26 - Confusão
O que era esse som maldito e infernal? E por que o mundo todo estava gritando à sua volta enquanto o chacoalhavam como se estivesse numa maldita coqueteleira?
— Thiago... — sua voz saiu rouca e fraca.
— Ele está consciente! — alguém exclamou à sua direita.
— Deve ser apenas uma concussão. Saberemos mais no pronto-socorro.
Pronto-socorro?
Felipe tentou manter os olhos abertos, mas milhares de alfinetes lhe perfuravam as órbitas. O ruído permanecia e o chacoalhar o fez tombar de lado para tentar expelir o que restava em seu estômago.
Não havia mais nada.
— Ele tá passando mal! — aquela voz chata pra cacete voltou a berrar.
— Aqui... — um homem vestido com um colete laranja o levantou, e foi quando viu que estava num carro com dois leitos e um monte de aparelhos...
Era uma ambulância.
— Cadê o Thiago? — perguntou, confuso.
— O outro rapaz?
— É, porra! Cadê ele?
Os paramédicos se entreolharam antes de responder.
— Quando chegarmos ao hospital, saberemos.
[...]
Felipe abriu os olhos.
Estava sozinho.
Em casa.
Sóbrio.
Estar sóbrio era uma merda, ao menos na maior parte do tempo. Tudo bem que, quando acordava depois de um barato, desejava não ter acordado.
Não era o caso hoje. Era mais uma segunda-feira, mas essa era diferente das demais. Essa tinha algo permeando sua existência, uma sensação, como uma brisa num túmulo fechado, um sopro de oxigênio no meio da carniça.
Ergueu o corpo atipicamente descansado e colocou os pés no chão. Nada doeu, nada girou. Também não teve vontade de voltar para a inconsciência, porque a consciência não pareceu tão insuportável dessa vez.
Avançou descalço pelo piso acarpetado do quarto até um cavalete. Havia alguns óleo-pastéis espalhados no apoio de tela onde um bloco A3 descansava, preso por presilhas.
Antes que o mau agouro do sonho engolisse seu ânimo e sua vontade, começou a rabiscar a superfície, fugaz e objetivo. Aos poucos, luzes, cores e sombras se intercalavam criando um cenário, depois uma forma, clara, nua e coberta de ouro.
Olhos. Boca. Seios e cabelos. Cada detalhe, intrinsecamente guardados em sua memória. Em pouco tempo, a figura difusa ganhava identidade, emoção e profundidade. Finalizada a imagem, foi arrancada do bloco e depositada numa gaveta entre as demais, inúmeras, diferentes, porém iguais. Nesta última, novos detalhes e cores tomaram o lugar da imaginação.
Agora ela estava totalmente nua e sua pele não era lisa e ilesa como sua imaginação pintara. Era quente, marcada, cicatrizada e contava histórias. Era muito mais do que uma entidade mítica, porém corpórea.
Era real.
Era perfeita.
[...]
— Gabi, que bom que você veio! — Pablo a cumprimentou antes mesmo de ela se acomodar à própria mesa.
Gabi olhou para ele e sentiu-se angustiada. Ele parecia cansado e ela sabia que não era apenas devido às crianças que saltitavam ao redor dele entre as corridas enérgicas pelo escritório.
— Tia! — uma das garotas, Gabi jamais se atreveria a chutar qual das duas era, escalou suas pernas e pulou em seu colo. Sem saber como reagir, Gabi a segurou pela cintura e apenas... riu.
— Você é a...? — sondou a garotinha que a fitava com aqueles profundos olhos azuis, cheia de curiosidade .
— Laís! — A pequena levantou o braço rechonchudo e pegou uma mecha do cabelo de Gabi, que estava preso num rabo de cavalo. — Você é uma boneca que fala? — perguntou.
Gabi riu ainda mais.
— Não! Claro que não!
— Viu? Eu falei pra você que ela não era! — A outra irmã, que olhava a cena de esguelha, enfrentou a irmãzinha que ocupava seu colo. Gabi viu a decepção que a garota demonstrou através de um beicinho fofo e não se conteve.
— Vou contar um segredo. — Gabi chamou Ísis para perto e, numa voz baixa, confidenciou: — não o tempo todo, sabe? Quando solto o meu cabelo, viro uma boneca que fala. Só que fico meio esquisita quando isso acontece, por isso deixo preso.
— Viu? — Laís gritou, com um sorriso debochado — eu disse que ela não podia ser só uma humana!
— Calma! As duas estão certas, ok? — respondeu Gabi olhando para Isis, que ainda se mantinha arredia. Por alguma razão, Gabi se lembrou demais de Felipe ao observar a menina.
Eram Felipe e Pablo em miniaturas, cheias de fofura e em tons pastéis.
— Meninas! — a voz de Graça se fez ouvir acima dos risos agudos e farfalhar de papéis e sedas.
No mesmo instante, as pequenas se juntaram à avó e a seguiram até o aquário de vidro onde a mulher se acampara para trabalhar. Havia bonecas espalhadas pelo chão e dois tablets ignorados sobre a mesa oval. Gabi sentiu falta do contato, então voltou a olhar para Pablo e para além dele, onde a porta de Felipe permanecia fechada.
Precisava conversar com Pablo. Como e quando? Não fazia ideia. Não tinha noção do que estava acontecendo entre ela e Felipe, tampouco como resolveria esse impasse, contudo, admirava demais Pablo e não era justo tratá-lo com desrespeito. Levantou-se e se aproximou dele, às portas da sala de Felipe.
— Me desculpa pela forma como saí daqui na sexta-feira. Eu estava nervosa... fora de mim, na verdade.
— Foi ele, não foi? — Pablo inclinou a cabeça na direção da porta do irmão.
— Ele não fez nada, Pablo. Juro pra você. Foi algo meu comigo mesma.
— Você me isolou, Gabi. Achei que fôssemos amigos.
Ela teve vontade de chorar. Que merda de situação!
— Somos amigos, Pablo. Vamos conversar melhor fora daqui, ok? Veja quando... — ela parou de falar quando notou Leo passando por trás deles para se dirigir à copa. Ainda que falassem baixo, precisavam tomar cuidado com os bisbilhoteiros —, veja quando poderemos almoçar juntos essa semana, ok? Prometo que serei sincera com você.
Ele apenas assentiu e voltou à própria sala, fechando a porta atrás de si.
Ao menos ele dirigiu a palavra a ela.
Não poderia dizer o mesmo de Felipe, infelizmente.
No sábado, Felipe a levou de volta à pousada logo após a chuva cessar. Quando chegaram à pensão, ela se despediu dele de modo distante, ansiosa para fugir pra sua pequena bolha antes que desabasse de novo na frente dele, ou o atacasse desvairadamente.
Os dois caminhos eram igualmente iminentes.
Quando se viu sozinha no próprio quarto, odiou estar ali. Arrependeu-se pela pressa em partir e desejou poder voltar no tempo.
Por que tinha que levar tudo tão a ferro e fogo?
Por fim, passou cada maldita hora entre o sábado à tarde e a segunda-feira de manhã pensando em como seria quando estivesse novamente diante dele, até que ele chegou, entrou na própria sala e lá ficou.
É. A vida às vezes é uma piada!
Perto do fim do expediente, Gabi recebeu uma mensagem de Pablo:
"Quarta-feira à noite."
Ela sentiu o coração palpitar. Estava ansiosa, preocupada e assustada. Ainda que soubesse que precisavam conversar, gostaria de ter certeza sobre algumas coisas antes de abrir o jogo com Pablo.
Que merda de situação!
— Você tá bem, Gabi? — era Diana. Aparentemente, a garota havia perguntado algo a ela, que não ouviu por estar em outra dimensão.
— Desculpe, Diana. Meu final de semana foi... complicado.
— Você parece abstraída. Na sexta-feira saiu daqui toda esbaforida... Graça ficou reclamando de você.
— Acha que ela pode me demitir?
— Ah, certamente. Mas não faria nada para contrariar o filhinho de ouro.
— Filhinho de ouro?
— Ah, não precisa prestar muita atenção para ver a preferência declarada da mãe pelo mais loiro dos filhos. Se bem que você não tem prestado atenção a nada, ultimamente.
Gabi ignorou a crítica velada e engoliu o bolo que se formou em sua garganta. Lembrou-se das histórias que Pablo contara acerca do relacionamento do Felipe com a mãe e isso a chateou por um certo tempo, até que foi distraída pela imagem de Cíntia saindo da sala de Felipe aos risos. Uma das meninas segurava sua roupa enquanto Felipe ria com ela.
Ele estava rindo? Com a Cíntia?
Logicamente, a mente criativa de Gabi começou a conjecturar.
Será que a Cíntia já ficou com o Felipe? Mas... parece que ela e Diana têm alguma coisa. Se bem que elas nunca assumiram nada, pode ser tudo coisa da minha cabeça. Embora essa intimidade com Felipe também possa ser coisa da minha cabeça e... E se Cíntia for bissexual? Felipe é bi, talvez ela também seja... Talvez eles já tenham se aventurado no passado, por isso Cíntia sempre puxa a sardinha pro lado dele... E se...
Pare de imaginar coisas, Gabi! Que inferno!
Ignorando o bom senso e com a mente envenenada pelas próprias confabulações, Gabi marchou a passos firmes até a porta aberta onde patrão e funcionária "baba-ovo" conversavam. Para completar, Niko surgiu de uma fenda no espaço tempo e passou à sua frente, entrando na sala de Felipe como se tivesse sido previamente conjurado. Nesse instante, Gabi se deu conta do próprio comportamento, então passou direto e bateu à porta de Pablo.
Quando foi convidada a entrar, cruzou um olhar com Felipe. Durou uma fração de segundo, mas foi suficiente para enregelar sua alma. As esferas frias atingiram-na como um laser, atravessando-a a ponto de causar dor.
O sentimento se dissipou quando ouviu a réstia da conversa das meninas à porta do Diretor de Criação.
— Tio Lipe! Ela é uma boneca que fala! Eu disse! A Isis não acreditou!
— É mesmo? Eu acredito em você — ele afirmou com outra de suas vozes inéditas. Quantas camadas dele ela ainda iria descobrir?
— É, mas só quando solta o cabelo, sua tonta! E ela fica esquisita quando faz isso, por isso prefere sua forma humana — respondeu a irmã.
— Não acho que ela fique esquisita quando solta o cabelo — ele sorria para as meninas —, e não chame sua irmã de tonta.
Com um sorriso provocado pelo assunto das gêmeas, Gabi entrou na sala de Pablo e fechou a porta atrás de si. Em silêncio, aproximou-se da mesa dele, que a recebeu com o semblante cansado.
— Fala Gabi, precisa de alguma coisa?
— Pablo. Eu vim aqui porque... — Por que mesmo? Ah, pra não arrancar os dentes da Cíntia e mergulhar no óleo fervente junto com os olhos de prata do Demônio! Foi por isso! — Er... eu senti que você estava meio abatido quando cheguei e eu fiquei pensando nisso. Queria saber se você tá chateado comigo.
Ele a encarou por tanto tempo que ela começou a se constranger.
— Você não faz ideia do que tem acontecido ultimamente na minha vida, Gabi...
Oush... Não eram amigos? Por que ele não conversava com ela a respeito?
Se bem que ela não estava sendo honesta com ele desde...
Sempre.
— Se houver algo que eu possa fazer...
Nesse momento o celular de Pablo vibrou sobre a mesa. Ele recuperou o aparelho sem que ela visse a identidade do chamador. Com um dedo em riste, ele sinalizou para que ela permanecesse onde estava e se afastou da mesa para atender a ligação. Gabi fez menção de sair, mas ele inclinou a cabeça pedindo para ela ficar.
"Já conversamos tudo o que havia para conversar. Eu ouvi seu lado mas não posso mais me deixar levar por essa história!"
Ele sussurrava, mas Gabi sempre tivera um ouvido muito bom, aperfeiçoado pelas vezes que precisava fugir das mãos de seu abusador.
"Não. Não posso na quarta. Tenho um compromisso. Não me venha com essa. Não vai acontecer de novo, eu avisei..." A voz de Pablo se elevou um pouco e ele olhou de soslaio para Gabi, que se fingiu distraída com um porta-canetas muito cafona. "Chega. Não posso falar agora." E encerrou a ligação.
Quando voltou à própria mesa, parecia consternado.
— Bem, eu... — Gabi foi se levantando —, venho conversar com você em outro momento, ok? Só queria saber como você estava mas vejo que está... ocupado.
— Você só veio aqui para isso ou tem algo que precisa me dizer?
As íris azuis a perfuravam, agora. Ela daria qualquer coisa para sair da situação na qual se metera.
— Pablo...
Duas batidas na porta interromperam sua próxima desculpa. Pablo pediu que a pessoa entrasse e Cíntia apareceu na porta, agitada.
— Desculpe interromper, Gabi...
Olha! Não é que preces podem ser atendidas?
— O que foi? — Gabi foi meio grossa. Cíntia não estava entre suas pessoas favoritas no momento.
— Tem um homem na portaria procurando por você. Ele afirma ser seu pai.
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