55 - Urgência
Gabriela dormia abraçada a um travesseiro. O corpo estava coberto até a cintura e os lábios entreabertos evidenciavam o sono profundo através do ruído baixo provocado pela respiração. Um sorriso discreto surgiu no rosto de Felipe ao constatar que ela roncava. Da outra vez que ela ocupou aquela mesma cama, ele não se lembrava de tê-la ouvido roncar.
Mais cedo, ela chegara a ingerir um pouco do suco que ele havia preparado, mas não ajudou muito com a dor de cabeça; ele saiu para comprar analgésicos e, depois de medicada, ela aceitou tirar um cochilo em sua cama, já que estava acordada desde o amanhecer.
Ao menos ela conseguia dormir. Diferente dele, que acordara bem antes, sob o corpo feminino e quente. Plenamente ciente da excitação causada pela proximidade e constrangido pela inconveniência do momento, ele a acomodou no sofá, cobriu-a com uma manta e ficou ao lado dela, do mesmo jeito que estava agora, apenas velando-lhe o sono.
Não conversaram muito depois das confissões da manhã. Ambos sabiam que precisavam de um tempo para processar o peso das revelações, principalmente ele. Havia muito ainda a ser desvendado entre eles, mas ele estava otimista pela primeira vez em meses, talvez em anos. O fato de ela procurá-lo na noite anterior abriu uma possibilidade até então ignorada.
Talvez houvesse esperança para eles. Os sentimentos estavam todos na mesa, agora, e se ambos permitissem que tais sentimentos fossem depurados e lapidados, era provável que o resultado os levasse a algo lindo.
Lindo. Como ela era, tão linda! Olhando-a agora, sentia o peito arder de necessidade. Ia muito além da resposta física de um corpo em abstinência há meses. Seu anseio era por ela, sua essência, sua alma... queria fazer parte dela, assim como ela estava entranhada nele até o âmago. Queria amá-la até que isso fosse suficiente para preencher as lacunas deixadas pelo passado, e daria sua vida por ela, se lhe fosse requisitado.
De fato, sua vida já pertencia a ela. Muito antes de se dar conta, ela o possuía por inteiro. Por sorte, azar ou pura fatalidade, suas vidas se cruzaram de modo improvável, e ambos agora carregavam as marcas do encontro, desde a pele até o mais profundo de suas consciências. Se ela fosse capaz de perdoá-lo por ter participado da morte da própria mãe, quanto mais ele a eximiria por ser indiretamente responsável pela morte de Thiago.
Que nó dos infernos! Parabéns às entidades de plantão, afinal, um encontro numa cafeteria qualquer, um esbarrão inocente ou qualquer porra de coincidência digna de um clichê romântico não seria suficiente para pessoas fodidas como nós. Óbvio que não...
Consternado, deixou o quarto quando seu relógio sinalizou uma ligação. Teve o cuidado de fechar a porta antes de atender.
— Fala, cara, e aí? O que tem pra mim? — perguntou assim que recuperou o aparelho na sala e o levou ao ouvido. Não queria atender no viva-voz, caso Gabriela acordasse de repente.
— E aí, Lipe, beleza? Então, eu não consegui rastrear um nome, apenas uma localização. Fica bem longe daqui, umas seis horas da capital, no município de Votuporanga.
Felipe sentiu o sangue se recolher nas veias. Sua boca ficou seca e o coração palpitou, acelerado.
— Votuporanga? Você consegue o endereço exato?
— Não, cara. Só um raio. Dá pra saber o bairro, mas não a casa. Quer que te passe uma 'print' do mapa?
— Pode passar.
Felipe esperou a chegada da imagem e encerrou a ligação. Observou o mapa com atenção, cada vez mais agitado. Sentiu uma urgência antiga, uma ansiedade crescente. Foi até a geladeira e abriu uma lata de Coca-Cola Zero, sorvendo o líquido borbulhante em goles ininterruptos até o incômodo do gás o distrair o suficiente da sensação.
Odiava a sensação. O suor brotando na testa, o tremular dos dedos, o aperto no peito como se estivesse sendo pisoteado por um elefante. Agora não era tão difícil quanto no começo, mas sempre estava lá, sob a pele, implorando por alívio. Podia passar um dia, semanas, meses, até anos, a vontade nunca passava. A abstinência sempre o lembrava das péssimas decisões que o levaram a desejar a droga enquanto vivesse.
Engoliu o que restava do refrigerante. Um outro tipo de droga, mas era diferente. Talvez essa não o levasse a um infarto fulminante, então melhor isso do que qualquer outra substância ou álcool. Só precisava se concentrar em algo importante, vital... Algo superior àquela ânsia louca que o corroía por dentro.
Gabriela. Ela dormia no seu quarto, tranquila. Por ela, continuaria tentando. Por si, também, para que fosse capaz de ajudá-la com esse novo problema. Olhou de novo para o mapa na tela do celular, incrédulo.
Por que caralhos ela vinha recebendo ligações de sua cidade natal? Só havia uma explicação plausível. Desconfiado, procurou o nome do irmão na agenda do celular e fez a ligação.
— Pablo? Tá podendo falar? — percebeu a própria voz um tanto quanto trêmula, e se aprumou, recuperando a compostura.
— Fala Lipe, tá tudo bem?
— Tá, na medida do possível. Me responde uma coisa: por que quando eu perguntei pra você o motivo de a Gabriela deixar a agência, você me falou que ela ia passar um tempo com o pai?
— Eu... nossa, mano. Isso tem tempo. Por que quer saber disso agora?
— Só me responde! Por que você falou aquilo? Ela nem tava com o pai! Ela tava na casa da Nayara, e você disse que ela ia pra casa do pai!
— Foi o que ela me respondeu. Uns dias antes, enquanto ela tava no hospital esperando você acordar, o pai dela ligou aqui procurando por ela. Quando ela voltou pra agência, eu ia falar a respeito, mas daí você acordou e eu fui pro hospital. Depois rolou a briga dela com a mãe, e quando falei com ela de novo, avisei que o pai dela tinha ligado. Ela tava bem nervosa por causa da situação toda, não sei se deu muita bola. Eu insisti pra ela ficar na agência, foi uma conversa confusa, ela não quis ficar, e quando perguntei pra ela o que ela ia fazer, ela falou do pai. Foi mais ou menos isso.
— E depois? Você não soube de mais nada?
— Eu tava cheio de problemas pra resolver, Lipe! Você sabe disso! Eu tentava falar contigo, você não queria contato; tinha a Jackie e o exame que eu insisti pra gente refazer. Tinha a mãe me torrando o saco, o que piorou quando ficou sabendo da gravidez da Jackie. Tinha tanta merda na minha cabeça que a última coisa que eu podia pensar era no pai da Gabi.
— E você sabe se ele voltou a ligar? Se ele falou com alguém da agência ou apareceu por aí?
— Ele telefonou de novo depois que ela foi desligada; o Niko que atendeu e me disse que o homem precisava falar com ela urgente porque tinha se mudado de casa e precisava avisar, então eu falei pro Niko passar o número do celular dela pra ele, pra se resolverem entre eles...
— Você o quê? — dessa vez, Felipe teve certeza de que não controlou o tom de voz.
— Eu falei pra ele passar o número dela, ué. Ela também não atendia às minhas ligações, então eu achei mais fácil. Qual o problema? Era o pai dela!
Angustiado, Felipe fechou os olhos e respirou fundo. Ao menos, sua suspeita tinha acabado de se confirmar. Sabendo que seria contraproducente esconder o assunto do irmão, resolveu esclarecer ao menos algum detalhe sobre o caso.
— Ela tem problemas bem sérios com o pai, Pablo. Ela veio pra capital fugindo dele. Ele é um mau elemento, quer fazer mal a ela. Você não devia ter passado o número dela pra ele. Na verdade, muito me admira o fato de você ter agido de maneira tão inconsequente.
— Eu... não fazia ideia — Pablo respondeu, aparentemente perturbado — ela nunca falou nada a respeito. Eu jamais teria... eu não tava pensando direito naqueles dias, Lipe. Naquele exato momento, eu tinha acabado de encerrar uma ligação com a mãe, tava tão... puto com tudo, quando o homem ligou, eu nem pensei em nada, apenas... Que merda! E agora?
— Agora aquele sujeito fica ligando pra ela. Eu vou ver o que resolvo. Nunca mais faça isso, mano. Isso foi muito errado, nem preciso dizer.
— Eu sei que foi. Se alguma coisa acontecer com ela por causa disso, eu...
— Não vai. Eu vou dar um jeito nisso, ok? — Felipe tentou parecer confiante.
— Como você vai cuidar disso se nem chega perto dela, mano?
— Eu... vou dar meu jeito. Fica fora disso.
Depois de alertar o irmão, encerrou a ligação, trêmulo. Sentia-se a ponto de quebrar alguma coisa. Na verdade, sua vontade era de encontrar aquele homem que se dizia pai da Gabriela, apenas para matá-lo da forma mais cruel e dolorosa que pudesse pensar. O ódio que sentia dele era tão profundo que acionava todos os gatilhos responsáveis por sua ansiedade crescente. Certamente, se o encontrasse, não seria capaz de responder por si mesmo.
Foi até o banheiro e jogou uma água no rosto a fim de disfarçar a fúria. Controlou a respiração até perceber seus impulsos e os sintomas da abstinência sob controle, e quando suas emoções se estabilizaram, voltou ao quarto.
Gabriela acordava quando ele entrou. Ao vê-lo se aproximar, sentou-se na cama. Os cabelos desgrenhados caíam sobre o rosto delicado, e ele sentiu uma onda de ternura misturada com saudade. Seus dedos formigavam, desejando penteá-los com os dedos, mas ele se conteve, sabendo que o gesto carregava mais do que simples carinho. Sentia uma falta insana dos fios longos, como conhecera, mas isso não diminuía em nada o que ele sentia no momento.
— Tá melhor? — ele perguntou, com voz contida e baixa.
— Melhorei, sim. A dor quase passou. — Ela o observou, intrigada. — Tá tudo bem? Você parece... nervoso.
Ele abriu a boca para responder que sim, que estava tudo bem, mas mudou de ideia. Se queria construir uma relação saudável com ela, eles precisavam ser transparentes um com o outro. Estava farto de fingir, de mentir e se esconder. Era hora de colocar as cartas na mesa.
— Não, Gabriela. No momento, eu trocaria um dos meus dedos por uma carreira de pó ou uma "bala" — ele respirou fundo, tentando controlar o tremor nas mãos — isso faz meu corpo arder como se estivesse em chamas, minha cabeça parecer menor que meu cérebro e meu peito a ponto de explodir. Eu tô super irritado, agitado, angustiado e gostaria muito de aliviar o que sinto, mas não dá, então tenho que esperar passar.
Obviamente, ele ocultou dela seus pensamentos sobre as inúmeras formas de se esquartejar e desaparecer com um corpo. Mesmo assim, ela o fitava, assustada. Talvez ele tivesse sido sincero demais, mas não adiantaria mais fingir para ela. Não depois de tudo o que ela havia confidenciado acerca de si mesma.
— Achei que você estivesse melhor... — ela lamentou, quase num sussurro.
— É um processo — ele respondeu, taciturno. — Mas não quero focar em mim, ok? Preciso que você se ajeite. Vou te levar pra sua casa porque preciso resolver uns assuntos.
Ela se colocou de pé e parou diante dele, olhando-o de baixo para cima.
— Resolver o quê? Tem a ver com essa sua... necessidade?
— Não! — ele respondeu, surpreso pela dedução dela. — Claro que não! É outro assunto...
Então, antes que ele terminasse de falar, ela o agarrou pela cintura e apertou o rosto contra seu peito. Pego desprevenido, ele ficou com os braços estendidos dos lados do corpo dela, incerto do que fazer.
— Não vai... — ela choramingou — fica aqui, eu te ajudo a fazer passar... — e depositou um beijo na altura do seu coração.
Um calor inesperado percorreu seu corpo, começando no peito e se espalhando até as pontas dos dedos. Era como se cada barreira interna estivesse desmoronando diante daquele toque singelo. Sentiu os olhos úmidos e o peito ainda mais apertado. Envolveu-a com os braços e apertou-a contra si, profundamente emocionado. Ela ergueu o rosto, oferecendo-lhe os lábios e... céus, não havia mais nenhuma força de vontade em si para resistir também a isso.
Tomado de profunda urgência, colou os lábios aos dela, e foi como se tudo parasse de girar e se encaixasse no lugar certo. Seu corpo migrou de uma necessidade dolorosa para uma ânsia erótica e profunda, pulverizando qualquer dilema residual. Quando ela entreabriu os lábios e as línguas se tocaram, o mundo deixou de existir, e só havia eles, ali naquele quarto, bebendo um do outro como se nada no mundo pudesse saciar suas sedes.
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