31 - Caos
Pablo estava estranho. Suas mãos não paravam quietas, o tempo todo se esfregando uma na outra, ora tamborilando os dedos na mesa, ora girando um determinado anel que ele usava no dedo médio esquerdo.
Ele também não a encarava. Desde que se conheceram, foram raras as ocasiões em que ele não fez contato visual e esse traço tão direto era uma das características que Gabi mais admirava nele. A transparência de suas ações e a leveza de seus gestos sempre foram os aspectos mais acolhedores de sua natureza.
Tais características agora não pareciam tão impressionantes para ela. Entre eles, pairavam mentiras, tanto da parte dele quanto da parte dela, e Pablo não estava nada acolhedor, tampouco leve e muito menos transparente. Parecia bem aborrecido e Gabi se perguntava se ele teria descoberto seu envolvimento com o irmão.
Se tivesse descoberto, essa conversa seria um desastre. Mesmo com dúvidas sobre a natureza da relação de Pablo com Jackie, Gabi ainda achava que sua atitude com Felipe parecia mais reprovável.
Mais uma vez, a voz do pai chamando-a de puta invadiu seus pensamentos a ponto de ela acreditar que eles estavam certos, e ela, errada.
— O que há, Pablo? Estamos aqui há dez minutos e você não fala nada — Gabi se arriscou a começar. Lançou a pergunta e esperou, contentando-se em observar os imensos vasos de plantas que separavam as mesas do restaurante japonês no qual jantavam.
Gabi nem gostava de comida japonesa. Embora desgostar não fosse bem a palavra, visto que ela não tinha comido quase nada ainda. Precisava se acostumar com a textura, o aroma e o jeito certo de comer aquele monte de comidinhas que iam sendo colocadas à sua frente. Não havia culinária japonesa em sua cidade natal e, se houvesse, ela jamais gastaria tanto dinheiro para comer algo que nem chegara a ser cozido.
— Me desculpa, Gabi. Eu ando bem... estressado. Era para estarmos aproveitando a noite e eu só fico pensando nos meus problemas. Como você tem passado?
Finalmente ele a fitou. Ela notou que suas íris azuis estavam envoltas por escleras rosadas, como se ele realmente estivesse muito cansado ou não tivesse dormido direito. Havia olheiras também, e isso a deixou ainda mais intrigada.
— Diga-me você, Pablo. O que tá acontecendo? Desde segunda-feira você parece muito agitado, aborrecido e eu até precisava falar algumas coisas contigo mas tenho a impressão de que você precisa conversar muito mais do que eu.
Ela queria que ele lhe dissesse a verdade. Se ele falasse sobre Jackie, ela poderia falar abertamente e sem culpa sobre Felipe. Ao menos era o que dizia a si mesma. Pablo deu um longo suspiro e estendeu uma das mãos sobre a mesa, apossando-se da sua. Ela conteve o impulso de puxar e interromper o contato.
— Eu estou com um problema de ordem... familiar.
— É o Felipe? — Perguntou, e logo se aborreceu por sempre associar a palavra "problema" ao Felipe.
— Não. É minha mãe.
— Ah, certo... – Havia mais gente na família. Ela sempre se esquecia disso. Lembrar de Graça a fez se sentir enjoada.
Mulher insuportável!
— Ela tem se intrometido num assunto que não deve e insistido em algo que não posso fazer.
— Isso foi bem... esclarecedor — ironizou.
— Ela quer que eu reate meu noivado — ele finalmente confessou — mas essa é a última coisa que desejo. Eu não sei por que ela insiste tanto nisso! Ela, melhor do que ninguém, deveria me entender.
— Achei que se dessem bem, você e sua mãe. — ela tentou esconder o desdém, mas falhou vergonhosamente. Segurou-se para não perguntar a ele como ele foi capaz de cair nas lorotas de Jackie, voltar a sair com ela e fingir esse tempo todo, mas sabia estar longe de entender a situação. Ele deu um risinho sarcástico antes de responder.
— Eu e minha mãe? Bom, se considerar que faço de tudo para evitar um atrito, então sim; nos damos bem.
— Ela me pareceu uma pessoa bem... diligente.
— Obstinada é a palavra. Ela é um rolo-compressor na maior parte do tempo, mas se você conseguir ficar à margem, ela não esmaga você.
— Você se mantém à margem?
— Ah, sim. É mais fácil. Às vezes eu fico assistindo enquanto ela quebra as pedras pelo caminho. Não é bonito, principalmente quando as pedras são duras demais e não se quebram, apenas são empurradas por ela até mudarem o percurso e saírem da frente.
— Duras demais como o Felipe?
Por que ela tinha que trazer o Felipe para a mesa toda hora? Ah, sim, porque sua conversa com o Pablo o envolveria, eventualmente.
— Felipe não é uma pedra. Ele é outro rolo-compressor. Eles ficam girando suas rodas e soltando faíscas o tempo todo. É exaustivo.
Gabi não expressou opinião. O diálogo com a Cíntia no dia anterior ainda ocupava sua mente. O fato de Pablo ter apoiado a ex-noiva no lugar do irmão ainda era uma pílula amarga que Gabi não conseguia engolir direito, e os supostos encontros entre eles, nem se fala. Ela não podia perguntar nada a Pablo. Não diretamente. As confidências de Cíntia lhe causariam problemas se reveladas de forma inadequada.
Todavia, teria conversado com Felipe. Teria criado coragem para questionar os motivos de ele ter se envolvido com a ex-noiva do irmão de modo tão desnecessário, ainda que o objetivo parecesse nobre.
Gabi teria feito muitas perguntas a ele, se o tivesse visto, contudo fazia dois dias que ele não aparecia na agência. Desde que ela saíra de seu apartamento, eles não se falaram por nenhuma via. Ela não podia perguntar por ele, então fazia seu trabalho o dia todo olhando para porta, esperando o momento que ele iria aparecer, o que não ocorreu.
— Bom, não sou a pessoa adequada para dar conselhos sobre relações familiares — ela deixou escapar.
— Por falar nisso, Gabi, anteontem seu pai veio te ver. Está tudo bem? Você nunca havia mencionado nada sobre ele.
Gabi sentiu o corpo inteiro se retesar. Esse era o último assunto que ela queria trazer à pauta. Ficou pensando numa forma de desviar a rota e foi então que o aparelho de Pablo vibrou sobre a mesa. Ele o recuperou rapidamente, mas deu para ver a imagem da Jackie na tela segundos antes de ele teclar para recusar a chamada.
— O que ela quer? — Gabi quase agradeceu à garota por ter interrompido a conversa.
— Não é importante.
— É importante, visto que somos amigos e viemos aqui para uma conversa franca.
— Você está certa — ele deu um longo suspiro e esfregou os olhos. Soltou sua mão e ficou um tempo contemplando o par de hashis. Na mesa, a comida não esfriava porque já vinha fria, e Gabi se perguntava se haveria algo para comer quando chegasse em casa.
— Escuta, Pablo, eu sei que ela anda te ligando, ok? Não sou boba. Também sei que você anda atendendo a essas ligações e não duvido que talvez tenham se visto nos últimos dias. Não tenho nada a ver com seu passado, mas gostaria que me falasse o que está acontecendo. Sei que ela significou muito para você e não sou ingênua de ignorar que ela ainda te afeta.
— Não é isso, é que... droga! – Ele olhou para além dela, o que a fez se voltar.
À porta do estabelecimento, Jackie conversava com a hostess. Pablo estava lívido e Gabi chegou a ficar com pena dele.
— Ei, Pablo! Está tudo bem, ok? Se você precisa conversar com ela, eu vou embora. Não vou ficar chateada nem nada, tá legal? — Estava sendo sincera. Na verdade, tudo o que ela mais queria no momento era sair dali. Sentia que estava ocupando um lugar indevido e seu desconforto se ampliava a cada instante.
— Fique aqui. Não saia daqui — ele ordenou, depois se levantou e foi ter com a garota.
Gabi observou quando Pablo tomou Jackie pelo cotovelo e saíram do estabelecimento. Não dava para vê-los do lado de fora, então ela se contentou em ficar no celular girando o feed do Instagram.
Gabi seguia as contas de todos os clientes da agência para se manter informada sobre as campanhas e sua relevância no dia a dia das empresas e, embora muito do conteúdo compartilhado fosse de certa forma inútil, sempre havia informação para absorver naquele universo.
Ela fazia isso no momento; vasculhava e não se atinha a nada específico, ao menos não até que seus olhos captassem uma publicação feita no perfil de um dos clientes.
A imagem em questão havia acabado de ser publicada. Era uma selfie capturada numa espécie de jantar, que ocorria naquele exato momento num elegante hotel na área mais nobre da cidade. Pela legenda, tratava-se de uma comemoração, algo relacionado ao sucesso de uma campanha.
Contudo, o que Gabi via no momento estava longe de ser motivo de comemoração. A fotografia cujo ângulo pegava a extensão de uma mesa onde estavam acomodadas seis pessoas, revelava o que pareciam três casais, sendo que um deles era formado por Felipe e a loira que certa vez o visitara na agência.
Aquela loira, que ela imaginara um pornô hipotético.
A garota estava por trás dele e cruzava os braços em seu peito, repousando o queixo em seu ombro. Pareciam um casal de namorados. Felipe encarava a câmera com o semblante fechado, mas como ele era sempre emburrado, isso não surpreendia.
Gabi sentiu que devolveria à mesa o pouco que conseguira ingerir do jantar. Pensou no desperdício e no vexame, e engoliu a bile junto com um longo gole de água com gás. Percebeu as próprias mãos trêmulas e os olhos úmidos.
O que significava aquilo? Não precisava ser um gênio para entender a imagem, e mesmo assim, seu lado mais sonhador e ingênuo se recusava acreditar. Determinada a controlar o efeito daquilo que mais se parecia com machadadas lhe flagelando o peito, guardou o aparelho na bolsa e esperou, resoluta, enquanto Pablo terminava de resolver os próprios dilemas do lado de fora.
Talvez estivesse fazendo tudo errado. Talvez, não! Era óbvio que estava fazendo tudo errado. Era uma pena que o que sentia por Pablo não passasse de amor fraternal, na verdade, ainda bem que era só isso, já que ele também já tinha perdido o posto de homem perfeito.
Buscou controlar a respiração antes que Pablo retornasse. Ela sabia fingir estar bem, havia feito isso a vida inteira. Havia soterrado as reações, suprimido as lágrimas e engolido todos os malditos abrolhos que a vida lhe enfiara goela abaixo, pois sua existência sempre dependeu disso.
Quando viu Pablo voltando à mesa, ela já tinha conseguido controlar o tremor. Ele estava sozinho e caminhou lentamente até ela. Acomodou-se à sua frente, estendeu as mãos sobre o tampo e só então a olhou.
— Tá tudo bem? — ela perguntou.
Algo estava errado. Bastante errado.
— Está tudo ótimo. Por que não estaria? — Ele foi cínico. Gabi engoliu em seco.
— O que houve? Jackie está bem?
— Ela está ótima, dada sua condição.
— Condição?
Ele tirou um papel do bolso da camisa e estendeu sobre a mesa. Gabi o capturou e abriu, então viu o timbre de um laboratório.
— O que isso significa?
— Que Jackie está grávida.
Gabi sentiu o peito fazer movimentos contrários. O susto o fez se contrair e a empatia pela notícia de uma gravidez o fez se expandir. Rapidamente, outro sentimento se entranhou e suprimiu os demais.
Mágoa.
Então, era verdade que Pablo e Jackie continuavam se encontrando. Há dois dias, Gabi o ouvira conversando no celular; "não vai acontecer de novo", ele dissera. Se ele continuava se encontrando com a ex, do que se tratava tudo aquilo? Por que ela estava ali, naquele restaurante chato pra cacete e cheio de comidas cruas tentando uma conversa com o homem que um dia considerara uma boa opção de relacionamento, preocupada em dizer a verdade sobre Felipe?
Pablo era outro filho da puta mentiroso.
— Devo lhe dar os parabéns? — ela sibilou, e suas palavras saíram cheias de peçonha.
— Talvez, afinal de contas, serei tio mais uma vez.
— Tio? — Ela teve certeza de não ter ouvido direito.
— Jackie alega que Felipe é o pai.
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