4 - Primeiro Sketch
Merda! Merda, merda e merda!
— Gabi?
Gabi não reconheceu a voz que a chamava, de tão abalada que estava. Trêmula, continuou correndo em direção aos banheiros, mas ao invés de entrar num deles, deu meia-volta e saiu do escritório. Chegou quase sem fôlego às escadas de incêndio e desceu dois lances, depois saiu novamente para o corredor e pegou o elevador até o térreo.
Apenas quando chegou à área externa do complexo comercial, permitiu-se respirar com calma. Jogou o corpo num dos bancos e ficou um tempo ali, contemplando as próprias mãos trêmulas.
Qual era o problema daquele cara? Por Deus! Gabi tinha passado dias ouvindo histórias sobre o comportamento libertino do "chefe das trevas", mas nunca imaginou testemunhar algo assim! O pior de tudo foi constatar que já o havia visto antes! Por duas semanas trabalhara para esse homem sem saber que ele era o tal motoboy que lhe dera um "perdido" no banheiro, no mesmo dia em que ela chegara à capital.
Aquele cara era o seu patrão!
Por que Niko fez aquilo de mandar ela entrar sem bater, submetendo-a a tal situação? Teria sido de propósito? Esperava sinceramente que ele não quisesse pregar uma peça nela ou algo do gênero. Preferia acreditar que ele não sabia o que rolava dentro da sala, embora parecesse improvável.
E quanto ao Demônio? Ele nunca fizera questão de trocar uma palavra sequer com ela em tantos dias, e na primeira vez que solicitou sua atenção, algo assim acabou acontecendo e...
Gabi enfiou os dedos nos cabelos e esfregou o couro cabeludo com força, como se pudesse abrir o crânio para tirar lá de dentro a imagem do rosto másculo cheio de volúpia.
— Miserável safado! Como faço pra desver isso?
Incapaz de ficar parada, levantou-se e caminhou apressada até a área de trás do edifício, onde havia um mirante elevado sobre um deque de madeira. Subiu os degraus e buscou trazer o corpo para um estado de normalidade.
Era lógico que a cena havia mexido com ela. Por mais que quisesse julgá-lo por seu comportamento, ela ainda sentia no corpo os efeitos infames por presenciar, ainda que parcialmente, um momento tão íntimo do seu chefe. Sua carne estava trêmula e febril, e um incômodo no baixo-ventre denunciava como a cena havia despertado sensações até então desconhecidas a ela. Era surpreendente que seu corpo reagisse de tal maneira, dado seu histórico.
— Gabi?
Pega de surpresa, sobressaltou-se ao reconhecer a voz atrás de si. Buscou se recompor antes de virar o corpo para o encarar. Não podia acreditar que seu chefe havia saído da própria sala só para a encontrar. Além de educado, cortês e gentil, ele ainda se mostrava extremamente atencioso.
O completo oposto do Demônio Criativo.
— Oi Pablo... — ela sabia que ainda tinha o rosto enrubescido, mas não podia fazer nada a respeito — perdoe-me por sair correndo do trabalho no meio do expediente. Eu não me senti bem, eu não... e-eu... enfim, me desculpe... — Gabi agitava as mãos tentando encontrar as palavras, mas acabou desistindo.
Pablo se aproximou e ergueu uma mão como se tivesse a intenção de tocá-la, mas não completou o gesto, apenas enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta azul que usava e se contentou em manter-se a um passo de distância.
— Não precisa se desculpar. Não vim atrás de você porque fez algo incorreto, apenas fiquei preocupado com a forma como passou em frente à minha sala. Nunca a vi tão transtornada antes. O que aconteceu? Alguém fez alguma coisa que te assustou ou ofendeu?
Gabi se perguntou se ele sabia. Bom, Felipe era irmão dele, claramente ele devia saber sobre o comportamento do sujeito. Ainda assim, não teve coragem de falar nada. Não até que pudesse interpretar o que estava sentindo com toda essa situação. Sua vontade era nunca mais entrar naquela agência para ter que encarar aquele rosto de novo, de tão envergonhada que estava.
Há duas semanas, nos dois dias em que ficou enfurnada na pensão antes de ser chamada para a segunda entrevista, a imagem do motoqueiro molhado havia ocupado uma parte significativa dos seus pensamentos. Ela nem entendia muito bem o motivo disso, talvez fosse por ele ter testemunhado seu momento de fragilidade, ou simplesmente pelo fato de ele ser bem atraente, o que ela demorou um pouco a admitir, mas por aqueles dias, ela desejou vê-lo novamente.
Como iria imaginar que ele estava o tempo todo tão perto, e que era um dos seus chefes?
O chefe do "lado negro da força"?
— Ninguém fez nada comigo — não era uma mentira. Realmente, Felipe não fez nada com ela.
— Você pode me falar, Gabi.
Ela gostava do jeito que Pablo falava seu nome. Parecia que suavizava a voz, soava doce, charmoso...
Bom, ele todo era um fofo!
Onde você tá com a cabeça, sua louca? O homem é seu chefe, você é a faxineira dele! Tá vendo muita novela, sua sem-noção!
— É sério. Não há por que se preocupar. Só vim tomar um ar e vou voltar ao trabalho agora. Não perca tempo comigo, nem precisava ter vindo atrás de mim, para falar a verdade.
— O que te faz pensar que é perda de tempo?
— Eu conheço o meu lugar.
— Você acha que é inferior só porque limpa as mesas e faz o café?
Gabi pensou por um instante. Esse lance de ser superior ou inferior era tão relativo para quem via de cima... Dependendo de onde se está, tanto faz os que vêm depois.
— Bom, é você quem paga o meu salário.
Soou grosseiro. Ela não queria ter parecido rude com o comentário, mas seus nervos ainda estavam bem abalados.
— Da forma como fala, parece que estou comprando você. Não encare as coisas dessa maneira, você só vai se prejudicar — ele afirmou, inexpressivo.
Eles caminharam em silêncio até o elevador. Ela porque estava encabulada pela resposta dele, ele porque parecia aborrecido. Enquanto subiam, ela reuniu coragem para se desculpar.
— Não foi minha intenção ser descortês, Pablo. Sempre vivi muito na defensiva, não sou de relaxar e esperar as coisas me atingirem. Me desculpa.
— Você é um mistério, Gabi. Tenho para mim que você poderia estar fazendo qualquer outra coisa ao invés de ficar recolhendo lixo numa agência; talvez seu lugar fosse numa loja como vendedora, ou recepcionista num consultório dentário, até mesmo como atendente numa escola, enfim... há muitas opções para uma garota tão bonita quanto você.
— Você me acha bonita? — como sempre, a pergunta escapou antes de Gabi pudesse conter a boca. Pelo espelho do elevador, viu quando ambos os rostos ficaram corados. Pablo suspirou e encolheu os ombros tentando parecer indiferente.
— Não interprete isso de forma errada. É só uma constatação.
Gabi entendeu que o assunto se encerrava ali. Continuar por esse caminho fatalmente traria problemas para ambos, principalmente devido aos limites éticos de suas atribuições.
Mesmo assim, saber que Pablo a achava bonita quase sobrepujou o sentimento confuso que impregnava suas entranhas com a imagem do corpo suado de Felipe, suspirando de prazer num momento erótico.
Quase.
Quando entraram no escritório, a porta de Felipe estava aberta. Como a porta dele nunca ficava aberta, Gabi deduziu que ele já não estava mais na agência. Tal constatação a aliviou e intrigou em igual medida, pois dificilmente ele deixava o trabalho no meio do dia. Ela fez um esforço sobre-humano para passar pela porta dele sem lançar um olhar para dentro do espaço.
— Qualquer coisa, se não estiver se sentindo bem ou precisar de algo, pode mandar me chamar, ok? — Pablo concluiu antes de entrar na própria sala.
Por mais que tentasse parecer indiferente, o fato de ele não a encarar enquanto falava tornou claro que ele estava incomodado com algo, visto que sempre a olhava nos olhos e mantinha um sorriso cordial quando se dirigia a ela.
Gabi sentiu falta dos dois. Do olhar e do sorriso.
— Onde você estava? — Cíntia perguntou, sobressaltando-a.
— Ah, eu fui resolver algo lá no saguão.
— Você estava com o Pablo? — Agora, a voz vinha de trás; Diego quem fazia a pergunta.
— Não! Imagine! Nos encontramos por acaso no elevador...
— E o fato de ele ter saído logo depois de você, e terem voltado juntos, não quer dizer nada?
— Meu Deus, Diego! Você não trabalha não? — Leo, sempre atento, se acercou da conversa e puxou o loiro de volta ao seu posto — tem cliente esperando aqueles tabloides! Senta a bunda aí e para de cuidar da vida alheia!
Cíntia riu e voltou a encarar Gabi.
— Vamos tomar um café?
— Não, não. Vou aproveitar que o Felipe não está para limpar a sala dele.
A simples menção do nome de Felipe fez seu rosto esquentar. Graças aos céus, Cíntia não estava mais prestando atenção, perdida em olhares para a estação de trabalho. Seria por que Diana estava lá?
— Aproveite mesmo, ele não vai mais voltar hoje. Ele saiu daqui como um furacão, ainda bem que não atormentou ninguém — subitamente, Cíntia desviou os olhos das mesas e encarou Gabi — você não derrubou nada na sala dele, não é? Depois que Salid foi embora, ele perguntou por você e saiu daqui meio puto quando viu que você não estava.
— Ele perguntou por mim?
— Não bem por você. Foi mais algo do tipo: "cadê aquela faxineira enxerida?" — Cíntia inflou o peito e imprimiu um tom grave à voz. Ficou tão engraçado vindo de uma garota toda mirradinha e delicada que Gabi gargalhou.
— Sorte a minha que eu não estava, então! — Só esperava que o fato de ter entrado na sala dele sem bater não lhe rendesse uma demissão.
Gabi então se dirigiu à sala do Demônio Criativo munida de um MOP, sacos de lixo, flanelas e produtos de limpeza. Fazia tempo que não limpava aquele espaço e queria aproveitar para dar uma boa caprichada, afinal, não sabia quando conseguiria limpá-lo novamente.
Ela gostava da sala de Felipe. Era um espaço meio bagunçado, mas tinha um charme peculiar. Sobre a mesa, havia um Mac Pro com um monitor gigantesco e outras parafernálias tecnológicas, e várias pastas com trabalhos de clientes em análise. Diversos livros de desenho e arte ocupavam uma enorme estante perto do lavabo, alguns ficavam empilhados no chão. Uma parede inteira era coberta com algum tipo de acabamento que lembrava um quadro branco, e estava sempre cheia de rabiscos e anotações feitas por canetas de diversas cores, que ficavam espalhadas pelas superfícies próximas. Havia uma mesa de desenho ao lado de um balcão cheio de papéis, lápis de cor, réguas, canetinhas e tintas — um verdadeiro sonho para qualquer rato de papelaria — e sempre que Gabi passava por perto, ficava com a mão coçando para experimentar os materiais.
Mesmo assim, nunca os tocava, a não ser para organizá-los.
Ela nunca viu um desenho de Felipe. Sabia que ele era um verdadeiro artista devido aos relatos de Robson e Diego, mas nunca chegara a ver nada criado por ele, sequer um esboço. A única informação que tinha era que o sucesso da agência se devia muito à mente brilhante do Diretor de Criação e ao seu talento como artista. Embora ele contasse com uma equipe de design, gerenciava tudo de perto, do desenho inicial à arte final de cada peça publicitária, e era extremamente exigente com os criativos, daí o apelido de "demônio".
Já era quase fim do expediente quando ela terminou de limpar o chão. Restava apenas remover o lixo e então poderia fechar a sala. Quando pegou o cesto embaixo da mesa para o esvaziar no saco preto, virou tudo de uma vez com medo de encontrar algo comprometedor que denunciasse detalhes íntimos sobre o Demônio, afinal, não queria mais nenhuma surpresa. Na pressa, alguns papéis amassados acabaram caindo fora do saco.
Ela se inclinou para pegar o que estava no chão e uma folha, parcialmente amassada, chamou sua atenção. Sem poder se conter, abriu o papel e ficou impressionada com o que viu.
Era o desenho de uma silhueta feminina, de costas, olhando através de uma janela. O cabelo estava preso num coque frouxo, alguns fios escapavam e se espalhavam pelo pescoço esguio. Mesmo sendo apenas um esboço simples, a delicadeza dos traços e o detalhamento dos fios dos cabelos a deixaram profundamente tocada. Sem entender a razão, ela desamassou o papel, dobrou-o e o guardou no bolso. Era praticamente um crime jogar uma imagem tão linda no lixo.
Como um homem aparentemente tão frio podia ser capaz de produzir algo tão belo?
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