24 - Entrega
— Você tava limpo, Lipe. Três meses! Por que foi entrar nessa de novo? Agora você vai com aqueles caras e sabe muito bem o que vai rolar!
— É só uma festa, Thiago! Pra quê tanto drama? Eu vou com os caras, volto com eles e pago o combustível, e só!
— Sabe que só estão te usando! Cacete, você só se mete em encrenca e deixa o pai preocupado! Quando você quebrar a cara, quero ver se esses teus amigos vão aparecer!
— Me deixa em paz, Thiago! Eu pago minhas próprias contas e não devo satisfação a ninguém.
— Sei que você não é assim. A mim você não engana com essa pose soberba e o caralho! Por que não me conta? Por que não fala um pouco do que tá na tua cabeça pra aliviar a carga? Eu sou seu amigo, aqueles caras não são...
— Para de tentar me laudar, caralho! Você devia ter escolhido psiquiatria, mas não é o caso, então não enche o meu saco!
— Sei que a tua condição rara te deixa sensível...
— Porra Thiago! Precisa mesmo falar disso? Me deixa quieto no meu canto! Que merda!
— Você vai mesmo?
— Vou, porra!
— Vai dar merda e isso tá na cara. Não diz que não avisei.
— Thiago, eu não preciso de você. Eu não preciso de ninguém!
[...]
Felipe abriu os olhos. Sentiu a umidade nas pálpebras e tentou focar qualquer coisa ao redor. Pelas frestas da veneziana, uma luz tênue se projetava pelo quarto eliminando aos poucos as sombras remanescentes. Um cheiro vanilado misturado a outro muito específico atingiu suas narinas, uma calidez peculiar envolvia seu corpo do quadril para cima, e seu coração deu um sacolejo ao se lembrar que não estava sozinho.
Pela primeira vez em muito tempo, ele sabia exatamente quem estava ao seu lado quando acordou. Também sabia onde estava. Tal constatação não ajudou a eliminar o mal-estar do sonho, ainda assim, ele se permitiu desfrutar do calor do corpo colado ao seu e da fragrância única que se desprendia dos cabelos esparramados pela fronha do travesseiro, ocultando parcialmente o rosto adormecido.
Era o cabelo certo.
Era o cheiro certo.
Permaneceu um bom tempo contemplando os reflexos dourados dos fios emaranhados. Algumas garotas pagavam uma fortuna para fazer isso em salões de beleza, e ele sabia disso porque já fizera campanhas para produtos com esse fim. Em Gabriela, contudo, era natural. Os fios possuíam um milhão de tons diferentes entre a terra seca e o ouro, assim como seus olhos que transitavam entre o caramelo derretido e a grama do outono.
Ele gostava desse tipo de analogia. Ele vivia da arte, e como artista, buscava enxergar as conexões entre elementos e os seres, vivos ou não vivos, absolutos ou pequenos, concretos ou abstratos, corpóreos ou imateriais. Ele absorvia a beleza de cada nuance, cada pequeno detalhe entre polos opostos, o cinza entre o preto e o branco, o meio onde tudo se mistura e se diferencia; do céu ao mar, do verão ao inverno, do caule à flor, do masculino ao feminino, do amor à perda...
Ainda não encontrara o caminho entre a dor e a cura.
Um suspiro o distraiu do devaneio. Ela havia acordado. Podia escutar. Podia ouvir a respiração mudando o compasso como se o pulsar do coração fosse o metrônomo da existência. Podia perceber a pele, outrora tranquila e entregue, encolher-se e tremular em tensão iminente. Esperou que ela abrisse os olhos para mergulhar naquele fosso de cachoeira e ficar ali até que fosse obrigado a emergir.
[...]
Gabi abriu os olhos. A consciência de onde estava a atingiu antes mesmo de mirar o corpo à sua frente. Com o olhar, ela fez o caminho da mão que segurava uma mecha dos seus cabelos até o braço tatuado, e seguiu pelo ombro, pescoço, maxilar, lábios, nariz até, enfim, focar nas esferas prateadas.
O aço líquido a engolfou. Havia angústia ali. Ele parecia carregar um mundo de segredos e ela se sentiu tragada para aquele universo cinzento onde ele habitava. Era como se ela fosse responsável por parte de sua dor. De alguma forma, ela se sentia enxertada no sofrimento dele e não podia imaginar qual era a razão disso.
Todavia, ele percebera sua dor. Ele a desvendara em segundos. Ademais de todas as vezes em que parecia tê-la tratado com descaso, cinismo e malícia, no fundo ele era sensível, perceptivo e atento. Por isso sua dor era mais forte. Por isso ele recorria aos subterfúgios mais mordazes para escapar.
Ele tinha a dor do artista.
Como alguém que carrega o estigma de sentir as angústias do mundo, interpretá-las, ressignificá-las e transformá-las em expressão de beleza, ele sofria e não conseguia lidar com tudo isso. Outros o acusariam de insensível, de leviano, hipócrita e vil. Ela mesma o havia feito. Mas ele só tentava sobreviver à dor, à saudade, ao medo e à incerteza como qualquer um que vivia da arte, como músicos, dançarinos, escultores, pintores, atores... todos vendo o mundo à sua maneira.
Foi assim que ele a viu. Foi assim que a enxergou e interpretou. Nunca ninguém a havia visto assim.
Sem uma palavra, ela se ergueu do travesseiro, espalmou o peito desnudo e o empurrou para que ficasse de barriga para cima. Ele abriu a boca para questionar, mas ela montou sobre o corpo firme, uma perna de cada lado do quadril, e o calou com um beijo.
Ele ergueu as mãos e agarrou sua cintura com firmeza enquanto um gemido lhe escapava dos lábios. Ela o sentiu de encontro ao seu centro já úmido, pulsando, e a fricção do tecido contra sua carne nua a fez se mover e arrancar mais um grunhido dos lábios másculos.
Quando a brincadeira atingiu um nível insuportável, ela desceu a mão até a borda da cueca e a puxou para baixo, libertando-o. Sentiu quando o membro atingiu sua coxa, teso e quente. Mais uma vez ele tentou falar, mas ela lambeu seus dentes e trilhou o caminho até perto da orelha, sentindo a barba pinicar a ponta da língua.
— Não quero conversar... — sussurrou no ouvido dele, depois mordiscou o lóbulo e enfiou o nariz nas mechas do cabelo escuro. Tinha cheiro de madeira, couro e fumaça misturado a uma fragrância exclusiva, masculina, algo entre suor e pele molhada pela chuva.
Ele estendeu a mão até a mesa de cabeceira e alcançou uma carteira que repousava ali. Sem mover o corpo, tirou dela um preservativo e lhe entregou.
Ele estava cedendo o controle total a ela. Ele entendeu que esse seria o único caminho possível. Ele sabia exatamente o que deveria fazer para que ela se sentisse segura e pronta.
Ele estava lhe entregando as chaves para sua libertação como mulher.
Mesmo nunca tendo feito isso antes, ela abriu o pacote, depois observou a forma como ele virava o preservativo entre seus dedos. Ele levou sua mão até a ponta cônica e a ajudou a desenrolar o látex em toda a sua extensão. Com o coração palpitando de ansiedade, ela o viu pronto, empinado e, pelo movimento do abdômen que subia e descia num ritmo anormal, notou a força que ele fazia para se deixar controlar. Sem mais arrumar desculpas para não fazer o que queria, ela se ergueu, encaixou-se... e desceu.
O mundo desapareceu. Em seus ouvidos, um som agudo e cristalino soou, como sinos tocando. Tudo ficou branco, doce e macio enquanto ela o sentia invadindo suas entranhas, completando-a, enchendo-a de si mesmo.
Era o melhor lugar do mundo para estar.
Aos poucos, aquele branco morno começou a aquecê-la por dentro. Ela sentiu um impulso inerente de se mover, como um caldo fervente que precisa se manter em movimento constante. Ela moveu a pelve para frente e para trás, fazendo-o rosnar.
— Ah... Gabriela... — ele parecia nervoso e isso arrancou um sorriso dos seus lábios. Sentindo-se poderosa, ela repetiu o movimento e mirou o rosto que se contorcia entre uma carranca e um sorriso.
— Isso é bom? — perguntou.
Ele a fitou. Parecia angustiado. Ela o estava torturando e sabia disso. Aos poucos, ela foi se deixando levar, seu corpo foi se soltando e de repente, ela teve vontade de saber como seria deixar acontecer. Ceder o controle, mas para alguém que ela sabia que não a iria machucar, ainda que sentisse as mãos que a seguravam pela cintura com tanta força que provavelmente deixaria alguma marca ali.
Isso não a incomodou.
Ela o viu em toda a sua beleza masculina; as veias que saltavam no pescoço viril; o peito que subia e descia pintado de arte, figuras muito provavelmente criadas por ele mesmo; e sobre a pele dourada, uma fina camada de umidade o fazia cintilar na modesta claridade da manhã.
Ele era lindo. Absurdamente lindo.
Ela se inclinou sobre ele e seus cabelos, como um véu, escorregaram e envolveram os corpos conectados. Ali dentro, eram só os dois e mais nada. Antes o dragão vermelho viera e lançara suas chamas, cortara suas asas e tentara roubar dela o príncipe ardiloso, mas o monstro não venceria dessa vez.
— Faça-me sua.
Felipe sentiu algo se romper dentro do peito. Os cabelos longos faziam cócegas nas laterais do seu corpo e o perfume feminino, não a baunilha, mas algo produzido pela pele translúcida, algo saído das entranhas de sua fêmea, envolveu-o numa atmosfera torturante. A dor que o assolava na virilha subiu até seu esterno e cavou um buraco ali, que só poderia ser preenchido por ela. Sentiu os olhos úmidos e ergueu o tronco de uma vez, virando-a sobre o colchão sem desconectar os corpos.
— Não sabe o que está me pedindo.
— Eu sei.
— Se me deixar entrar, vou destruir você.
— Então me destrua...
Então ele foi. Ele investiu com tudo e arrancou um gemido agudo quando atingiu as profundezas quentes e gelatinosas. Ela o agarrou pelo pescoço e o puxou para um beijo molhado enquanto projetava a pelve em sua direção, e ele passou a se mover, firme, ritmado e completamente consciente de cada sensação, de cada partícula de sua alma que se desprendia dos recônditos mais obscuros de sua mente e se derramava sobre a massa dourada de cabelos espalhados pelo lençol.
Os olhos de relva seca o abraçavam enquanto o corpo entregue o engolia em parcelas. Ele sentiu o prazer escalonando, espiralando e procurando alívio. Sabia que não ia durar muito. Todo o controle que sempre tivera quando se tratava de sexo não funcionava com ela. Não, porque todos os corpos que o receberam antes não eram o dela.
Ela seria o seu fim.
— Felipe... — a voz entrecortada o rasgou por dentro e, quando sentiu o canal escorregadio e saciado comprimindo-o intimamente, soltou e deixou ir. Com um rosnado, enfiou o rosto entre a nuca feminina e o travesseiro até que cada gota de si se esvaísse nela.
Quando os espasmos diminuíram e a respiração se estabilizou, ele entendeu que era assim que devia ter se sentido depois de cada intercurso. Não exausto e vazio, mas satisfeito e...
Pleno.
Gabi sentiu o peso do corpo masculino sobre o seu, mas não se incomodou. Sentiu o cheiro da pele suada e absorveu cada contração do peito que puxava o ar de modo acelerado. Seus olhos se encheram de lágrimas a ponto de transbordar ao se dar conta de que tinha feito amor pela primeira vez na vida.
Não foi posse. Não foi sexo.
Foi amor.
Sim. Ela o amava.
Ela amava o Demônio Criativo!
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