o local. Quando abandonou a fileira onde estivera sentada, seus olhos cruzaram com os de Felipe.
Como sempre acontecia quando olhava para ele, o mundo desapareceu por um instante. Ele não desviou o olhar, tampouco se moveu de onde estava, ao lado de Pablo e Graça. As gêmeas, alheias ao drama do momento, passeavam de mãos dadas pelos corredores entre os bancos vazios. Gabi sentiu os pés se moverem sozinhos, levando-a até os irmãos.
Quando parou diante deles, dirigiu-se primeiro a Pablo. Graça a olhava de modo indiferente — ao menos não parecia altiva, dessa vez — e Felipe manteve-se inerte, aguardando.
— Pablo, eu sinto muito — lamentou, sentindo os olhos se encherem de novo. Ele, que mantinha a cabeça abaixada, ergueu-a apenas para fitá-la. Com um aceno frágil, agradeceu e voltou a mirar o chão.
Ela quis abraçá-lo, mas não teve coragem. Talvez, se Graça não estivesse ali, ela se sentisse mais à vontade. Ainda assim, ergueu a mão e tocou o ombro dele, tentando transmitir algum conforto. Feito isso, voltou-se para Felipe.
— Meus sentimentos à família. — O objetivo era que todos ouvissem, mas ela só se preocupava com ele. Gostaria de ter um minuto a sós, apenas para abraçá-lo e perguntar como agir, como ajudar.
— Eu volto com a mãe — Pablo afirmou, resolvendo o breve dilema. — Leva a Gabi.
— Tem certeza? — Felipe parecia realmente inseguro. — Acho melhor voltarmos todos juntos...
— Sei que você não quer sair de perto, Lipe, mas eu preciso de um tempo, ok? A mãe não vai me deixar sozinho, e as gêmeas estão em casa hoje. Não tem com o que se preocupar.
— Pablo...
— Já deu, Lipe. Tá tudo bem. Leva a Gabi e, mais tarde, a gente conversa, ok?
Felipe não discutiu mais. Léo, Cíntia e Rob se aproximaram do grupo e deram os abraços que ela não tivera coragem de dar. Após as condolências, despediram-se e deixaram a paróquia, momentos antes de Graça e Pablo saírem com as gêmeas.
Só então ela voltou a olhar para Felipe. Ele acompanhava a família se afastando, com um ar preocupado. Ele até podia fingir que não se importava, mas era notório o quanto lhe era essencial que estivessem todos bem.
Felipe trazia olheiras e a barba estava maior, mas, tirando isso, parecia normal. O fato de ele ser adicto a preocupava o tempo todo; temia não estar por perto quando ele precisasse de ajuda. Mesmo sem poder resolver todos os problemas, achava que sua presença poderia ser útil.
— Como ele está? — perguntou, entristecida.
— Preocupado com o Thiago... os médicos ainda não deram certeza de nada. O quadro é delicado. Apesar de os pulmões do bebê estarem maturando, o processo é lento.
— Eu acho que ele vai conseguir — disse, tentando consolá-lo, mesmo sem certeza.
— Espero que sim... Vem, vamos sair daqui — ele segurou sua mão.
Quando os dedos dele envolveram os seus, Gabi sentiu o calor familiar se espalhar pelo corpo. Era um toque simples, mas carregado de tudo o que não haviam dito naquela última semana. Ali, no entrelaçar de mãos, ela percebeu o quanto sentira falta dele — da voz, do cheiro, do espaço que ele ocupava em sua vida.
Em silêncio, caminharam lado a lado até o portão da igreja. O ar do fim de tarde era pesado, mas não tanto quanto o silêncio que os envolvia. Felipe olhava o relógio insistentemente, como se contasse os minutos para fugir dali. Quando o Uber chegou, o som do motor interrompeu o momento, trazendo uma pausa tão necessária quanto incômoda.
Acomodaram-se no banco de trás e, assim que o veículo arrancou, ele passou os braços por cima dos seus ombros e a atraiu para si. Ela fechou os olhos ao ouvir o longo suspiro que ele soltou. Sentiu o calor dos lábios dele em seus cabelos e suspirou também.
— Você está bem? — ela perguntou, acariciando a mão que repousava em sua coxa.
— Bem, na medida do possível. Melhor agora. Obrigado por ter vindo; eu senti tanto a sua falta, não aguentava mais ficar longe de você...
Ela se segurou para não soltar um "Por que ficou, então?". Não era o momento certo para tentar qualquer conversa que os envolvesse exclusivamente; precisava entender e respeitar as decisões que ele tomara para ajudar o irmão.
— Também senti a sua... — Ela olhou ao redor e estranhou o trajeto que o veículo fazia. — Pra onde a gente tá indo?
— Pra sua casa.
— Mas... — Ela não queria que ele a deixasse em casa e simplesmente fosse embora. Segurou a ansiedade durante o restante do trajeto e, só quando o motorista os deixou, a ambos, em frente ao prédio dela, soltou o ar, aliviada. — Achei que você ia embora.
— Você quer que eu vá?
— Não... não, imagina! — Fitou-o, afoita. Ele mantinha uma expressão tão estática que ela não conseguia interpretar.
— Ainda bem, porque eu não iria.
— Ah, não?
Ele se aproximou lentamente, envolveu sua nuca com uma das mãos e a atraiu para perto. O hálito quente em seus lábios a arrepiou por inteiro.
— Definitivamente, não. — Então a abraçou com a força da falta que sentira todos aqueles dias. — Vamos subir, tenho muitas coisas pra conversar com você.
Gabi aquiesceu, pensando nos assuntos que também precisava conversar com ele. Ainda não havia contado sobre as ligações, mas deixaria que ele resolvesse os dilemas familiares antes de jogar sobre ele os seus próprios.
Subiram em silêncio e, quando já estavam dentro do estúdio, Gabi não se conteve.
— Você não contou pra ninguém sobre mim... sobre nós?
Ele tocou seu cabelo em uma carícia leve. As mechas já passavam um pouco do ombro, o que ele apreciava bastante.
— Não teve como.
— Não teve como porque seria ruim? Você não quer que saibam porque sou... eu?
— Não fala merda, Gabi. — Apesar da grosseria, havia a sombra de um sorriso no rosto dele. — Em que mundo estar com você seria "ruim"?
— Talvez, para eles...
— Absurdo! E, ainda que fosse, eu tô pouco me fodendo com o que eles pensam. — Ele a puxou para que se acomodassem no sofá-cama. — Eu não falei nada porque, como eu daria a notícia de que estava com alguém de fato importante, que estava apaixonado pela primeira vez na vida, no exato momento em que meu irmão perdia alguém assim para ele?
Wow, como não pensei nisso? Droga, como sou egoísta!
— Me desculpa, Felipe. Eu não pensei nisso.
— Tudo bem. Vem cá. — Ele a segurou pelos ombros e a atraiu até que os lábios se tocassem.
Foi um beijo lento, mas não durou muito. Mesmo contrariado, ele interrompeu a carícia para que pudessem conversar.
— Você estava comentando antes, então há alguma evolução no quadro do bebê — ela abriu o assunto.
— De certa forma, mas muito lenta ainda. Até que os pulmões estão evoluindo, bem devagar, mas os médicos não se posicionam. Acho que eles não querem dar falsas esperanças caso o pior aconteça.
— Eu sinto que ele vai ficar bem, sabe? Dentro de mim, tenho essa sensação.
— Eu não sinto nada.
Ele foi seco. Bem, ele costumava ser, quando o assunto o incomodava.
— Espero que essa não seja sua postura com o Pablo.
— Pablo me conhece. Não preciso falar o que penso, ele sabe. Tem sido muito difícil, e ele não precisa que mintam pra ele, entende? Só não quer ficar sozinho, então eu acabei passando o tempo todo do lado dele porque não queria que ficasse só, lá no hospital.
— A Graça não pode ficar com ele?
— Minha mãe não entra em hospitais.
— Não? Por quê?
— Não sei.
A voz dele soou amarga, e ela entendeu que não era o momento de especular os motivos de Graça agir como agia.
— Eu preciso te contar uma coisa, sobre os telefonemas.
Ele se aprumou no assento e a encarou com uma ruga entre os olhos.
— O que aconteceu? Te ligaram de novo?
— Sim — respondeu, a voz mais baixa do que pretendia. — E você não vai acreditar no que vou te contar.
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