59 - Ligação
Gabi mergulhava o sachê de chá na água quente de modo acelerado, a ponto de respingar no balcão da copa. Percebia que as pontas dos dedos tremiam, um resquício do nervosismo causado por uma noite insone dentro de um quadro de TPM. Ao lado, alheia ao seu estresse, Yara lavava os utensílios de cozinha, cantarolando qualquer coisa. Gabi conteve a vontade de mandá-la ficar quieta.
Ela não tem nada com isso. Por que está tão insuportável, sua louca?
Pegou o chá e voltou à estação de trabalho. Havia uma quantidade significativa de serviço acumulado, culpa dos novos contratos, somados a uma dose considerável de negligência, devido à sua incapacidade de se concentrar nos afazeres dos últimos dias.
Seu celular apitou com a chegada de uma mensagem. Gabi desbloqueou o aparelho sem erguê-lo da mesa.
"Como você está?"
Ela deu um suspiro longo e virou o aparelho com a face para a mesa. Não havia uma razão real para estar tão chateada a ponto de nem responder à mensagem dele. Bom, havia, mas não seria motivo para tamanho aborrecimento, se ela tivesse a frieza necessária para avaliar a situação.
Frieza era algo inalcançável para ela.
Fazia três dias que ela não via o Semideus (sim, ele foi rebaixado temporariamente). Depois da conversa no fim de semana, quando ele relatou a maneira como havia "financiado" seu pai para que cuidasse dela — algo que, no fim, nunca aconteceu —, o clima ficou tenso entre eles.
"Você se deu ao trabalho de mandar dinheiro para aquele monstro e nunca se preocupou em saber o que ele fazia com aquilo?"
"Como eu poderia imaginar que tipo de homem ele era, Gabriela?"
"Se estava tão preocupado, por que nunca me procurou?"
"Não era nem pra você saber que eu ajudava, por que iria te procurar?"
"Pra mim, foi uma saída covarde!"
"Não preciso que jogue na minha cara meus defeitos! Conheço todos de cor, obrigado."
"Nem vem se fazer de vítima agora! Todo esse tempo... você vinha permeando minha existência e... eu não sei o que fazer com isso!"
"Não tô me fazendo de vítima, caralho! E que mania você tem de transformar uma conversa numa discussão! Quer saber? Acho que você precisa de um tempo pra absorver tudo. A gente se vê depois."
E ele foi embora. Ela chorou um pouco, tomou um banho e acabou com um pacote de biscoitos recheados enquanto assistia a uma comédia romântica sem graça no celular. Era madrugada quando chegou uma mensagem dele.
"Vou viajar por uns dias. Aproveite esse tempo pra pensar. Quando voltar, a gente conversa. Eu amo você, não se esqueça disso."
— Tá tudo bem, Gabi? — a voz de Rob a sobressaltou. Devia estar há um certo tempo encarando o descanso de tela do monitor para que o designer a acordasse do estado catatônico.
— Tá... tá sim. Eu... me desculpa.
— Não tem que pedir desculpa. Você anda estranha desde o fim de semana. Quer conversar?
— Ai, Rob... — ela até queria, mas não se sentia pronta para revelar que havia basicamente reatado sua relação com Felipe, e que, mesmo tendo feito isso, já estavam meio que brigados.
— Não vou te julgar, ok? Se quiser, podemos ir até a sala dele.
Gabi encarou o amigo. O fato de ele ter mencionado a sala "dele" deixou claro que Rob sabia exatamente qual era o problema dela. Sem protelar, ela se ergueu e caminhou até a sala do diretor de criação, com Rob logo atrás. Quando ele fechou a porta, ela se jogou na cadeira que ficava em frente à mesa de madeira, apoiou os cotovelos nos joelhos, envolveu os dois lados da cabeça com as mãos e esfregou o couro cabeludo, desalinhando as madeixas loiras.
— Tá surtando, gata. Conta o que houve — ele incentivou, caminhando até ela, mas não se sentou na cadeira de Felipe. Ancorou-se no tampo da mesa, talvez para que ela não sentisse que havia algo os separando.
— Depois do bar, eu fui até o apartamento do Felipe.
Rob deixou escapar um riso baixo, não de modo jocoso, mas surpreso.
— Tá atirada, hein? Arrasou! Mas pela sua cara, foi trash.
— A gente ficou junto e foi algo bem... significativo. Conversamos bastante e... bem, conversamos muito.
— Conversaram, é? Isso é novidade.
Gabi fez cara feia para Rob, que ergueu as mãos em rendição.
— Desculpa, gata, mas com o histórico dele, isso é novidade.
— Às vezes eu acho que sei o que tô fazendo, daí penso melhor e chego à conclusão de que sou completamente doida.
— Não vou negar que precisa de uma dose de loucura pra encarar o Felipe. Eu admiro você por tentar.
— Admira? Eu tô mais confusa do que... na verdade, acho que sempre fui confusa.
Rob se agachou, deixando o rosto no mesmo nível do dela, e apoiou os cotovelos nos joelhos flexionados. Ela ergueu os olhos e o encarou, acanhada.
— Admiro. Uma, porque você é forte e determinada; outra, porque, apesar de tudo o que passou e sendo Felipe como ele é, você conseguiu cavar pra encontrar ele nos escombros. O que, exatamente, tá pegando?
— A gente tem um passado, sabe? De antes daqui.
— Certo. Você é a garota da janela. Isso eu já tinha sacado.
— Como você descobriu?
— Ele não esboçava aquele desenho há anos. Foi só você aparecer, e ele voltou a desenhar a mesma imagem. Naquele dia da reunião, em que ele e o Pablo discutiram, ele estava fazendo o mesmo esboço, e quando você virou de costas para deixar a sala, eu olhei pra você. Você estava com o cabelo preso num coque fofo. Bem, foi instantâneo.
— Por que nunca me disse?
— A gente nem conversava na época.
— E depois?
— Depois você já sabia.
— Ah... é verdade.
— Olha, Gabi, eu sei que você é meio nova nessa coisa de relacionamento, mas vou te falar o que sei: nunca é fácil. São duas pessoas diferentes, com uma bagagem própria, uma história e, no caso de vocês, alguns traumas significativos. Você não precisa me dizer o teor dos seus, mas tá escrito na sua postura inteira que não foi fácil. Relaxa um pouco e deixa as coisas rolarem por um tempo. Não tenta entender tudo de uma vez, afinal, vocês não foram construídos de uma vez.
— Parece que sempre tem uma coisa que vou descobrir do nada, e isso vai ferrar com a minha cabeça inteira.
— É óbvio que vai. Não tá nem perto de saber o tamanho do babado, gata, mas não te digo isso pra te desanimar. Muito pelo contrário, é pra te incentivar a continuar desbravando o que essa relação pode te oferecer. Sei que o Felipe é um cara difícil, mas te digo que ele é mais fácil do que parece. Tudo que ele precisa é de aceitação e compreensão. Quer ver uma coisa que deixa o cara atacado? Esperar que ele seja diferente do que é.
— Pois é, já tinha sacado isso. Por fim, a gente meio que discutiu no domingo à noite. Na verdade, eu que surtei com ele, como sempre, e ele precisou viajar e agora eu tô arrependida de ter sido tão megera.
— Para com isso, mulher! Não fica cozinhando arrependimento! Se acha que agiu mal, pede desculpa e acabou. Se acha que tava com a razão, deixa a poeira baixar e depois conversa. Esse negócio de ficar amargando o remorso é uó.
— Você tá certo — sem constrangimento, ela segurou as mãos dele — obrigada pelo papo. Acho que eu só precisava colocar isso pra fora.
— Fez bem. Quando a gente tá estourando de ansiedade, precisa aliviar a pressão. Fica de boa, tá? Ele gosta demais de você, não tem como duvidar disso. Não consegue tirar o olho de você desde que apareceu aqui, e ele foi se transformando nesses nove meses. Primeiro ele piorou, mas depois melhorou, e agora acho que é a primeira vez que vejo ele mais equilibrado. Aproveita o momento, tá bem?
— Tá bem! — Ela sorriu, e depois de uns uns instantes, perguntou: — você sabe pra onde ele foi?
— Você não perguntou pra ele?
— Não...
— Por que não?
— Não sei... Ele falou pra eu usar o tempo pra pensar. Fiquei sem saber se perguntava ou não.
— Fura essa bolha, gata. Ou você acha que não tem esse direito? Se acha que não, precisa aprender mais algumas coisas.
— Certo. Vou perguntar.
— Assim que se fala. Agora, levanta essa cabeça e, quando se sentir melhor, liga pra ele.
— Pode deixar. — Ela foi se erguendo da cadeira e, assim que ele ficou de pé, ela tascou um beijo no rosto dele.
Ele ficou surpreso, pois Gabi sempre foi muito arredia em relação a toques. Sorriu ao constatar essa evolução no comportamento dela.
Voltaram às próprias mesas e, assim que Gabi se concentrou na tela do computador, seu celular vibrou. Distraída, atendeu, imaginando que poderia ser Felipe.
— Alô?
— A... alô... — a voz feminina era soprosa, como se a pessoa cochichasse.
Gabi ficou estática. Olhou a tela e constatou tratar-se do mesmo número que vinha ligando para ela nas últimas semanas. Com cautela, levantou-se e caminhou até a copa.
— Por favor, não desliga — pediu calmamente e aguardou. Pôde ouvir a respiração do outro lado da linha, acelerada e ruidosa. Notar isso fez seu coração se acelerar também, e ela nem entendeu a razão.
— Eu... desculpa... eu vou desligar...
— NÃO! — Gabi se arrependeu do grito assim que viu as cabeças se voltarem em direção à copa. Cíntia levantou-se e caminhou em direção a ela. — Não desliga. Desculpa, você pode me dizer quem é?
— Não, eu... não devia ter ligado.
— Quem é você? Por que tem me ligado? Fala comigo, por favor!
Cíntia fechou a porta da copa atrás de si e encarou Gabi com uma ruga entre os olhos. A linha ficou em silêncio por um tempo, e Gabi chegou a pensar que a pessoa havia encerrado a chamada, até que a voz ressurgiu, um pouco mais clara, porém trêmula.
— Eu não aguento mais... você pode me ajudar?
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