35 - Inadequado
Ele disse que nunca havia mentido.
Nunca? E quando ele desapareceu por uma semana e ela perguntou se ele estava internado em uma clínica? Ele não confirmou, apenas...
Fez outra pergunta.
E quando ela questionou sobre a garota dos esboços, da tatuagem e do quadro?
Ele desconversou. Na festa? Ele se esquivou.
De fato, ele tinha um certo talento para desviar das perguntas que não queria responder.
— Gabi? Chorando? De novo? — Cíntia a abordou assim que cruzou a porta. Gabi passou direto por ela e foi até o banheiro, com a ruiva em seu encalço.
— Não vou conseguir conversar com você agora.
— Tudo bem, não precisa conversar — Cíntia acariciou as costas da amiga.
Gabi lavou o rosto, retocou a maquiagem e aproveitou o conforto de alguns minutos de silêncio, até que sua respiração estivesse normalizada e ela pudesse encarar os outros novamente.
— Obrigada, Cíntia. Mais tarde, quando eu estiver mais controlada, quero conversar contigo sobre algumas coisas.
— Certo... Mas, no geral, está tudo bem, certo? Não aconteceu nenhuma tragédia de ontem pra hoje, não é?
— Defina "tragédia". Enfim, depois falamos.
Resoluta, foi para sua estação de trabalho. Leo a observava de rabo de olho, enquanto os demais seguiram indiferentes. Ela viu quando Pablo cruzou a porta e entrou na própria sala sem lhe dirigir o olhar, sem falar com ninguém. Pensou se Felipe apareceria logo depois, mas pelo aspecto esfarrapado em que ele se encontrava pela manhã, sabia que ele não viria hoje, e seu coração só doía mais a cada instante.
Estava dilacerada. Sentia-se como um cabo de guerra sendo puxado em duas direções contrárias. Não que não soubesse o que sentia. Ela sabia, e isso era o que mais a atormentava. Ela gostava de Pablo como se fosse um irmão, amava Felipe como homem, e ambos pareciam demônios de classes distintas.
Que ironia o sobrenome deles ser "De Santis"! Da família, só as gêmeas se salvariam, embora já não parecessem nada "santinhas".
"É tudo mentira..."
"Eu nunca menti para você..."
"Faça as perguntas certas ao Pablo..."
— Gabi, acha que consegue entregar aqueles esboços até a hora do almoço? — Era a voz de Rob, tirando-a do devaneio. Ela o encarou, e ele a olhava de modo atencioso, como se tivesse uma pergunta no olhar. Era como se ele sempre estivesse disponível para uma conversa; ele não falaria nada, não perguntaria nada e, na verdade, ele quase nunca falava nada, diferente dos demais na agência.
Ela gostava do Rob. Devido à natureza do trabalho, ele era a pessoa com quem ela mais interagia. Agora que conhecia melhor a equipe, conseguia diferenciar o comportamento de todos com maior facilidade. Cíntia era a amiga acelerada, Diana era fodona e mandona, Nay era meio mãezona, e Leo, apesar de ser muito carismático, era um tanto quanto intrigueiro. Niko parecia uma lenda na agência, ninguém nunca sabia onde ele estava, e Henrique, o mais novo da equipe, era brincalhão e vivia no mundo da lua.
Apenas Rob parecia equilibrado, centrado e discreto. Ela sentia que poderia falar sobre qualquer assunto com ele, sem medo de que a conversa caísse na boca do povo. Achava curiosa essa conexão, essa confiança que brotava de forma tão natural. Talvez fosse algo de alma ou simplesmente porque ele era, de fato, um cara impressionante em todos os aspectos.
— Claro... — ela percebeu que estava demorando para responder e resolveu se mover — eu vou precisar de uma mesa, mas a Graça tá usando a sala de reuniões e eu não me atrevo a chegar perto. Cíntia?
— Fala, Gabi.
— Acha que posso usar a sala do Felipe? Sabe se ele vem hoje?
— Não consegui falar com ele ainda. Ele não atende o celular e nem respondeu às minhas mensagens. Vou tentar de novo mais tarde. Eu tô mandando um recado avisando que você vai usar a sala dele, ok? Não vai ser problema.
Gabi deu graças a Deus por poder sair do meio das pessoas. Antes de entrar na sala de Felipe, olhou para a porta de Pablo e se conteve em bater. Não estava preparada para encontrá-lo ainda. Na noite anterior, após receber a notícia, ela saiu disparada do restaurante e recusou a carona dele. Pegou um táxi que passava em frente ao estabelecimento e foi embora sem olhar para trás.
Doía lembrar. Ler o nome de Felipe num teste de DNA foi como cortar os pulsos com um pedaço de arame farpado. Precisava apagar essas coisas da cabeça para poder trabalhar, então se apossou de alguns materiais e começou a esboçar. Logo sua mente se desconectou da realidade, e ela se viu mergulhada em sua arte.
Não sabia quanto tempo havia passado antes que Graça invadisse a sala e a surpreendesse trabalhando ali. A mulher entrou altiva e a encarou da porta, como se ela fosse um cocô de pombo em seu para-brisas.
— Bom dia, Graça.
— O que está fazendo aqui? — Curta e grossa.
— O Felipe me deixa usar a mesa dele quando preciso esboçar. Como a senhora está na sala de reuniões, não quis atrapalhar...
— Mas isso é um completo absurdo! Onde já se viu uma empregada com passagem livre para a sala do patrão?
Gabi recolheu as folhas e os lápis e começou a guardá-los. Não ia entrar em mais uma discussão. Estava cansada de tudo aquilo.
— Não quis ofender ninguém. Já vou me retirar — respondeu, e ia sair da sala quando a mulher barrou sua passagem.
— Eu conheço seu tipo, garota. Muitas como você já passaram por aqui. Os meninos podem até ter se interessado por algumas, mas nunca passou disso. Ponha-se no seu lugar, entendeu?
— Jackie também "não passou disso?" — Gabi não sabia de onde havia tirado a ousadia para enfrentar a matriarca. Talvez estivesse tão exausta de tudo aquilo que uma demissão seria o prêmio do ano.
— Jackie era diferente! Uma boa moça! Conheço os pais dela, somos amigos há anos, e nunca vi essa garota se comportando de forma inadequada, a não ser quando Felipe a empurrou nessa direção.
— Oh, coitadinha... tão indefesa! — Gabi ironizou, e o rosto da mulher ficou vermelho como um pimentão. Ela se imaginou numa cena de novela mexicana em que levaria um tapa na cara, o que seria um absurdo. Achava estranho aquela mulher se abalar tanto por causa da ex de Pablo. Ela provavelmente não sabia que seria avó de novo; se soubesse, como reagiria? Ainda mais quando descobrisse que o bebê viria do "filho errado"?
"Não é meu filho,Gabriela! Acredite no que quiser..."
— Não quero ver você aqui de novo, entendeu? Só entre na sala de um dos diretores quando for convidada.
Gabi não discutiu, apenas saiu da frente da mulher e voltou para sua mesa. Quando passou por Cíntia, cochichou em seu ouvido:
— Já sabemos de onde o Felipe herdou o lado "demônio".
A ruiva riu baixinho e avisou:
— Pablo pediu para te chamar na sala dele assim que terminasse os desenhos.
Ah, que droga! Era cedo para essa conversa.
— Certo — Gabi caminhou até lá e bateu na porta. Ouviu o convite para entrar, e quando cruzou o batente, sentiu um mal súbito. Sua vista ficou turva e seu coração disparou de repente.
— Gabi? Tudo bem?
Confusa com as sensações, ela se aproximou e se sentou na cadeira em frente à mesa de Pablo. Um suor frio brotou em sua testa e suas mãos ficaram molhadas. O ar faltou e ela se viu trêmula.
Não fazia sentido uma crise de pânico assim, sem gatilho nem nada. Tudo bem que, desde a noite anterior, ela vinha sendo alvejada por uma saraivada de flechas incandescentes; ainda assim, a reação veio meio tardia. Talvez fosse a discussão com Graça, ou a visão de um Felipe ensanguentado pela manhã...
— Estou bem — mentiu. — Do que precisa? — Ela queria cortar a atenção indevida o quanto antes, ao menos até poder se interpretar melhor.
— Quero saber como você passou de ontem para hoje — respondeu. Ele tinha uma expressão horrível e vinha perguntar como ela estava?
O mal-estar persistiu. Era como se agulhas tentassem perfurar sua clavícula e seus ouvidos pareciam entupidos. Respirar se tornou doloroso e ela encarou Pablo tentando dizer algo, mas sua voz não saiu. Sua pele vibrava e ela se viu prestes a sucumbir à crise.
Pablo não percebeu. Ele estava concentrado demais nos próprios dilemas para enxergá-la. Se fosse Felipe, teria notado. Apenas ele parecia capaz de perceber as nuances do que ela sentia, ainda que ela se esforçasse para esconder. Pablo a olhava, mas não a via, porque, se visse, já teria constatado há muito tempo que havia algo entre ela e o irmão mais velho. O próprio Leo, ainda que distante, parecia vê-la melhor do que Pablo.
Não estava certa de quando algo mudou, mas Gabi agora enxergava Pablo de uma maneira completamente diferente. Talvez fosse por estar magoada com a história da Jackie, com o fato de Pablo ser o favorito daquela megera da mãe deles, ou porque Felipe não estava ali para que ela se certificasse de que estava tudo bem. Estava angustiada com toda aquela situação e precisava de respostas. A determinação fez sua voz encontrar o caminho.
— Pablo, somos amigos, certo?
— É claro que somos amigos. Por que está questionando? Sei que choquei você ontem. Acredite, foi muito pior para mim saber de tudo daquela maneira. Na verdade, eu compartilhei o problema com você porque, no momento, você é uma das pessoas que mais considero e gosto.
— Mais do que do seu irmão?
Ele bufou, aborrecido.
— É sério? Vai me perguntar isso bem agora?
— Ele é sangue do seu sangue.
— Antes não fosse... — Gabi ficou chocada. Foi totalmente inesperado, e Pablo percebeu que havia passado dos limites em sua sinceridade. — Você vai ter que entender minha raiva, Gabi. Você mesma já deve ter se deparado com algo que fez você desejar se afastar de seus parentes.
Wow, ele nem podia imaginar o quanto estava certo a respeito disso. Tal declaração a fez ponderar e aliviar o julgamento sobre ele. Ainda assim, a desconfiança foi se embrenhando em meio às emoções que brigavam por predominância em seu âmago; era algo difícil de ignorar.
— Pablo, me responde uma coisa, com sinceridade: eu já sei que você tem saído com a Jackie, mas quando saiu, por acaso transou com ela?
— Que tipo de pergunta é essa? — Ele ficou repentinamente mais nervoso do que estava.
— Me diga a verdade. Só isso que eu te peço. Seja honesto comigo.
Ele abriu a boca para responder, mas um celular começou a apitar sobre a mesa.
— Só pode ser brincadeira... — resmungou, pálido.
— O que foi?
— Preciso ir.
— Pablo?
— É um alerta, ok? Preciso cuidar disso!
— É sobre o Felipe? — Ela não sabia de onde tirara a ideia, mas teve certeza de que havia algo de errado com Felipe. Talvez esse fosse o motivo do mal súbito.
— É, mas não é nada com o que você deva se preocupar. Uma ambulância já está indo até o local.
— Como... o quê... uma ambulância? — Ela teve certeza de que elevou a voz. — O que houve, Pablo?
— O iWatch dele mandou um alerta.
— Acha que... é uma overdose?
Ele pareceu não ter escutado a pergunta. Pegou o casaco do encosto da cadeira e saiu pisando duro até a porta do escritório.
— Não entendo. Se ele quer se matar, por que não tira a porra do relógio?
Foi um murmúrio. Talvez ela nem devesse ter ouvido, mas ouviu. Sentiu o coração ser envolvido por uma bolha gelada que a fez tremer até o âmago. Pablo devia estar muito irado para dizer algo do tipo; o que Gabi não conseguia entender era o motivo da ira.
Tudo bem, Felipe tinha ferrado com seu noivado, mas isso já tinha mais de um ano. Felipe era quem estava com uma corda no pescoço, enquanto Pablo seguia em frente, tentando um novo relacionamento, no caso, com ela.
Gabi se sentiu repentinamente suja.
Felipe absorvera as acusações de Jackie, da mãe, do irmão e até dela mesma, e aceitava dia após dia o papel de vilão. Além de aceitar, ele agia de acordo e usava isso para se proteger das expectativas de todos. Ela sabia como era, já tivera que fazer isso antes.
Fizera isso a vida inteira.
"Uma vadia que não sabe se comportar. Uma puta que fica dando mole pros machos do colégio..."
"Você não soube criar essa menina, mulher! Agora ela está aí, usada e largada! Vai fazer o quê, hm? Vou lhe dar uma coça..."
Gabi nunca se identificou tanto com o Demônio Criativo quanto naquele momento.
— Eu vou com você! — declarou, resoluta.
— Não, não vai.
— Eu vou sim!
— Ponha-se no seu lugar, Gabriela! — ele falou alto demais, o suficiente para que os demais colaboradores erguessem os olhos em sua direção.
Envergonhada, Gabi olhou ao redor e viu quando Graça saiu da sala de reuniões e caminhou em direção à porta.
— O que houve? — perguntou.
— Felipe. Fez merda de novo.
— Ah. — O ar indiferente da mulher fez Gabi desejar arrancar-lhe os olhos com as unhas.
— Vou me inteirar. Qualquer coisa, eu ligo — respondeu Pablo à mãe.
Após a declaração, ele deixou a agência. Gabi deu as costas à mulher e voltou à própria mesa. Quando se acomodou, percebeu o quanto tremia. Os olhares de todos estavam sobre si, o que a fez desejar que um buraco se abrisse e ela despencasse todos os andares até o térreo. Rob estendeu a mão e a colocou em seu ombro; então, discretamente, ele se inclinou e sussurrou para que ninguém ouvisse:
— Se concentra na sua tela. Não olha pra ninguém. Respira devagar e não diga nada. Vai ficar tudo bem.
A atenção excessiva e incômoda dos demais persistia, mas as palavras de Rob foram entrando nela e apaziguando seus nervos. Aos poucos, a respiração voltou ao normal e, por um milagre, suas lágrimas se recolheram a tempo.
A angústia pela forma como tratara Felipe pela manhã ainda a massacrava por dentro, e isso, somado à forma como Pablo falara há pouco, a enchia de desgosto. Felipe havia recaído. Ele havia pedido um tempo da atenção dela, uma conversa, mas ela o rejeitara.
"Sou apenas um homem atormentado pedindo cinco minutos da sua atenção..."
Todos sempre o rejeitavam. Ele era o errado, o culpado, o improvável. No passado, Pablo e Graça acreditaram na Jackie e ele ficou isolado. Dessa vez, ela e Pablo acreditaram na Jackie de novo, e ele estava mais uma vez sozinho. Seria esse o motivo de ter sucumbido? Angustiada, esperou até a hora do almoço. Quando estava para sair, chamou Cíntia de canto.
— Me responda com sinceridade: qual hospital costumam levar o Felipe quando algo ruim acontece? — Ela esperava que Cíntia interpretasse corretamente o significado de "algo ruim".
— Você acha que ele...? — Cíntia não havia ouvido a conversa com Pablo. Ninguém parecia saber do ocorrido, embora parecesse que Rob desconfiava.
— Apenas me diga! Onde eu posso encontrar ele?
Cíntia respondeu, então Gabi pegou sua bolsa e saiu para não mais voltar.
Ao menos, não naquele dia.
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