54 - Promessa
Gabi sentiu a pontada na cabeça antes mesmo de abrir os olhos. Confusa sobre onde estava, concentrou-se nos detalhes ao redor, como a textura do material sob seu corpo e um cheiro diferente no ar: couro, um fundo amadeirado e algo bem específico, de alguém bem específico.
Abriu os olhos. Uma parede azul-marinho banhada pela luz do amanhecer trouxe de volta a consciência de onde se encontrava. Seu coração pareceu dar uma cambalhota e rolar até o estômago, provocando uma sensação desagradável ali. Por algum tempo, ela se viu distraída com as bordas sombreadas de um quadro que não mais ocupava aquela parede, como um fantasma do passado.
O significado implícito dessa constatação a entristeceu. Se fosse uma representação do que ela e Felipe tiveram juntos, ela também não deveria estar ali.
Ergueu-se num supetão, e logo se arrependeu do movimento afoito. Foi como se seu cérebro tivesse permanecido esparramado na almofada. Fechou os olhos e esperou que o mal-estar diminuísse antes de se mover. Um gemido lamurioso escapou dos seus lábios quando levou as pontas dos dedos às têmporas e massageou a região na tentativa inútil de dispersar a dor.
— Não tenho nenhum analgésico em casa. Não posso ter. Se quiser, eu saio pra comprar.
Ela abriu os olhos, girou o pescoço em direção à voz grave e o encontrou, sentado no braço do sofá, na extremidade oposta do mesmo. Trajava uma camiseta branca e a mesma calça de moletom da noite anterior. Um dos pés descalços se apoiava no assento; o joelho elevado e flexionado sustentava um dos braços, solto, enquanto o outro mantinha-se erguido e dobrado entre a nuca e a parede, onde ele se apoiava, relaxado.
Ela teve vontade de desenhá-lo nessa posição. A luz matutina que se projetava pelas janelas não era suficiente para iluminar onde ele estava, mantendo-o parcialmente nas sombras. Por um instante fugaz, ela se esqueceu da dor, mas a lembrança da noite anterior pulverizou a breve contemplação.
Onde ela estava com a cabeça para aparecer assim, do nada, na porta dele? No que estava pensando? Obviamente, não estava pensando, só reagindo, ao álcool e a outra coisa que corria em suas veias, desenfreada. Era como um vírus, se alastrando e fazendo doer seu peito em noites solitárias. Era a falta, o desejo, a lacuna que ele cavou quando desapareceu naquela esquina, há meses.
— Se quiser — ele voltou a falar — posso fazer pra você um suco de cenoura, mamão e gengibre. Quando eu ficava assim, me ajudava. Isso e água, claro — ele sugeriu, aparentemente preocupado.
— Não sei se consigo engolir qualquer coisa — ela sussurrou, e estranhou o timbre rouco. Um arrepio percorreu sua pele quando sentiu o frescor da temperatura matinal, conscientizando-a de seu estado desgrenhado. Olhou para o tecido amarrotado do vestido claro, cujas alças pendiam nos braços. Agradeceu aos céus por ter cortado o cabelo e ele não se parecer agora com um ninho de ratos.
— É importante colocar algo no estômago — ele lhe estendeu uma garrafinha de água, que ela nem viu de onde ele tirou. Aceitou e deu alguns goles, mas seu estômago se revirou. Respirou fundo, então olhou para ele.
— Me desculpa por ter aparecido aqui no meio da noite, sem mais nem menos. Eu fui impulsiva e imprudente...
— Muito imprudente — havia algo sombrio na voz dele. O tom esfriou seu corpo, fazendo-a puxar uma manta que só então ela se deu conta de que cobria suas pernas.
— Eu preciso ir... — articulou, colocando os pés descalços no chão. Seus olhos percorreram o assoalho em busca das sandálias.
— Não precisa. Fica mais um pouco. Precisamos conversar.
Ah, merda.
Ela estava envergonhada da própria atitude e das palavras que jogara em cima dele na noite anterior. Havia feito confidências muito particulares, muito pessoais, mesmo que parte delas o envolvesse. Agora, ela não sabia se estava preparada para voltar ao assunto; não sem a desinibição proporcionada pelo álcool.
— Felipe, eu sei que devo ter dito alguma bobagem ontem, mas você viu que eu tinha bebido, então...
— Não tinha nenhuma bobagem no que me disse, Gabriela. Muito longe disso. — Então, ele ficou de pé, deu dois passos em sua direção e sentou ao seu lado, lhe estendendo a mão. — Vem aqui.
Insegura do que ele pretendia, ela ergueu a mão e tomou a dele. O calor da palma percorreu seu braço e fez seu coração disparar. Ele a puxou com delicadeza, então a atraiu contra o próprio peito num abraço cálido, isento de malícia. O aconchego a envolveu por inteiro, como uma cápsula protetora, e a sensação foi tão pungente que fez brotar lágrimas em seus olhos.
Enquanto permanecia dentro daqueles braços, ela apoiou o rosto no peito firme e pôde ouvir o pulsar acelerado do coração, que batia em uníssono com o seu. Sentiu os dedos longos em sua nuca e o ar quente dos lábios em seus cabelos. O polegar acariciava lentamente o espaço entre sua mandíbula e a orelha, espalhando arrepios na região. Ela desejou ficar ali, quietinha, até que tudo desaparecesse. Como seria bom se o passado pudesse ser apagado.
— Você ainda me deve uma conversa, Gabriela — ele murmurou, sem afastar os lábios de sua cabeça. Ela teve vontade de erguer o queixo e ocupar aquele lugar com a própria boca, mas não se moveu.
— O que quer dizer?
— Quando te encontrei na casa da Nayara. Você pediu que eu contasse a minha história, e então você me contaria a sua, mas não foi o que aconteceu. Eu lhe confidenciei coisas que nem minha família sabe, mas você me mandou embora.
Ela fechou os olhos, e o gesto fez uma lágrima correr. De fato, ela não havia cumprido sua parte do acordo, porém ninguém poderia julgá-la, certo? Ela havia acabado de ser atingida por uma bomba, e demorou um tempo para processar o fato de que esse homem que agora a abraçava tinha parte no acidente que ceifara a vida de sua mãe, provocara um aborto e a devolvera ao inferno.
Quando Felipe partiu naquela manhã, ela evitou pensar em tudo o que ele lhe dissera, mas em algum momento analisou a situação com calma. Lembranças difusas do acidente retornaram, claras como o dia, e quando as peças se encaixaram, o quadro completo a encheu de angústia. Saber que ela havia participado da morte de Thiago parecia uma piada do destino, mas esse mesmo destino havia entrelaçado sua vida à de Felipe naquela curva de estrada.
— Eu não podia imaginar que aquele homem caído ao lado do carro fosse você — ela confessou. — Nunca pensei que pudesse te reencontrar depois de tanto tempo, e isso ficou martelando na minha cabeça durante esses meses em que a gente não se viu.
— Quem poderia imaginar, não é mesmo?
Se ele foi irônico ou não, ela não conseguiu captar. Contrário a isso, parecia sincero, e preocupado... carinhoso além do que ela esperava. Tal afabilidade a motivou a continuar.
— Tanta coisa já aconteceu na minha vida... eu não queria ter que falar do meu passado, mas você tem razão, esse era o combinado.
Ele a afastou delicadamente, apenas para erguer seu rosto e envolvê-lo entre as mãos. O prata dos olhos refletia a luz que vinha das janelas às suas costas; havia um vinco entre as sobrancelhas e a mandíbula barbada parecia tensa, travada.
— Me conta — a voz não soou imperativa. Foi mais como uma súplica.
Ela soltou o ar lentamente e aprumou os ombros, mas não escapou do toque das mãos. Sem desviar os olhos dos dele, começou a falar:
— Começou quando eu tinha doze anos. Os episódios eram bem espaçados, às vezes demorava semanas, visto que meu pai era caminhoneiro. Sempre que ele voltava pra casa, eu sabia que ia acontecer de novo. Ele dizia que mataria minha mãe se eu contasse, e que então eu ia ficar sozinha com ele pra sempre. Não posso te dizer quantas vezes aconteceu, mas...
Ela engoliu em seco. Outra lágrima correu, e ela pensou que, se Felipe pudesse olhar dentro dela, encontraria as centenas de buracos que cada toque daquele homem que se dizia seu pai lhe causara. Por anos, seu interior foi como uma peneira, rasgado, vazando e vazando, sem capacidade de manter a luz dentro de si por tempo suficiente.
Houve um tempo em que ela desejou acabar com tudo. Perpetuar a escuridão, deixar de existir. Chegou a planejar, mas sempre que estava à beira de uma decisão, recuava por medo de deixar sua mãe sozinha com o monstro. Não era papel dela cuidar da mãe; era para ser o contrário, mas ela se agarrava à mãe como a única centelha de amor que julgava merecer, então acreditava que não tinha esse direito sobre si; não podia simplesmente decidir sobre a própria vida... ou morte.
Apenas anos depois, quando criou coragem para fugir, abriu-se para a possibilidade de algo novo. Viu-se capaz de arriscar, foi se conquistando aos poucos, e quando seu corpo despertou para o prazer e percebeu que era capaz de sentir luxúria, paixão, alegria, ambição, desejo, alívio, amor... sentimentos intensos, alguns belos e inspiradores, outros nem tanto, foi que entendeu que seu corpo poderia lhe pertencer novamente.
Hoje, ela se sentia mais segura para decidir a própria vida; mas naquela época, ela não passava de um trapo usado e largado. Atormentada por ter que retomar o assunto, continuou o relato:
— Quando eu estava com dezesseis para dezessete anos... engravidei. — Ela fez outra pausa, que se prolongou por um tempo. Felipe não a apressou, apenas a acomodou de volta em seu peito, com o braço em torno dos ombros delicados.
— Eu sinto muito... — ele murmurou, soturno.
Encostada nele, ela percebeu que ele respirava de modo irregular, e que o coração continuava descompassado. Seu relato o angustiava, e ela resolveu que era hora de acabar logo com aquilo. Esfregou a cabeça no peito dele, como uma carícia, então continuou:
— Tentei esconder por algumas semanas, mas uma hora não teve mais como, e minha mãe descobriu. Ela procurou meu pai para contar, e ele jogou a culpa em cima de algum garoto da escola. Ela acreditou nele, como sempre fazia. Por muito tempo, ela fingiu que não sabia a verdade porque tinha medo dele, porque não era forte o suficiente para enfrentar a situação. Numa noite, quando ele voltou de um trabalho, depois de duas semanas ausente, ele foi direto ao meu quarto. Minha mãe acordou e foi averiguar, e quando entrou... — ela não foi capaz de continuar. Seu coração saiu do ritmo e a garganta doeu, travada. Percebendo seu tormento, Felipe a tranquilizou.
— Você não precisa me contar tudo, se você não quiser, ok? Pode pular essa parte. Eu tenho imaginação.
Ela ergueu a cabeça e o encarou, agradecida. Felipe tinha lágrimas nos olhos e parecia trêmulo. Era notório o impacto emocional que a história lhe causava, e por pouco, ela não desabou diante dele. Para manter-se firme, abandonou os olhos enevoados e se concentrou na estampa da camiseta branca. Era a ilustração de um tucano em meio às folhagens de um coqueiro. Como se pudesse se transportar para aquela realidade tropical imaginária, continuou o relato:
— Ele agrediu minha mãe, e foi com tanta fúria que ela chegou a perder os sentidos. Naquela noite, ele saiu de casa alucinado e, desculpa mencionar isso assim, de modo tão rude, mas ele era viciado em crack, e estava drogado. Entrou no caminhão e desapareceu, e naquela noite eu desejei que ele caísse numa ribanceira com aquele caminhão e morresse de forma lenta e dolorosa. Obviamente não foi o que aconteceu.
— E o que aconteceu depois? — ele perguntou, cauteloso.
— Minha mãe acordou em algum momento, e eu implorei que fôssemos a um hospital, que procurássemos a polícia, mas ela se negou. Pegou uma bolsa velha, separou umas roupas e pediu que eu fizesse o mesmo. Horas depois, estávamos na estrada, num carro velho que meu pai quase não usava mais. Eu nem sabia que minha mãe dirigia até esse dia. Quando chegamos àquele ponto da estrada, os freios pararam de funcionar, e o resto você já sabe.
Ele a apertou novamente contra si, em silêncio. Levou um bom tempo antes que dissesse alguma coisa. Quando o fez, sua voz soou trépida. Ela especulou se ele estaria chorando, e se sim, se seria pela perda do irmão ou por causa dela.
— E a gravidez...
— Foi interrompida. Com o estresse, o impacto, todo o quadro... foi inevitável. Talvez você possa pensar que esse é mais um trauma para a minha pilha de lembranças ruins, mas se quer saber, para mim foi... libertador.
Embora sentisse alívio pela perda do bebê, a sombra da culpa pairava sobre ela, como se fosse incapaz de amar uma parte de si que também era parte dele. O pensamento era um fardo, pesado e sufocante. Ela se envergonhava por se sentir assim, mas a verdade é que não sabia se seria capaz de amar o fruto de um estupro, um pedaço daquele monstro.
— Eu acho que posso entender esse sentimento. Talvez um dia, quando estiver pronta, possa tentar outra vez...
— Não. Nunca! — ela se constrangeu com o corte brusco, mas as palavras saíram sozinhas. Olhou para ele, escolhendo com cuidado o que dizer a seguir. — Veja bem, pode parecer egoísta, mas eu nunca quis ter filhos. Nunca sonhei em ser mãe e, desde sempre, foi assim. Quando pude decidir, eu fiz essa escolha, e isso é algo que você precisa saber sobre mim. Eu definitivamente não quero ter filhos.
Ele pareceu chocado a princípio, mas ficou calado, absorvendo a informação. Depois de um tempo em que pareceu ponderar, ele ergueu seu queixo com a ponta dos dedos. Uma lágrima correu no rosto dele e se perdeu na barba, e isso a intimidou. Sem entender o que ele pensava de sua decisão, sentiu o peso da dúvida e do medo ganhando força dentro de si. Pensou em quebrar o contato e se afastou, mas ele a segurou firmemente, mantendo-a no lugar.
— É um direito seu, Gabriela. Essa escolha é apenas sua, e de mais ninguém. Se tem algo que você tem poder, é sobre o seu corpo. Ele te pertence, e você pode sim tomar as decisões sobre si sem se preocupar com o julgamento das pessoas. Eu jamais questionaria... jamais questionarei sua decisão. Nunca vou te julgar, e sua escolha não seria capaz de diminuir um grau do amor que eu sinto por você.
Ela soltou o ar, e sorriu em meio às lágrimas derradeiras. Ele enxugou cada uma com extremo carinho, e depositou beijos suaves no rosto, na testa, nos cabelos claros e voltou a abraçá-la apertado. Havia tanta doçura no gesto que ela voltou a chorar, só que não de tristeza, não de angústia, mas de alívio. Sentia-se protegida, como se cada toque curasse mais um pedacinho dela, arrancando as crostas mortas que se descolavam a cada lágrima que ela vertia sem mais se conter.
Quando os soluços cessaram e aquelas memórias terminaram de se desprender, ela se sentiu leve como nunca antes. Foi como ver aquele pus nojento que infeccionava sua alma sendo lavado, deixando no lugar um espaço limpo, fresco e vazio, porém com cheiro de novas possibilidades. Sentiu-se purificada e, dentro dos braços do ex-demônio, encaixou-se como se aquele lugar lhe pertencesse a vida inteira.
— Acho que tô pronta pra arriscar aquele suco de frutas que você ofereceu — ela murmurou, sorrindo. Ele liberou o abraço, ficou de pé e a puxou pela mão.
— Vem comigo. Qualquer coisa que você precisar, eu vou fazer o possível pra te dar — ele assegurou, enquanto caminhavam até a cozinha.
Parecia uma resolução, não apenas acerca de uma refeição ou qualquer necessidade imediata. Foi como uma promessa de algo muito além.
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