40 - Condição Rara
— Afinal de contas, o que está acontecendo com vocês? — Graça quase gritou quando o prato de cereal atingiu o chão.
— Eu não quero ir embora! — Foi Laís quem choramingou enquanto Isis descia da cadeira para pegar a própria boneca, que fora ao chão junto com o prato.
— Vocês não têm que querer nada! Onde já se viu?
— Lá é muito frio! — Isis murmurou, agarrada ao brinquedo. Graça olhou resignada para a barra do vestido que a menina usava, agora respingado de inúmeras gotículas marrons do leite com chocolate onde antes boiava o cereal que agora se espalhava pelo chão.
— Meninas...
— Eu quero a mamãe! — Laís voltou a choramingar, agora com lágrimas de verdade descendo pelo rostinho rosado.
Graça suspirou e não disse mais nada. Fazia dois dias que as meninas tinham voltado da casa de Bruna, a mãe. Desde então, estavam rebeldes, irritadas e tristonhas, tanto que ela nem conseguira mais levá-las para a agência. Teve vontade de reclamar e afirmar que não deveria ter permitido que as meninas dormissem na casa de sua nora, mas não havia ninguém ali para ouvir suas queixas, então as guardou para si.
— Vamos fazer assim: vocês me ajudam a arrumar as malas, e ficamos mais um pouco de tempo por aqui, tudo bem?
— Pra quê arrumar as malas se vamos ficar mais um tempo? — Isis questionou, astuta.
Graça a encarou e, por alguma razão, lembrou-se de Felipe. A lembrança a alfinetou e causou um incômodo agudo em suas entranhas. Tentando afastar a sensação, colocou-se de pé e foi em busca de Irene, a empregada que, convenientemente, havia fugido da cozinha assim que Laís começara a bater as mãozinhas na mesa, pouco antes de o prato ir ao chão.
Encontrou a mulher na lavanderia e solicitou que limpasse a bagunça, mas o fez sem a altivez de sempre. Dessa vez, sentia-se muito cansada e entristecida, então voltou para a cozinha. Por alguns minutos, contemplou o movimento na copa onde as meninas estavam e, ainda que não quisesse perder tempo com emoções confusas, viu-se perdida nos pensamentos que tentava evitar a todo custo.
— Você poderia reconsiderar a decisão de voltar para a Alemanha, ao menos por um tempo — a voz de Pablo atrás de si lhe causou um sobressalto.
— Pablo? Desde quando está em casa?
Pablo estava apoiado no batente da cozinha e a encarava, preocupado. Pela outra porta, podia ver as meninas girando em torno da empregada, que limpava a sujeira do chão com um MOP. Como num passe de mágica, elas haviam se esquecido da birra, ainda que Isis não sorrisse enquanto corria.
— Tem uns dez minutos. Ouvi você discutindo com as meninas. Elas estão crescendo, mãe, é natural que saibam escolher com mais clareza o que querem e o que não querem. Isso tende a piorar, você sabe.
— Eu sei... — Graça parecia absorta.
— Você está bem, mãe?
— Você já notou como a Isis lembra o Lipe?
Pablo desviou os olhos para a menina, que parara de correr e observava Irene limpando o chão enquanto Laís corria entre as cadeiras. A garotinha estava compenetrada em algo que apenas ela sabia. Ele então voltou a fitar a mãe; não fosse por um leve tremor na ponta dos dedos, ela pareceria inabalável.
— Por que não foi visitá-lo, mãe? — Pablo desviou o assunto, mas Graça continuava com a mente em suas próprias confabulações.
— Quanto tempo você acha que vai demorar até que Isis perceba que não precisa de nós... de mim?
Pablo estranhou a pergunta. Suspirou longamente antes de responder.
— Vai levar um bom tempo. Não sei por que está preocupada. Isis não parece ter o mesmo tipo de problema que o Lipe.
Graça estremeceu ao som da palavra "problema". Ninguém podia falar acerca do "problema de Felipe". Era um assunto proibido em família. Felipe proibiu que qualquer um falasse disso porque odiava rótulos, embora parecesse não se importar em colecionar alguns, principalmente os que mais se distanciavam de quem ele era em sua essência. Era como se quisesse se esconder, se maquiar de pinturas como um palhaço que esconde a dor fazendo os outros rirem da própria cara.
Aquilo era algo que feria Graça no mais profundo da alma. Ainda que a condição rara de Felipe não pudesse ser considerado um um transtorno, Graça bem sabia qual era sua participação no desenvolvimento do HSAM* e da hipersesibilidade sensorial em Felipe. Tais atributos poderiam ser considerados um ganho para um artista, se a mente que os desenvolvesse tivesse capacidade emocional para absorver tais mudanças.
Ele tinha apenas doze anos de idade. Ela havia se atrasado para pegá-lo na escola, estava irritada com algo tão pouco importante que nunca conseguira se lembrar exatamente do que era, mas fora algo significativo a ponto de fazê-la arrancar com o carro sem verificar se Felipe havia embarcado completamente no automóvel. A voz de Pablo gritando às suas costas alertara que a porta de trás estava aberta.
Felipe tinha caído do carro pois ainda estava fechando a porta quando ela acelerou, e a curva brusca para virar a esquina o jogara porta afora. Graça jamais se esqueceria da imagem dele estirado sobre o asfalto quente, vista de seu espelho retrovisor.
Traumatismo craniano. O dano não chegara a afetar suas habilidades já desenvolvidas, mas fora sério o suficiente para causar uma lesão numa determinada área do cérebro. Tal lesão causara o desenvolvimento da condição rara e da hipersensibilidade sensorial sem interferir diretamente nas áreas responsáveis por suas proficiências, mas Felipe nunca mais fora o mesmo, emocionalmente falando.
— Eu nunca entendi, sabe? Quando pequeno, eu queria apenas que ele não sofresse, mas então ele cresceu e trocou meu cuidado por... um punhado de vagabundos drogados.
— Não foi bem assim...
— Depois me trocou por um punhado de pó...
— Mãe...
— Por quê? Por que ele faz isso, filho?
Ela o protegera como pôde, mas quando voltara à escola após dois meses afastado e em terapia, Felipe já via o mundo de outra maneira. Passara a falar cada vez menos, mas se destacava em artes e matemática. Os amigos começaram a tratá-lo como um deficiente mental pois ele não se comunicava de forma adequada, contudo, aos 15 anos, ele arrumara um jeito de se enturmar à sua maneira. Infelizmente, tais caminhos o levaram às drogas e suas consequências.
Pablo observou as mãos trêmulas e os olhos rasos d'água de sua progenitora. Não se lembrava da última vez que vira sua mãe assim. Talvez no enterro de Paolo, seu pai, e poucas vezes antes disso, no velório de Thiago e quando o câncer de Paolo entrara em metástase.
Ela nunca derramara lágrimas por Felipe, ao menos não diante dos outros.
– Eu não sei o motivo, mãe. Desconfio que temos parte da culpa. Nunca foi fácil lidar com ele e acho que, mesmo quando era fácil, nós tornávamos tudo difícil. Você poderia tê-lo visitado... ele quase morreu dessa vez.
Uma lágrima correu no rosto da mulher, e foi prontamente removida com um movimento brusco de seu punho. Aprumando a postura, ela se voltou para Pablo e assumiu a costumeira expressão, como uma máscara muito bem acoplada. A pequena brecha emocional se fora, e em seu lugar, restava a polidez austera de sempre.
— Como você está, meu filho? Parece abatido.
Ele a encarou, confuso.
— Eu pareço abatido? É sério? Não acha que eu tenho motivos de sobra para estar abatido?
— Se for por causa do Lipe, achei que estava acostumado...
— Mãe!
— Ok, me perdoe. E obrigada por acompanhar esse problema de perto, sim? Você sabe que não posso lidar com esse tipo de coisa.
— Esse "problema" ou "tipo de coisa" é seu filho e meu irmão!
— Não há por que ficar aborrecido comigo, Pablo. Minha preocupação é com você, agora. Por acaso tem visto a Jackie? A mãe dela me ligou ontem, parece que a filha está com algum problema sério, mas não quis me dizer.
Pablo demorou alguns segundos para responder, e seus lábios entreabertos revelavam o quanto estava estarrecido com a mudança de comportamento da mãe.
— Sim, eu tenho visto a Jackie sim. Infelizmente, a tenho visto já há alguns meses. Pelo andar da carruagem, continuaremos vendo-a por muito mais tempo.
— É mesmo? – A mulher exclamou, satisfeita — isso é uma excelente notícia! Quer dizer que estão acertando os ponteiros?
Pablo mordeu a língua para não soltar a bomba no meio da cozinha. Não podia dizer nada até ter certeza, mas sua vontade era de arrancar os cabelos gritando a verdade até fazê-la entender o quão terrível era tudo aquilo. Era bem capaz de sua mãe incentivar um casamento depois de descobrir a verdade, ignorando toda a armação de Jackie.
Graça devia sofrer de algum grau de de psicopatia, só podia ser isso. Ele queria tanto que ela soltasse aquela capa de supermulher e mostrasse o que realmente sentia, mas ele imaginava que jamais veria totalmente seu lado vulnerável, ainda que o tivesse acabado de vislumbrar por alguns poucos minutos.
— Lipe saiu da clínica hoje, caso queira saber. Estou cansado e vou tomar um banho. Veja se pode adiar a viagem por ao menos duas semanas, tem algumas coisas acontecendo e eu preciso que você esteja aqui, mãe. Pode tentar fazer isso, por favor?
Ela o observou e por um breve instante, seu tormento interior brilhou por trás das íris cinzentas cobertas por uma frieza maquiada. Tal atribulação durou poucos segundos, sendo logo substituída pela aparente calma de sempre.
— Vou ver o que posso fazer. Lipe vem para cá?
— Eu duvido muito.
Quando sua mãe lhe deu as costas e foi ao encalço das meninas, ele girou os calcanhares e subiu as escadas rumo ao próprio quarto. De pé em frente à porta do banheiro anexo, ergueu o aparelho e mais uma vez tentou falar com Gabi, sem sucesso.
— Onde você está, Gabi? Se puder, me responda essa mensagem. Eu conversei com a Jackie e tenho algumas novidades, mas não quero deixar uma mensagem para você sobre esse assunto. Lipe deixou a clínica hoje, ainda não o vi, mas imagino que esteja melhor e... — ele fez uma pausa e esfregou os olhos. Após um suspiro profundo, continuou: — eu já sei que sente algo por ele. Não sei por que você nunca me disse, também não sei como eu não percebi antes, mas quero que saiba que... está tudo bem, ok? Não estou triste, ao menos não com você, mesmo porque você está certa, eu não tenho sido honesto contigo. Vamos conversar sobre isso, sim? Por favor, me ligue quando puder. Preciso realmente saber se você está bem e... bom, apenas fique bem.
Após deixar o recado, ele entrou no banho e permitiu que a água o ajudasse a aliviar a tensão. Infelizmente, não havia água no mundo capaz de lavar suas perturbações interiores, muito menos purificar suas últimas atitudes.
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*A Memória Autobiográfica Altamente Superior (HSAM, na sigla em inglês para Highly Superior Autobiographical Memory) é uma condição extremamente rara em que uma pessoa tem a capacidade extraordinária de recordar, com detalhes precisos, quase todos os eventos que ocorreram em sua vida.
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